sábado, 14 de dezembro de 2013

Carlos Drummond de Andrade



Resíduo


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Rafael R. Macêdo



[um copo de cerveja quente, um isqueiro e um cigarro]

Na escada que leva aos banheiros, um rapaz magro está parado, na altura do terceiro degrau. Blusa de algodão marrom, mangas recolhidas, listras brancas. As mãos repousam sobre o corrimão amarelo claro, preso à parede vermelha na mesma altura onde se inicia sua metade superior: um apanhado de espelhos gastos, distribuídos por ambos os lados até o teto.

No mesmo instante, mais acima, ao final do primeiro lance de escadas, uma jovem também parada. Vestido de alças azuis, jeans escuro, cobalto. A barra pela metade das coxas, grossas e resguardadas numa delicada meia-calça escura, discretamente rendada. Acaba de sair do banheiro, um tanto alta e desajeitada. Disfarça. Observa surpresa o rapaz lá embaixo. Permanece imóvel, como se congelada. 

Ele prossegue em sua direção. Sobe decidido o que lhe falta da escada. Aflita, ela arregala os olhos, confere ao lado os que passam, então sorri, respirando fundo e relaxando os ombros, como se desabrochasse. A rara combinação de malícia e ternura pela qual ele sempre se apaixonou.

Então eles se beijam com força. Francamente desesperados. Como que precipitando ali uma vontade urgente, dolorosamente condensada pelo passar dos anos. As mãos dele, dedos curtos e modestos, percorrem a pele de seu rosto macio, seu anguloso maxilar. Depois, com calma, recolhem até detrás das orelhas as mechas do seu cabelo escuro, levemente ondulados, e ainda, sorrindo, seus precoces fiapos brancos. Tudo num tamanho curto, colados ao corpo, um chanel de pontas, como se diz. 

Feito isso, ele então conforta sua nuca molhada com uma das mãos. A outra repousa esquecida, suave, sobre a cintura dela, sustentando ainda um copo de cerveja quente, o isqueiro e um cigarro de palha apagado. Tudo a um palmo de onde se começa o vestido, que lhe deixa as costas nuas, ora pressionadas, ora refletidas contra o espelho.

Pronunciam qualquer tipo de acordo, um lugar talvez, baixinho, feito prece. Ela suspira hesitante, pensa no namorado, tonta e apreensiva, no mesmo instante em que despeja lentamente seus braços magros sobre o peito dele, apoiando em seus ombros com carinho. Beijam-se mais uma vez de maneira terna, um abraço breve e íntimo como antigamente. Seguem sozinhos, em sentidos contrários. Ele, atordoado, em direção ao banheiro.

Em quarenta minutos estarão agarrados, confidentes, suados dentro de um carro, protegidos pela chuva que tomou conta da cidade enquanto tudo aconteceu. 

Georges Bataille



História do Olho

          Havia no corredor um prato de leite para o gato.
          - Os pratos foram feitos para a gente sentar - disse Simone.  - Quer apostar que eu me sento no prato?
          - Duvido que você se atreva - respondi, ofegante.
          Fazia calor. Simone colocou o prato num banquinho, instalou-se à minha frente e, sem desviar dos meus olhos, sentou-se e mergulhou a bunda no leite. Por um momento fiquei imóvel, tremendo, o sangue subindo à cabeça, enquanto ela olhava meu pau se erguer na calça. Deitei-me a seus pés. Ela não se mexia; pela primeira vez, vi sua "carne rosa e negra" banhada em leite branco. Permanecemos imóveis por muito tempo, ambos ruborizados.
          De repente, ela se levantou: o leite escorreu por suas coxas até as meias. Enxugou-se com um lenço por cima da minha cabeça, com um pé no banquinho. Eu esfregava o pau, me remexendo no assoalho. Gozamos no mesmo instante, sem nos tocarmos. Porém quando sua mãe retornou, sentando-me numa poltrona baixa, aproveitei um momento em que a menina se aninhou nos braços maternos: sem ser visto, levantei o avental e enfiei a mão por entre suas coxas quentes.
          Voltei pra casa correndo, louco para bater punheta de novo. No dia seguinte, amanheci de olheiras. Simone me olhou de frente, escondeu a cabeça contra meu ombro e disse: "Não quero mais que você bata punheta sem mim". 

Georges Bataille

História do Olho (II)


          Um deslumbramento interior me esgotava e não sei o que teria acontecido se, de repente, Simone não tivesse se movido ligeiramente; abriu as coxas, abriu-as tanto quanto podia e me disse, em voz baixa, que não conseguia mais se conter; inundou o vestido, com um estremecimento; no mesmo instante, a porta jorrou nas minhas calças.
          Deitei-me então na grama, o crânio apoiado numa pedra lisa e os olhos abertos sobre a Via Láctea, estranho rombo de esperma astral e de urina celeste cravado na caixa craniana das constelações; aquela fenda aberta no topo do céu, aparentemente formada por vapores de amoníaco brilhando na imensidão - no espaço vazio onde se dilaceram como um grito de galo em pleno silêncio - refletia no ininito as imagnes simétricas de um ovo, de um olho furado ou do meu crânio deslumbrado, aderido à pedra. Repugnante, absurdo grito do galo coincidia com a minha vida: quer dizer, nesse momento eu era o Cardeal, devido à fenda, à cor vermelha, aos gritos dissonantes que me provocara dentro do armário e, também, porque os galos são degolado...


