domingo, 31 de julho de 2011

Mia Couto



A cantadeira 

Acabei a minha sessão de canto, estou triste, flor depois das pétalas. Reponho sobre meu corpo suado o vestido de que me tinha libertado. Canto sempre assim, despida. Os homens, se calhar, só me vêm ver por causa disso: sempre me dispo quando canto. Estranha-se? Eu pergunto: a gente não se despe para amar? Porque não ficar nua para outros amores? A canção é só isso: um amor que se consome em chama entre o instante da voz e a eternidade do silêncio.

Outros cantadores, quando actuam em público, se trajam de enfeites e reluzências. Mas, em meu caso, cantar é coisa tão maior que me entrego assim pequenitinha, destamanhada. Dessa maneira, menos que mínima, me torno sombra, desenhável segundo tonalidades da música.

Cantar, dizem, é um afastamento da morte. A voz suspende o passo da morte e, em volta, tudo se torna pegada da vida. Dizem mas, para mim, a voz serve-me para outras finalidades: cantando eu convoco um certo homem. Era um apanhador de pérolas, um vasculhador de maresias. Esse homem acendeu a minha vida e ainda hoje eu sigo por iluminação desse sentimento. O amor, agora sei, é a terra e o mar se inundando mutuamente.

Amei esse peroleiro tanto até dele perder memória. Lembro apenas de quanto estive viva. Minha vida se tornava tão densa que o tempo sofria enfarte, coagulando de felicidade. Só esse homem servia para meu litoral, todas vivências que eu tivera eram ondas que nele desmaiavam. Contudo, estou fadada apenas para instantes. Nunca provei felicidade que não fosse uma taça que, logo após o lábio, se estilhaça. Sempre aspirei ser árvore. Da árvore serei apenas luar, a breve crença de claridade.

Em certo momento, me extraviei de sua presença, perdi o búzio e o mar que ecoava dentro. Ele embarcou para as ilhas de Bazaruto, destinado a arrancar riquezas das conchas. Apanhador de pérolas, certeiro a capturar, entre as rochas, os brilhos delas. Só falhou me apanhar a mim, rasteirinha que vivi, encrostada entre rochas. [...]

Minha vida foi um esperadouro. Estive assim, inclinada como praia, mar desaguando em rio, Índico exilado, mar naufragado. Estive na sombra mas não fiquei sombria. Pelo menos, nas primeiras esperas. Valia-me cantar. Espraiei minha voz por mais lugares que tem o mundo.

– Esse homem me lançou um bom-olhado?

Demorasse assim sua ausência, a espera não se sujava com desespero. Me socorria a lembrança de seus braços como se fossem a parte do meu próprio corpo que me faltasse resgatar.

Para sempre me ficou esse abraço. Por via desse cingir de corpo minha vida se mudou. Depois desse abraço trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro. Agora, é dentro que tenho pele. Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma. Nesse reverso, a poeira da rua me suja é o coração. Vou perdendo noção de mim, vou desbrilhando. E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro. Todo este tempo me madreperolei, me enfeitei de lembrança.


sábado, 30 de julho de 2011

Rainer Maria Rilke





Cartas sobre Cézanne

... nunca a urze me tocou tanto, a ponto de comover-me, como recentemente, ao achar estes três ramos em sua amável carta. Desde então eles se encontram no meu Livro de Imagens, penetrando-o com seu cheiro forte e sóbrio, que no fundo nada mais é do que o perfume da terra no outono. [...]

Acredito que os pequenos ramos não podiam ser tão belos quando foram enviados: senão você teria demonstrado seu espanto. Por acaso, um se encontra agora sobre o veludo azul-escuro de um velho escrínio. É como um fogo-de-artifício: não, é mesmo como um tapete persa. Será que todas estas milhões de hastes são trabalhadas de modo tão primoroso? Veja o matiz do verde, no qual há um pouco de ouro, e o marrom morno dos sândalos nos pequenos talos, e a ruptura com seu tom interno quase verde, novo, fresco. -Ah, há dias admiro o esplendor destes três pequenos fragmentos e envergonho-me bastante de não ter sido feliz quando podia passear no meio de tudo isto, de tal abundância. Vivemos tão mal porque chegamos sempre inacabados ao presente, incapazes e dispersos em tudo.

