segunda-feira, 19 de abril de 2010

Edwin Morgan

Na frente da televisão


Tome cuidado se você me beijar,
você sabe que não morre.
A luz da lâmpada se estende, desenha
suavemente - toda ela - em fixidez,
tropas de sombras azuis como seu maxilar sob a luz
onde você fica assistido, meio assistindo
entre o amarelo e o azul.
Eu só vejo metade, só conheço sua metade.
Tome cuidado se virar agora pra mim
pois mesmo neste quarto nos movemos fora e através das estrelas
e formas que nunca nos deixam voltar, sua mão
que repousa levemente na minha coxa e minha mão no seu ombro
estão transfixadas somente lá, não aqui.


O que você poderia suportar que duraria
como uma pedra através de câncer e cabelo branco?


Ainda assim não é fácil
fazer balanço de misérias
quando a luz macia pisca
sobre nossos braços na quietude
onde decisões são tomadas.
Você tem que olhar pra mim, 
e então é o tempo que cai
numa conversa lenta até dormir.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Czeslaw Milosz

Não Mais


Preciso contar um dia como mudei
Minha opinião sobre poesia e por que
Me considero hoje um dos muitos
Mercadores e artesãos do Império do Japão
Compondo  versos sobre a floração da cerejeira,
Sobre crisântemos e a lua cheia.


Se eu pudesse descrever as cortesãs
De Veneza, como incitam com uma vareta o pavão no pátio
E desfolhar do tecido sedoso, da cinta nacarina
Os seios pesados, a marca
Avermelhada no ventre onde o vestido se abotoa,
Ao menos assim como as viu o dono das galeotas
Arribadas aquela manhã carregando ouro;
E se ao mesmo tempo pudesse encerrar seus pobres ossos
No cemitério, onde o mar oleoso lambe o portão,
Em palavras mais duráveis que o derradeiro pente
Que entre carcomas sob a lápide, só, espera pela luz


Não duvidaria. Da resistência da matéria
O que se retém? Nada, quando muito o belo.
Então devem nos bastar as flores de cerejeira
E os crisântemos e a Lua cheia.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Czeslaw Milosz

Descrição honesta de si mesmo junto a um copo de whisky no aeroporto, digamos em Minneapolis

Meus ouvidos ouvem cada vez menos das conversas, meus
olhos vão ficando mais fracos, mas não se fartaram.

Vejo suas pernas em minissaias, em calças compridas ou
tecidos voláteis,

Observo uma a uma, suas bundas e coxas, pensativo, aca-
lentado por sonhos pornô.

Velho depravado, é a cova que te espera, não os jogos e
folguedos da juventude.

Não é verdade, faço apenas o que sempre fiz, compondo
cenas dessa terra sob as ordens de uma imaginação erótica.

Não desejo a estas criaturas, desejo tudo, e elas são como
o signo de uma convivência extática.

Não é minha culpa se somos feitos assim, metade contem-
plação desinteressada, e metade apetite.

Se após a morte eu chegar ao Céu, lá deve ser como aqui,
só que terei me desfeito da obtusidade dos sentidos e do
peso dos ossos.

Tornado puro olhar, sorverei ainda as proporções do cor-
po humano, a cor da íris, uma rua de Paris em junho de
manhãzinha, toda a incompreensível, a incompreensível
multidão das coisas visíveis.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Czeslaw Milosz

ARS POETICA


Sempre aspirei por uma forma mais ampla,
que não fosse nem poesia nem prosa em demasia
e permitisse a compreensão, sem expor ninguém,
nem autor nem leitor, a grandes tormentos.

Em sua essência, a poesia é algo horrível:
nasce de nós uma coisa que não sabíamos que está dentro de nós,
e piscamos os olhos como se atrás de nós tivesse saltado um tigre,
e tivesse parado na luz, batendo a cauda sobre os quadris.

É por isso que se afirma, com razão, que a poesia é ditada por um espírito,
embora haja exagero em afirmar que se trata de um anjo.
É difícil de entender a soberba dos poetas,
por que se envergonham, quando a fraqueza deles acaba descoberta.