Para outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o grito do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam "os prazeres da carne", na condição de que sejam insossos.
          Mas desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama "os prazeres da carne", justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que era tido por "sujo". Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com a devassidão habitual, porque ela contamina a devassidão e, afinal de contas, deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. A devassidão que eu conheço não suja apenas meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado...

Gustav Flaubert




Educação Sentimental

           Viajou.
     Conheceu a melancolia dos paquetes, o frio despertar sob a tenda de campanha, o atordoamento das paisagens e das ruínas, a amargura das simpatias interrompidas.
           Voltou.
        Frequentou a sociedade, e teve novos amores. Mas a permanente lembrança do primeiro tornava-os insípidos; e além disso, a veemência do desejo, a própria flor da sensação, já não existia. Também suas ambições espirituais tinham diminuído. Passaram-se os anos; e suportava a ociosidade da sua inteligência e a inércia do seu coração.
         Em fins de março de 1867, ao cair da noite, estava sozinho em seu gabinete, quando uma mulher entrou.
           - A Senhora Arnoux!
           - Frédéric!
           Ela agarrou-lhe as mãos, puxou-o, docemente até a janela, e olhava-o repetindo:
           - É ele! Sim, é ele!
        Na penumbra do crepúsculo, só lhe via os olhos, debaixo do véu de renda preta que lhe velava o rosto.
          Depois de pousar na borda da lareira uma pequena carteira de veludo cor de vinho, sentou-se. Ambos estavam incapazes de falar, sorrindo um para o outro.
          Finalmente, Frédéric fez-lhe uma série de perguntas sobre ela e sobre o marido. 
          Habitavam nos confins da Bretanha, para viver economicamente e pagar as dívidas. Arnoux, quase sempre doente, parecia agora um velho. A filha estava casada em Bordéus, e o filho num regimento, em Monstagnem. Depois, ela ergueu a cabeça: 
            -Mas torno a vê-lo! Sinto-me feliz!
            [...]
            Então, numa voz trêmula, e com demorados intervalos entre as palavras:
            -Tinha  medo! Sim... medo de você... e de mim!
     Esta revelação fê-lo sentir como que um arrepio de volúpia. O coração batia-lhe apressadamente. Ela continuou:
           - Desculpe por eu não ter vindo antes. [...]
           E falou-lhe do lugar onde morava.
         Era uma casa baixa, de um só pavimento, com um jardim cheio de enormes buxos e uma avenida ladeada de castanheiros que subia até o alto da colina, de onde se via o mar.
           - Vou pra lá, e sento-me num banco, ao qual dei o nome de banco do Frédéric. 
           Ela confessou o desejo de dar uma volta, pelo seu braço.
       A luz dos estabelecimentos iluminava-lhe, a intervalos; o perfil pálido; depois, a sombra novamente a envolvia; e, no meio das carruagens, da multidão e do ruído, seguiam sem se distrair de si próprios, sem nada ouvir, como aqueles que caminham juntos no campo, sobre um leito de folhas mortas.
         Contavam um ao outro os dias antigos, os jantares ao tempo da Art Industriel, a sua maneira de esticar as pontas do colarinho, de esmagar cosméticos nos bigodes, e outras coisas mais íntimas e profundas. Que emoção emoção ele sentira ao ouvi-la cantar pela primeira vez! Como ela estava bela, no dia da sua festa, em Saint-Cloud! Lembrou-lhe o jardinzinho de Auteuil, as noites de teatro, um encontro no bulevar, antigos criados, a babá preta. 
          Ela espantava-se da sua memória. Contudo, disse-lhe: 
          - Às vezes, suas palavras voltam-me como um eco longínquo, como som de um sino trazido pelo vento; e  parece-me tê-lo, quando leio passagens de amor nos livros.
     - Tudo o que neles se censura como exagerado, senti-o por você, - disse Frédéric. - Compreendo os Werther, - aos quais não aborrece o pão com a manteiga de Carlota.
          - Pobre amigo querido!
          Suspirou, e, ao fim de longo silêncio:
          - De qualquer modo, amamo-nos muito.
          - Mas não pertencemos um ao outro!
          -Talvez tenha sido melhor assim - disse ela.
          - Não! Não! Que felicidade teria sido a nossa!
          - Oh! Acredito, com um amor como o seu!
          E devia ser bem forte, para ainda durar ao cabo de tão longa separação! 
          Frédéric perguntou-lhe  como tinha descoberto que ele a amava.
          - Foi uma  noite em que me beijou o pulso, entre a luva e o punho. Disse de mim pra mim: "Mas ele ama-me, ele ama-me". Tinha medo de ter certeza, contudo. A sua reserva era tão deliciosa, que eu sentia o prazer de uma homenagem involuntária e contínua.
           Ele nada lamentava. Os sofrimentos de outrora tinha sido pagos.