domingo, 24 de julho de 2011

Peter Berger



Perspectivas Sociológicas

Estamos cercados de trevas por todos os lados enquanto nos precipitamos pelo curto período de vida em direção à morte inevitável. A terrível pergunta 'por quê?', que quase todo homem faz num momento ou outro ao tomar consciência de sua condição, é rapidamente sufocada pelas respostas convencionais da sociedade. A sociedade nos oferece sistemas religiosos e rituais sociais que nos livram de tal exame de consciência. O 'mundo aceito sem discussão', o mundo social que nos diz que tudo está bem, constitui a localização de nossa inautenticidade. Suponhamos um homem que desperte de noite, de um desses pesadelos em que se perde todo o senso de identidade e localização. Mesmo no momento de despertar, a realidade do próprio ser e do próprio mundo parece uma fantasmagoria onírica que poderia desaparecer ou metamorfosear-se a um piscar de olhos. A pessoa jaz na cama numa espécie de paralisia metafísica, tendo consciência de si, mas um passo além daquele aniquilamento que avultara sobre ela no pensamento recém-findo. Durante alguns momentos de consciência dolorosamente clara, pode quase sentir o cheiro da lenta aproximação da morte e, com ela, do nada. E então estende a mão para pegar m cigarro e, como se diz, 'volta à realidade'. A pessoa se lembra de seu nome, endereço, ocupação, bem como dos planos para os dias seguinte. Caminha pela casa, cheia de provas do passado e do presente identidade. Escuta o ruídos da cidade. Talvez desperte a mulher e as crianças, reconfortando-se com seus irritados protestos. Logo acha graça da tolice, vai à geladeira ou ao barzinho da sala, e volta a dormir resolvido a sonhar com a próxima promoção (...) A sociedade nos oferece nomes para nos proteger do nada. Constrói um mundo para vivermos e assim nos protege do caos em que estamos ilhados. Oferece-nos uma linguagem e significados que tornam esse mundo verossímil. E proporciona um coro firme de vozes que confirmam nossas crenças e calam nossas dúvidas latentes (...) As paredes da sociedade são uma autêntica aldeia Potemkin levantada diante do abismo do ser; têm a função de proteger-nos do terror, de organizar para nós um cosmo de significado dentro do qual nossa vida tenha sentido".

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Gyula Krúdy




O companheiro de viagem

A cidade por fim se entristecia, como arrependida da animação que abrigara. Acima dos telhados das casas fumegava a neblina de um tédio indizivelmente triste. Das janelas, filtrava-se aqui e ali uma chama de vela, sinal de que ainda não haviam morrido todos na cidade. Mas o que fazia os vivos naquele lugar? Liam livros, contavam sempre as mesmas histórias; extasiados, sentados com os braços cruzados às costas, fitavam o vazio ou inventavam projetos liliputianos para o dia seguinte; como crianças, montavam o pinheiro ao lado das casinhas de brinquedo...

O que haveria no interior das casas que impedia as pessoas de sair correndo para as ruas, a chorar, como se despertasse a consciência de que não valia a pena viver? O que perpetuava nelas a vida e permitia que sobrevivessem às noites geladas, solitárias e tristes, quando a neve congelava sobre a janela, a escuridão era mesma dos túmulos, a cama lembrava um caixão enquanto ficavam deitadas, insones, rangendo os dentes, porque uma mosca que dormia seu sono invernal despencara do teto sobre o nariz? O que animava a espera sem sentido pela manhã? O que haveria amanhã - santa missa, casamento ou morte - em cujo nome seria digno passar às golfadas a noite gélida, longa e amarga, quando o relógio da torre mal batia as horas?  

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Virginia Woolf



Noite de festa

"Ah, somos uma raça ingrata! Quando olho para a minha mão no peitoril da janela e penso no prazer que ela já me deu, como tocou em seda e cerâmica, em paredes quentes, como se espalmou na grama úmida ou banhada de sol, deixou o Atlântico esguichar por seus dedos, apoderou-se de jacintos e narcisos, colheu ameixas maduras, nunca por um segundo desde que eu nasci deixou de me falar de quente e frio, molhado ou seco, espanta-me que eu use esta maravilhosa composição de carne e nervos para escrever invectivas à vida. No entanto é isso que fazemos. Pense bem a este respeito, a literatura é o registro do nosso descontentamento."