terça-feira, 17 de abril de 2012

Isaiah Berlin



O sentido de realidade

Quando dizemos que conhecemos bem o caráter de alguém, que uma determinada ação não poderia ter sido realizada pelo homem em questão; ou, alternativamente, que vemos tal ou qual coisa como totalmente característica dele, precisamente o tipo de coisa que ele e somente ele pode fazer - uma percepção que ao mesmo tempo depende de nosso conhecimento quanto a seu estilo de vida e à sua índole ou coração e aumenta a compreensão que temos deles -, que tipo de conhecimento estamos afirmando? 

Se fôssemos pressionados a enunciar as leis psicológicas gerais a partir das quais teríamos feito tais deduções, as coisas sobre as quais essas generalizações estariam construídas, daríamos com os burros n'água imediatamente. Se poderíamos ou não, teoricamente, chegar à nossa compreensão íntima da personalidade única de nosso amigo (ou inimigo) através de tais meios científicos, eu não sei - mas parece evidente que até hoje ninguém jamais chegou a este tipo de conhecimento através de nenhum desses métodos. [...]

O que torna um homem tolo ou sagaz, sensível ou cego, em oposição a instruído ou culto ou bem informado, é a percepção dessas nuances únicas de cada situação como tal, em suas diferenças específicas - daquilo nela que a diferencia de todas as outras situações, isto é, daqueles aspectos que a tornam insuscetível de tratamento científico, pois há nela aquele elemento que nenhuma generalização, porque ela já é uma generalização, pode cobrir. [...]

O que estou tentando descrever, em resumo, é um auto-ajustamento sensível àquilo que absolutamente não pode ser medido, pesado ou plenamente descrito - aquela capacidade chamada de insight imaginativo, no mais alto grau de gênio - que historiadores, romancistas, dramaturgos e pessoas comuns dotadas  de compreensão da vida (ao seu nível normal chamado de senso comum) exibem igualmente. [...]

Tentar analisar e descrever o que acontece quando assim compreendemos [alguém] é impossível...[...] Há um elemento de improvisação, um tocar de ouvido, de ser capaz de captar a situação, de saber quando saltar e quando ficar quieto, para o qual nenhuma fórmula, nenhuma panacéia, nenhuma receita genérica, nenhuma habilidade de identificar situações específicas como instâncias de leis gerais pode ser substituído. [...] Não há substituto para um sentido de realidade. [...]

O que o homem faz e suporta, como e por que?

A noção de que resposta a estas questões podem ser fornecidas pela formulação de leis gerais, a partir das quais o passado e o futuro de indivíduos e sociedades podem ser previstos com sucesso, é que levou a concepções equivocadas tanto na teoria quanto na prática: a histórias e teorias pseudocientíficas e fantasiosas do comportamento humano, abstratas e formais a expensas dos fatos, e a revoluções e guerras e campanhas ideológicas conduzidas na base de certezas dogmáticas sobre seu produto - enormes equívocos, que custaram a vida, a liberdade e a felicidade de muitíssimos seres humanos inocentes.

Milan Kundera



Os testamentos traídos

Suspender o julgamento moral não é a imoralidade do romance, é a sua moral. A moral que se opõe à irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente e sem compreender. Esta fervorosa disponibilidade para julgar é, do ponto de vista da sabedoria do romance, a asneira mais detestável, o mal mais pernicioso. [...]
A criação do campo imaginário em que o julgamento moral fica suspenso foi uma proeza de imenso valor: somente aí podem desabrochar os personagens romanescos, ou seja, os indivíduos concebidos não em função de uma verdade preexistente, como exemplos do bem ou do mal, ou como representações de leis objetivas que se confrontam, mas como seres autônomos fundamentados em sua própria moral, em suas próprias leis.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Marcel Proust



No caminho de Swann

Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago. Em breve,  maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo.  Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.  De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada de mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. é tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que eu procuro não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? não apenas explorar; criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar  na sua luz.

Walt Whitman



Quando ouvi pelo fim do dia

Quando ouvi, pelo fim do dia, como o meu nome havia sido
recebido com aplausos no Capitólio, ainda assim não foi
feliz para mim, a noite que se seguiu;
E, quando festejei, ou, quando os meus planos foram atingidos,
assim mesmo não me senti feliz;
Mas, no dia em que cedo me levantei, de perfeita saúde,
renovado, cantando, inalando o maduro fôlego outonal,
Quando vi a lua cheia, a oeste, ficando pálida e a desaparecer
na luz da manhã,
Quando vaguei sozinho sobre a praia e, despindo-me, me banhei,
rindo com as águas frias, e vi o sol nascer,
E quando pensei em como o meu querido amigo, o meu amante, estava a
caminho, Oh, então senti-me feliz;
Então, cada fôlego me foi mais doce – e todo o dia, meu alimento
me nutriu mais – e o belo dia passou bem,
E o seguinte chegou com igual alegria – e com o próximo, pelo fim da tarde,
chegou o meu amigo;
Naquela noite, quanto tudo estava calmo, ouvi as águas rolar
continuamente, lentas sobre as margens,
Ouvi o assobio sussurrado do líquido e das areias, como que dirigindo-se a
mim, cochichando, felicitando-me,
Porque aquele que amo dormia comigo sob a mesma coberta
na noite fria,
No sossego, nos outonais raios de luar, seu rosto inclinado
sobre mim,
Seu braço em redor do meu peito, suavemente – e naquela noite
fui feliz.