            
     

sábado, 28 de setembro de 2013

Rainer Maria Rilke



Sou apenas um de vossos mais humildes monges
fitando da minha cela a vida lá fora,
das pessoas mais distante que das coisas.
...
Não me julgo presunçoso se digo:
Ninguém realmente vive sua vida.
As pessoas são acidentes, vozes, fragmentos,
medos, banalidades, muita alegria miúda,
já crianças, envoltas em dissimulação,
quando adultos, máscaras; como rostos - mudas.

Penso muitas vezes: deve haver tesouros
onde se armazenam todas essas muitas vidas,
como armaduras ou liteiras, berços
que nunca portaram alguém francamente real,
vidas qual roupas vazias que não se sustentam
de pé e, despencando, agarram-se
às sólidas paredes de pedra abobadada.

E quando à noite vagueio
fora do meu jardim, imerso em tédio,
sei que os caminhos todos que se estendem
levam ao arsenal de coisas não vividas

Não há árvore ali, como se a terra se guardasse
e com ao redor da prisão ergue-se o muro,
sem janela alguma, em seu sétuplo anel.
E seus portões, de trancas de ferro,
que repelem os que querem passar,
têm suas grades todas feitas por mãos humanas.

sábado, 14 de setembro de 2013

Pedro Juan Gutiérrez



   
Trilogia suja de Havana

     Então finalmente nos esbarramos um no outro, e foi de primeira. Eu me divertia muito porque sua luxúria comigo a transformava numa das grandes pecadoras da história da humanidade. Era só sentir a pele do meu pau roçando nos lábios vaginais e ela perdia a cabeça. Mandava à merda toda a pose intelectualóide e virava uma doida pornográfica. E tudo sem uma gota de rum, sem um baseado. Nada. Não precisava de nada. A capella. Falava sem parar e quando começava a ter um orgasmo atrás do outro, falava mais e mais. Toda aquela parafernália me excitava muito. Não posso me fazer de santo agora e dizer que odiava suas contorções mentais. Não, não. A verdade é que aquilo tudo me excitava muito.
       "Quero ser sua escrava, papito. E quero que você me amarre e me bata de chicote. Ali estão a corda e o cinto de couro. Quero que você me bata e me faça trepar com quatro homens ao mesmo tempo. Quero ser puta e foder com todos esses homens na sua frente. Ahh, me come. Olha que bunda mais dura eu tenho. É toda sua, seu veado, toda sua. E vou virar sapata pra você. Arranja uma branca bonita e vai ver que eu endoido ela pra você. Quero ser sua escrava, papi. Me bate. Me chicoteia, papito. Me morde. Me marca com seus dentes. Enfia o dedo no meu cu."
       Tinha revista de sacanagem e gostava de ter seus orgasmos olhando para aquelas lindas louras de olhos verdes. Bom, eu me divertia com aquilo tudo e nunca pretendi entender. É impossível entender tudo. A vida não dá pra ser vivida e entendida. Você tem que escolher.
      [...]
      A vida é assim, safada. Se você tem um caráter forte, é intransigente e depreciativo. O rigor e a disciplina transformam você nunca pessoa implacável. Só os fracos são submissos e parasitários. E precisam do forte. Sacrificam tudo esperando alguma migalha. Sacrificam sua dignidade. Sei que é complicado dizer isso em voz alta, mas a verdade é que uns mandam e outros obedecem. Eu não posso obedecer a ninguém. Nem a mim mesmo. E isso me custa caro. pago bem caro.
     Então você está cheio de fúria  e de raiva e tem que relaxar. Todo mundo sabe como: álcool, sexo, drogas. Bom, outros se fartam de chocolates ou de comida compulsiva, sei lá. Aqui no bairro todo mundo usa muito sexo e um pouco de álcool e maconha. E também há os místicos, e são os que vivem melhor. Mas isso é outra coisa. Vamos deixar de lado os místicos e os exotéricos, são muito poucos. Não contam.

Wislawa Szymborska



A vida na hora

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço em cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira à província.
Meus instintos são amadorismos.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá pra retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como um casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que eu não conheço.

Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar pra sempre naquilo que fiz.

terça-feira, 16 de julho de 2013

Pedro Juan Gutiérrez



O Rei de Havana

Às vezes, gostava de observar. Agora, tinha uma fome de cão. Sem comida e sem dinheiro, teria de observar melhor ainda. Quem sabe aparecia alguma coisa comestível. Chegou ao Malecón. Sentou-se no muro, para tomar a fresca. Como sempre acontecia com ele, tinha tanta fome que não sentia mais. Fazia muito calor, embora o crepúsculo já se acendesse sobre o mar com tintas alaranjadas, cinzentas, vermelhas, rosadas, azuis, violeta, brancas. Só vendo pra crer. O sol afundando no mar e todas aquelas cores no céu. Sem camisa, Rey sentia o suor escorrer das axilas e pelas costas até as nádegas. O saco também estava suando e ele todo fedia a bodum forte. Fazia muitos dias que não tomava banho. Cheirou as axilas. Gostava daquele cheiro. Cheirava a si mesmo várias vezes por dia. Ficava excitado de se cheirar. Sentiu uma leve ereção. Mas estava com vontade de mijar. Sentou-se bem na beirada do muro. Tirou a vara meio dura e mijou no mar. Uma mulher que estava beijando o namorado ficou olhando fixamente pra ele, fascinada por aquele belo instrumento. Rey percebeu e gostou. Mexeu um pouco o pau. Cuspiu na cabeça para deslizar melhor e se masturbou um pouco em honra de sua admiradora.  O homem, de costas, não fazia ideia do que estava acontecendo. Ela segurava a cabeça dele, beijava seu pescoço, e seus olhos se arregalavam olhando a piroca de Rey. Ele tinha se excitado cheirando a si próprio, como fazem os macacos e muitos outros animais, inclusive o  homem. E agora tinha uma admiradora entusiasmada que a qualquer momento era capaz de largar o noivo e se aproximar de Rey para completar amavelmente sua masturbação.  Mas Rey se lembrou da fome e pensou: "Se eu gozar agora, desmaio, porra!" Guardou o material, olhou uma última vez a jovem fã e saiu andando pelo Malecón, para o porto. Deteve-se um instante e correu os olhos em busca de Magda: o ponto de camelo na esquina de San Lázaro e Marqués González, a porta da capela, a esquina do hospital, o parque Maceo.  Olhou devagar. Magda não estava por ali. Estava louco para vê-la, para deitar com ela, beijar-lhe a bunda e mergulhar numa daquelas trepadas loucas que duravam três dias e terminavam quando o pau e a buceta lhes ardiam tanto que tinham de parar senão começavam a sangrar. "Por onde será que anda aquela louca? Com quem está?", perguntou-se algumas vezes, e em seguida deixou o assunto pra lá.  Seguiu pelo Malecón, mais dois quarteirões. Não sabia para onde ir. Como fome e sem dinheiro. Sua morte e sua desgraça era que vivia exatamente o minuto presente. Esquecia com precisão o minuto anterior e não se antecipara nem um segundo ao próximo. Tem quem vida dia a dia. Rey vivia minuto a minuto. Só o momento exato que respirava. Aquilo era decisivo para sobreviver e ao mesmo tempo o incapacitava de fazer qualquer projeto positivo. Vivia do mesmo modo que a água estancada num charco, imobilizada, contaminada, se evaporando em meio a uma podridão asquerosa. E desaparecendo.    

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Ian McEwan



Amor sem fim (1)


E ai meu Deus, como eu a amava. Por mais que pensasse em Clarissa, na lembrança ou por antecipação, o fato de tê-la outra vez - sua pele, sua voz, a qualidade exata do amor que transitava entre nós, sua simples presença animal - sempre me trazia, juntamente com a familiaridade, um toque de surpresa. Talvez esse tipo de amnésia tenha alguma função: os indivíduos incapazes de afastar seus corações e suas mentes do ente amado estão fadados a fracassar nos embates da vida e não deixam nenhuma herança genética. Bem no centro do meu escritório, plantados sobre o diamante amarelo do tapete bokhara, Clarisse e eu nos beijamos e abraçamos. [...]

Ainda abraçados, fomos do escritório para o quarto. Enquanto Clarissa continuava a me contar mais sobre os problemas conjugais de seu irmão e eu descrevia o artigo que havia escrito, nos preparamos para a viagem noturna rumo ao sexo e ao sono. [...] O trabalho me envolvera num véu de contentamento abstrato, e com sua chegada, apesar da triste história que ela contara, eu tinha me recuperado por completo. Não sentia medo de nada. Ao nos deitarmos, de rostos colados como na noite anterior, faria algum sentido perturbar nossa felicidade com o relato do telefonema de Parry? Diante de tudo que havíamos vivido na noite anterior, poderia eu destruir nossa ternura com as suspeitas angustiantes de ter sido seguido? As luzes haviam sido diminuídas, em breve seriam apagadas.[...] De olhos fechados, tracei na escuridão absoluta os belos lábios de Clarissa. Num gesto carinhoso, ela mordeu com força o nó do meu dedo. Há momentos em que o cansaço é o melhor afrodisíaco, eliminando qualquer outro pensamento, conferindo a membros pesados um movimento sensual em câmera lenta, promovendo a generosidade, a aceitação, o abandono total. Caímos de nosso dias respectivos como insetos sacudidos de uma rede.

