sábado, 30 de outubro de 2010

Walt Whitman





Folhas de Relva

Vadie na relva comigo... solte o nó da garganta,
Nada de palavras música rima alguma... nem bons-costumes ou sermões,
          nem mesmo os melhores,
Só quero sua calma, o zumzum de sua voz valvulada.

Lembro da gente deitado em junho, numa transparente manhã de verão;
Você pousou sua cabeça sobre os meus quadris e delicadamente veio pra cima de mim,
E desabotoou a camisa do meu peito, e mergulhou sua língua no meu coração nu,
E estendeu a mão até tocar minha barba, depois até tocar meus pés.

De repente se ergueram e grassaram à minha volta a paz e a sabedoria que superam
          toda arte e argumento desta terra;

domingo, 17 de outubro de 2010

Mia Couto




A despedideira

Quando ele me dirigiu a palavra, nesse primeiríssimo dia, dei conta de que, até então, nunca eu tinha falado com ninguém. O que havia feito era comerciar palavra, em negócio de sentimento. Falar é outra coisa, é essa ponte sagrada em que ficamos pendentes, suspensos sobre o abismo. Falar é outra coisa, vos digo. Dessa vez, com esse homem, na palavra eu me divinizei. Como perfume em que perdesse minha própria aparência. Me solvia na fala, insubstanciada.

Lembro desse encontro, dessa primogénita primeira-vez. Como se aquele momento fosse, afinal, toda minha vida. Aconteceu aqui, neste mesmo pátio em que agora o espero. Era uma tarde boa para a gente existir. O mundo cheirava a casa. O ar por ali parava. A brisa sem voar, quase nidificava. Vez e voz, os olhos e os olhares. Ele, em minha frente, todo chegado como se a sua única viagem tivesse sido para a minha vida.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Rainer Maria Rilke





Como outras pessoas arrasadas pelo sofrimento podem alcançar o profundo e fértil solo para a grande paciência? Já me fiz essa pergunta várias vezes, sem ter chegado a uma explicação. Mas é preciso admitir que dificilmente há outra coisa que se ofereça ao nosso olhar em tão variadas manifestações - do exemplo banal até a mais inesquecível forma - como o fato de que a vida, nas circunstâncias mais insultantes, tormentosas, até mesmo mortais, vicejou; de que pessoas foram capazes de amá-la quando ela era horrível em toda parte. E até mesmo o fato de que indivíduos que haviam levado um destino radiante vivido com indiferença, sem muito prazer e participação, desfraldaram a alegria e a segurança de seu coração quando, após uma queda repentina de sua situação no desespero, viram-se doentes, maltratados e no fundo de prisões insondáveis; de que só então tiveram direito de realmente conhecer e desfrutar essa alegria e segurança. Eu, quando pude e com grande zelo, fui no encalço de tais histórias de vida, e, apesar de não ter visto brilhar em nenhuma delas o próprio segredo que torna possíveis tais sobrevivências colossais, vivo na constante convicção de que elas ocorrem o tempo todo.