segunda-feira, 27 de junho de 2011

Czeslaw Milosz



A assim chamada vida 

A assim chamada vida, quer dizer
Tudo o que é assunto de telenovela
Não lhe parecia digno de relatar.
Mesmo que quisesse falar, não o sabia.
Admiravam-no as histórias de homens e mulheres
Que se iam arrastando até à deslembrança coruscante.
Ele próprio só sabia cerrar os dentes, aguentar e
esperar que a velhice inviabilizasse os dramas,
que a novela de amores, ódios, tentações e traições
rebentasse como uma bola de sabão.






sexta-feira, 24 de junho de 2011

floribundo



Trazia uma lembrança feliz de quase tudo que vivera na graduação. Meia dúzia de amigos, seus primeiros porres, um namoro mal resolvido. Gostava de passar as tardes num balanço atrás de um bambuzal, fumando com os amigos alguns baseados, diluindo na memória as aulas, deixando que tempo escorresse com calma numa despreocupada imprevidência. Uma vida lazer, como se diz.
Preferia se lembrar dos dias bonitos, quando fazia frio e todos caminhavam agasalhados sob a luz do sol, que percorria a grama miúda, já cinzenta, e que aos poucos ia sumindo, desfazendo-se no chão com a secura do inverno, até quase restar somente o barro, que por sua vez, tornaria então, como que por contraste, mais generosa a vista da desconcertante floração de ipês, que naquela época do ano inundavam o campus e pareciam tornar a vida mais alegre. 
E recordava especialmente de quando era preciso parar o carro antes da faixa pra que um pedestre com a mão esticada prosseguisse, e então, atrás dele, cruzassem também, em pequenos grupos, jovens calouros, satisfeitos e ainda sem carro, tranquilos, preguiçosos, taciturnos ou sonolentos, sobretudo entusiasmados por estarem ali, atravessando a faixa a caminho da UnB.
A luz do sol que refletia sobre o pára-brisa fixou-se em sua memória como um quadro, onde bem ao fundo, muito além dos pedestres, avistava também uma diminuta porção do lago e a névoa que sobre ele ascendia devagarinho, e antes disso, num plano mais próximo, assim, intermediário, um modesto ipê, já antigo, que coloria a grama com as pétalas amarelas das flores que se acomodavam ao chão no formato de um círculo caprichosamente mal traçado. 

terça-feira, 14 de junho de 2011

Lucian Blaga



Aos leitores

Aqui é minha casa. Ali ficam o sol e o jardim com colméias.
Vocês vêm pela trilha, olham da porta por entre as grades
e esperam que eu fale. ... Por onde começar?
Creiam em mim, creiam em mim,
sobre seja o que for pode-se falar quanto se queira:
sobre o destino e sobre a serpente do bem,
sobre os arcanjos que lavram com o arado
os jardins do homem,
sobre o céu para onde crescemos,
sobre o ódio e a queda, tristezas e crucifixões
e acima de tudo sobre a grande travessia.
Mas as palavras são as lágrimas de quem teria desejado
tanto chorar e não pôde.
São tão amargas as palavras todas,
por isso... deixem-me
passar mudo por entre vocês
sair à rua de olhos fechados.

(1924)

sábado, 4 de junho de 2011

Walt Whitman





Folhas de Relva


Já percebi que estar junto de quem gosto me basta,
Ficar na companhia dos outros, num fim de tarde me basta,
Estar cercado por suas carnes belas curiosas gargalhantes e sem fôlego me basta,
Passar no meio deles . . tocar qualquer um . . . . pousar de leve meu braço ao redor do
           pescoço dele ou dela por um momento . . . . o que é isso?
Não peço delícia melhor . . . . mergulho nisso como num mar.

Tem alguma coisa em ficar perto de homens e mulheres e no olhar e no contato e nos
          seus cheiros que satisfazem a alma,
Todas as coisas satisfazem a alma, mas essas sim satisfazem a alma.