Ian McEwan

Amor sem fim (2)

Eles estão de volta ao quarto. Ela se pergunta se foi longe demais. Mas lá está, prematuramente fora da banheira, procurando pelas roupas de baixo, enquanto a dor na parte de baixo da coluna continua a se espalhar. Eles raramente brigam. Ela, em especial, não é boa em matéria de discussão. Nunca foi capaz de aceitar as regras de combate que lhe permitem ou exigem dizer coisas em que não acredita ou que são distorções da verdade, quando não mentiras puras. Não pode escapar à sensação de que cada tirada hostil mais a afasta não apenas do amor de Joe, mas de todo o amor que ela sentiu na vida - fazendo-a pensar que, com isso, vem à tona uma maldade que genuinamente corresponde ao mais profundo de seu ser.

Joe tem outro tipo de problema. Para começar, a raiva nele leva tempo para se manifestar, e, mesmo quando isso acontece, sua inteligencia não o ajuda, ele esquece o que devia dizer e não é capaz de marcar pontos na discussão. E não consegue vencer o hábito de responder uma acusação com uma resposta racional e pormenorizada, em vez de contra-atacar com outra acusação. Não é difícil desnorteá-lo, com uma súbita irrelevância. A irritação bloqueia a compreensão de seu próprio caso, e só depois, quando ele se acalma, é que lhe vem à mente uma defesa bem articulada. Além disso, é especialmente difícil ser duro com Clarissa, porque ela se fere com muita facilidade. Palavras raivosas deixam uma marca imediata em seu rosto.

Ian McEwan

Amor sem fim (3)

"Tenho de me preparar para sair". Partiu às pressas, deixando a conversa inconclusa. [...]

Deixei-me ficar na cozinha, lavando os pratos, terminando o café e recolhendo as folhas da carta. A espontaneidade do nosso relacionamento, preservada sem nenhum tormento durante anos, subitamente me parecia um engenho complexo, um mecanismo finamente balanceado, como um antigo relógio de carruagem. Estávamos perdendo a capacidade de mantê-lo funcionando, ou de fazer isso sem um enorme esforço de concentração. Todas as vezes que eu falara com Clarissa ultimamente, preocupava-me com as consequências de minhas palavras. [...]

A consciência de si próprio acaba com o erotismo. Na cama, apenas uma hora e meia antes, nós de algum modo não havíamos sido convincentes, como se entre nossas mucosas houvesse se introduzido um fino pó, ou seu equivalente mental, porém tão tangível quanto a areia da praia. Sentado à mesa da cozinha depois da partida de Clarissa, desenvolvi uma melancólica sequência causal que ia do psíquico ao somático - maus pensamentos, pouca excitação, lubrificação mínima - e terminava na dor.

Ian McEwan

Amor sem Fim (4)

Juro que não sabia para onde ia ao atravessar a cozinha. Chegando à porta do escritório de Clarissa, imaginei que estava entrando para pegar meu grampeador. Ao cruzar o pequeno aposento, talvez tenha me dito que queria ver se o resto da minha correspondência matinal não estava misturado à dela, como às vezes ocorria. Havia uma barreira moral a ser ultrapassada, e suponho que pra isso servia a autopersuasão que eu atribuíra a ela. 

Chegando à escrivaninha, na verdade agi como se estivesse procurando o grampeador, que encontrei debaixo de um jornal. Soltei até um grunhido de satisfação. Será que havia alguém no aposento, uma presença celestial, que eu esperava convencer? Seriam tais gestos os vestígios - genética ou socialmente programados - de uma fé numa divindade vigilante? Minha encenação, assim como  minha honestidade, minha inocência e meu amor-próprio, desmoronou no momento em que enfiei o grampeador no bolso mas não saí do escritório, continuando, em vez disso, a remexer nos papéis empilhados na escrivaninha.