Que homem inteligente gostaria de ser o país dos demónios,
que nele se multiplicam como em sua própria casa, falam inúmeras línguas,
e como se não lhes bastasse roubar-lhe a boca e as mãos,
ainda tentam alterar-lhe o destino a seu bel-prazer?

Porque hoje se respeita tudo o que é adoentado,
alguém poderá pensar que estou brincando apenas,
ou que encontrei uma outra maneira
de elogiar a Arte através da ironia.

Houve um tempo em que somente livros sábios eram lidos,
que ajudam a suportar a dor e a desgraça.
Mas isso não é o mesmo que examinar milhares
de obras oriundas directamente das clínicas psiquiátricas.

Mas o mundo é diferente daquilo que nos parece,
e nós próprios somos diferentes dos nossos delírios.
Por isso as pessoas conservam a sua silente cortesia,
para obter o respeito de parentes e vizinhos.

A vantagem da poesia consiste no facto de lembrar-nos
da dificuldade de manter a identidade,
pois a nossa casa está aberta, não há chave na porta,
e hóspedes invisíveis entram e saem.

Concordo, o que estou contando aqui não é poesia.
Poesias devem ser escritas poucas vezes e de má vontade,
sob uma pressão insuportável e apenas na esperança
de que os bons espíritos, e não os maus, tenham em nós o seu instrumento


quarta-feira, 7 de abril de 2010

Mia Couto




Saudades


Magoa-me a saudade
do sobressalto dos corpos
ferindo-se de ternura
sói-me a distante lembrança
do teu vestido
caindo aos nossos pés

Magoa-me a saudade
do tempo em que te habitava
como o sal ocupa o mar
como a luz recolhendo-se
nas pupilas desatentas


Seja eu de novo a tua sombra, teu desejo,
tua noite sem remédio
tua virtude, tua carência
eu
que longe de ti sou fraco
eu
que já fui água, seiva vegetal
sou agora raiz trêmula, raiz exposta


Traz
de novo, meu amor,
a transparência da água
dá ocupação à minha ternura vadia
mergulha os teus dedos
no feitiço do peito
e espanta na gruta funda de mim
os animais que atormentam o meu sono

terça-feira, 6 de abril de 2010

Edwin Morgan



O DIVISOR

Continuo pensando em você - o que é ridículo. 
Estes anos entre nós como um mar.
E a dignidade que veio com o tempo 
impediria meu lápis sobre o papel.
O som estava ligado; você pediu pelos Stones; 
conseguiu, conseguiu café fresco, conversa.
As cortinas cerradas guardavam uma noite selvagem. 
Continuo pensando nos seus olhos, suas mãos.
Não há razão para isto, nenhuma.
Você diria que não posso ser o que não sou, 
mesmo que eu não possa ser o que sou.
Onde isso nos leva? O que podemos fazer?
O silêncio após Jagger foi como uma capa 
que eu teria jogado sobre você - havia apenas 
o vento, e o relógio batia enquanto você bebia, 
agarrando a caneca verde entre as mãos.
Não olhe para cima assim de repente!
Como é duro não olhar você.
Chegamos ao ponto de não falar 
e não se preocupar, e aquilo 
foi quase feliz. Então, mais tarde,
quando você deitou sobre o cotovelo no carpete 
não senti nada além de uma punhalada 
de dor me dizendo o que era, 
e não posso dizer para você, nem uma palavra.


The Divide

I keep thinking of you - which is ridiculous.
These years between us like a sea.
And diginity that came with growing older
would stop my pencil on the paper.
The player was open; you asked for Stones;
got that, got steaming coffee, conversation.
The heavy curtains kept a wild night out.
I keep thinking your eyes, your hands.
There is no reason for it, none at all.
You would say I can't be what I'm not,
yet I can't not be what I am.
Where does that leave us? What can we do?
The silence after Jagger was like a cloak
I'd have thrown over you - only the wind
was left, and the cloak ticked as you sipped,
clutching the green mug in both hands.
Don't look up suddenly like  that!
How hard is not  to watch you.
We had got to stage of not talking
and not worrying, and that
was almost happy. Then, late,
when you lay on one elbow on the carpet
I could feel nothing but that hot knife
of pain telling me what it was,
and I can't tell you about it, not one word.