Claro que não podia mais negar o que estava fazendo. Disse comigo que agia assim para desfazer nós, para trazer luz e compreensão às trevas do não falado. Tratava-se de uma dolorosa necessidade.[...] Se minhas suspeitas estivesses infundadas, mais vital ainda que as descartasse. Abri a gaveta onde ela guardava a correspondência recente. Cada ato sucessivo, cada momento de penetração mais profunda, representava um grau adicional de vileza.  Com o correr dos segundos, eu me importava cada vez menos com o fato de estar me comportando daquele modo. Algo duro e apertado - uma tela, uma carapaça - se formava para me proteger de minha consciência.  Minhas racionalizações se cristalizaram em torno de um conceito parcial de justiça: eu tinha o direito de saber o que distorcia as reações de Clarissa em relação a Parry. O que a impedia de tomar meu partido? Algum estudantezinho barbudo de pós-graduação metido a fodedor? Peguei um envelope posto no correio três dias antes. O endereço havia sido escrito em itálico, letras pequenas e artisticamente irregulares. Tirei dali uma única folha. A saudação por si só me deu um aperto no coração. Querida Clarissa. Mas não era nada. Uma velha amiga do ginásio dando notícias da família. Escolhi outra: seu padrinho, o eminente professor Kale, nos convidando para almoçar no dia do aniversário dela. Já sabia disso. Olhei de relance para uma terceira carta, de Luke, e depois para uma quarta, uma quinta, e a inocência cumulativa de toda a correspondência começou a me dar náuseas. Passei a vista por outras três. Eis aqui uma vida, elas sugeriam, a vida da mulher que você diz amar, ativa, inteligente, bondosa, complexa. Que está fazendo aqui? Tentando nos manchar com seu veneno! Saia! Comecei a abrir a última carta, porém mudei de ideia. Estava me sentindo tão asqueroso que, ao deixar o escritório, apalpei o bolso para confirmar - ou dar a impressão de estar confirmando - a presença do grampeador. [...]

Minha invasão no escritório tinha sido um marco em nosso declínio e no insidioso avanço de Parry. Clarissa voltou à noite irradiando calor e até alegria, mas eu estava envergonhado demais para relaxar. Mais consciência de si próprio. Agora eu realmente tinha algo para esconder dela. Eu havia cruzado a fronteira de minha inocência. 

Ian McEwan

Amor sem fim (5)

Não havia brigas e nem mesmo escaramuças, como se soubéssemos que qualquer confrontação nos separaria pra sempre. Mantínhamos um nível mínimo de interlocução, conversinhas fiadas sobre coisas do trabalho, compras, o que comer, reparos na casa. [...]

Preservávamos nossa rotina cotidiana porque ela era a única coisa totalmente clara. O afeto já se fora, o carinho mútuo evaporara, tínhamos esquecido todos os truques do amor e nem sabíamos como começar a falar sobre isso. Dormíamos na mesma cama, porém não nos abraçávamos. Usávamos o mesmo banheiro, porém já não nos víamos nus. Tratávamo-nos de maneira escrupulosamente informal por saber que qualquer coisa a menos, por exemplo, uma polidez fria, revelaria o jogo e nos conduziria ao conflito que buscávamos evitar. O que antes parecia natural - fazer amor, ter longas conversas ou partilhar o silêncio - dava agora a impressão de ser tão difícil de conceber quanto o Quarto Relógio Marítimo de Harrison, cuja recriação seria impossível e anacrônica. Quando eu a via escovando o cabelo ou se abaixando para pegar um livro no chão, me lembrava de sua beleza como de um fato aprendido em algum manual escolar. Verdadeiro, embora irrelevante no momento. E eu era capaz de me ver pelos olhos dela como um sujeito grandalhão e desajeitado, um aríate programado biologicamente, um pólipo gigantesco de lógica comezinha com que ela havia se associado por engano. Quando lhe falava, minha voz soava monótona e enfadonha dentro de meu crânio, e cada frase, de fato cada palavra, era mentirosa. Eu vivia mergulhado numa raiva muda e num inarredável desprezo por mim mesmo. Quando nossos olhos se encontravam, era como se uma parte ruim de nós, uma presença maligna e insidiosa, erguesse as mão diante de nossos rostos para bloquear qualquer possibilidade de entendimento. Mas nossos olhos se cruzavam muito raramente e, quando isso acontecia, em um ou dois segundos fugiam, medrosos. Aqueles seres que antes se amavam nunca nos entenderiam ou perdoariam, mas a verdade é que o sentimento dominante e não reconhecido em nossa casa era então a vergonha.  

E ali estávamos, entre uma e meia e duas da manhã, deitados na cama, nos olhando fixamente sob a luz débil de um abajur, eu nu, ela numa camisola de algodão, braços e mãos se tocando porém de forma neutra, sem compromisso. Todas as dúvidas pairavam sobre nós e, durante algum tempo, nenhum dos dois ousou falar. Já era muito nos olhar olho no olho.

Ian McEwan

Amor sem fim (6)

Estávamos deitados em silêncio fazia dez minutos. Ela estava apoiada sobre o lado esquerdo e pensei ouvir os iambos arrastados de sua pulsação em meu travesseiro. Talvez fosse meu próprio ritmo. Era lento, e eu estava certo de que se tornava ainda mais lento. Não havia nenhuma tensão naquele silêncio. Olhávamo-nos diretamente nos olhos e depois nossos olhares passeavam por outras feições do rosto, dos olhos para os lábios, de volta aos olhos. Como se fizéssemos uma longa e demorada rememoração; a cada minuto que passava sem nos falarmos, nossa recuperação ganhava força sem sacrifício da tranquilidade. Sem dúvida, o poder inercial do amor, as horas, semanas e anos passados harmoniosamente em conjunto superavam as circunstâncias do presente. Não é verdade que o amor gera suas próprias reservas? A última coisa que deveríamos fazer agora, pensei, seria nos enredarmos numa troca de explicações pacientes. Na popularização da psicologia, foi dada uma importância exagerada aos benefícios de discutir um relacionamento até os últimos detalhes. Os conflitos, como qualquer organismo vivo, têm uma duração natural. O truque está em saber quando os deixar morrer. No momento errado, as palavras podem agir como descargas elétricas de um desfibrilador. A criatura pode ressuscitar numa forma patogênica, regenerada febrilmente por uma nova formulação interessante, ou por um "novo olhar" mórbido dirigido a esse ou aquele pormenor. Movi a mão e aumentei ligeiramente a pressão de meus dedos no seu braço. Os braços se abriram, o descolamento sensual acentuado por um levíssimo som explosivo. Todo o que precisávamos fazer era nos olharmos e lembrarmos. Fazer amor deixando que o resto se resolvesse por conta própria. Os lábios de Clarissa emolduraram meu nome sem que deles escapasse um som ou mesmo um sopro. Eu não conseguia afastar meu olhos de seus lábios. Tão flexíveis, tão lustrosamente ricos em cores naturais. O batom foi inventado para que as mulheres pudessem exibir uma versão piorada de lábios como aqueles. "Joe...", os lábios disseram de novo. [...]
"Joe..." Dessa vez ela sussurrou meu nome por entre os belos lábios entreabertos, e depois, franzindo a testa e respirando fundo, deu a suas palavras um tom grave e vibrante: "Joe, tudo acabou. É melhor admitirmos isso agora. Acho que está tudo terminado entre nós, não é mesmo?"

quarta-feira, 29 de maio de 2013

Philip Roth




O professor do Desejo (1)

Duvidando e esperando, querendo e temendo (prevendo um futuro movimentado e agradável em determinado momento e o mais horroroso no momento seguinte), caso-me enfim com Helen Baird - após quase três anos inteiros devotados a dúvidas, esperanças, desejos e temores.  Para alguns, como meu pai, basta ver uma mulher encostada a um piano cantando "Amapola" para decidir de estalo "Lá está minha mulher", enquanto que outros suspiram "Sim, é ela" só após um interminável drama de vacilações que os conduz à conclusão inescapável de que nunca mais devem ver aquela mulher. Casei-me com Helen quando o peso da experiência necessária para chegar à decisão monumental de abandoná-la se tornou tão imenso e tão angustiante que não pude imaginar a vida sem ela. Só quando tive certeza de que aquilo precisava acabar de imediato é que descobri quão profundamente já estava casado por meus mil dias de indecisão, por todas as intrincadas avaliações de possibilidades que, sabe-se lá como, haviam feito um caso de amor de três anos parecer tão denso de eventos humanos  quanto um matrimônio de meio século. Caso-me com Helen - e ela se casa comigo - quando atingimos o momento de impasse e de exaustão que acaba chegando a todos que passam anos e anos nesses arranjos claramente demarcados e labirínticos envolvendo apartamentos separados e férias conjuntas, presunções de devoção e noites à parte preestabelecidas, casos terminados com alívio a cada cinco ou seis meses e alegremente esquecidos por setenta e duas horas, mas retomados (frequentemente com um frenesi sexual delicioso, ainda que efervescente) após um encontro mais ou menos acidental no supermercado do bairro; ou reiniciados depois de um telefonema noturno cujo o único objetivo era o de informar o ex-companheiro ou companheira que um documentário notável ia ser exibido outra vez na televisão às dez da noite; ou após um jantar a que o casal se comprometera a comparecer havia tanto tempo que agora não seria de bom-tom recusar, obrigando os dois a cumprirem essa última obrigação social juntos. Obviamente, um ou outro poderia ter se desincumbido sozinho do compromisso do jantar, mas então ficaria faltando o cúmplice com quem trocar por cima da mesa sinais de enfado ou divertimento, nem, ao voltar de carro para casa, haveria alguém com ideias afins com que fosse possível repassar os encantos e as deficiências dos outros convidados; muito menos, se despindo para dormir, haveria um amigo ávido e sorridente, deitado já nu sobre o lençol da cama, a quem pudesse dizer que a única pessoa realmente interessante na festa era o ex-parceiro ou parceira, cujo valor não fora antes corretamente apreciado.

Casamo-nos...

Philip Roth

O professor do Desejo (2)

"Quando vi você sentado sozinho com ela de repente pensei: "Não posso fazê-lo feliz. Não vou ser capaz disso". E também fiquei em dúvida se alguém poderia. Isso me chocou tanto que simplesmente tive de ir embora. Não sei se o que pensei é verdade ou não. Talvez você também não saiba. Ou talvez saiba. Seria muito doloroso deixar você agora, neste instante, mas estou preparada pra fazê-lo se for a coisa certa. Melhor agora do que daqui a três ou quatro anos, quando você for parte do próprio ar que respiro. Não é o que eu quero, David; não é alguma coisa que eu esteja minimamente propondo. Quem diz esse tipo de coisa corre o risco terrível de ser mal compreendido, e, por favor, não me compreenda mal. Não estou propondo nada. Mas, se você acha que sabe a resposta à minha pergunta, eu gostaria de conhecê-la o mais cedo possível, porque, se você não puder ser realmente feliz comigo, então me deixe ir para Vineyard. Depois disso, me arranjo sozinha. Mas não quero dar mais de mim a alguma coisa que não vai evoluir e se transformar numa família. Nunca tive uma família que fizesse o menor sentido, e quero uma que faça. Preciso ter isso. Não estou dizendo amanhã. Mas lá adiante, é o que quero. Se não for assim, prefiro arrancar as raízes agora mesmo, antes que isso exija uma enxada. Gostaria que, se possível, nos separássemos sem uma amputação sangrenta."  

Neste ponto, embora o sol forte houvesse secado inteiramente seu corpo, ela tremeu dos pés à cabeça. "Acho que é tudo o que tenho a dizer com a energia que me sobrou. E não precisa pronunciar uma palavra. Prefiro que não diga nada, pelo menos agora. Se não for assim, isso vai soar como um ultimato, o que não é. É um esclarecimento, nada mais. Nem queria falar sobre isso, imaginei que o tempo se encarregaria de tudo. Mas, pensando bem, é o tempo que pode acabar comigo. E, por favor, não é preciso responder com sons tranquilizadores. É só que, de repente, tudo me pareceu uma tremenda ilusão. Fui muito assustador. Por favor, não fale - a menos que saiba de alguma coisa que eu deva saber."

"Não, eu não sei."

"Então vamos para casa."

Philip Roth


O professor do Desejo (3)

Ah, minha amada inocente, você não é capaz de entender e eu não consigo te dizer. Não consigo, pelo menos não nesta noite, mas dentro de um ano minha paixão já estará morta. Já está morrendo, e temo que não haja nada que eu possa fazer para salvá-la. E nada que você possa fazer. Intimamente unidos - unido a você como a mais ninguém! E nem serei capaz de erguer a mão para tocá-la... a menos que me lembre  antes que devo fazê-lo. A carne em que fui enxertado e que me ajudou a retornar algum controle sobre minha vida já não me inspirará nenhum desejo. Ah, é uma besteira! Uma idiotice! Uma injustiça! Ser roubado assim de você! E desta vida que eu amo e que mal cheguei a conhecer! E roubado por quem? Em última análise, o culpado sou sempre eu mesmo!

[...]

Durante toda a noite, pesadelos circulam pela minha cabeça como  a água pelas guelras de um peixe. Quase de madrugada acordo para descobrir que a casa não foi reduzida a cinzas nem fui abandonado em minha cama como um doente incurável. Minha solícita Clarissa ainda está comigo! Levanto a camisola, desnudo seu corpo inconsciente e começo a pressionar e a puxar seus mamilos com os lábios até que nas auréolas pálidas, aveludadas, infantis, se levantam grânulos diminutos e ela começa a gemer.  Mas até mesmo enquanto chupo num frenesi desesperado o bocado mais apetitoso de sua carne, mesmo enquanto lanço toda minha felicidade acumulada e toda minha esperança contra o medo das transformações que virão, fico na expectativa de ouvir o som mais tétrico imaginável vindo do quarto onde os sr. Barbatink e papai estão deitados, sós e sem sentidos, cada qual em sua cama feita com todo o cuidado.

terça-feira, 9 de abril de 2013

Alejandra Pizarnik



Abro la ventana

Ahora me levanto
De esta cama
Ahora
Abro la ventana
Y entra la luz
Con el viento
Ahora te siento
Y estas tan lejos
De aquí

Si un día te vas
Y ya no vuelves más
Si un día me voy
Y ya no vuelvo yo

Que largo es el mundo
Es infinito
Ayer te tuve
En mis brazos
Y hoy
Como un grano de arena
En algún suelo ajeno
Estas escondido de mí

Si un día te vas
Y ya no vuelves más
Si un día me voy
Y ya no vuelvo yo

Que grán silencio
Todo en suspenso
Que vértigo de no verte
Retumbo
Como una campana
Abro la ventana
Y entras tú
Entras tú...

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Kim Nam-jo



Oeste

Ó homen,
o que importa?

O que importa se a noite sobrevém,
como a sombra que se estende no chão
como o vento que se debruça sobre a sombra
como um rio negro que cobre o vento

O que importa se não se vê
Se o fundo do mar fica mais fundo
e se as águas aumentam em desmedida
Se no céu sobre o céu
um bando de gaivotas grasnam
E o que importa se não se vê
que elas se aproximam

O que importa se for despedida
O que importa se sol e lua andam separados
O que importa se não nos encontramos
Se tudo
submerge
para o oeste
para o oeste