sábado, 28 de setembro de 2013

Rainer Maria Rilke



Sou apenas um de vossos mais humildes monges
fitando da minha cela a vida lá fora,
das pessoas mais distante que das coisas.
...
Não me julgo presunçoso se digo:
Ninguém realmente vive sua vida.
As pessoas são acidentes, vozes, fragmentos,
medos, banalidades, muita alegria miúda,
já crianças, envoltas em dissimulação,
quando adultos, máscaras; como rostos - mudas.

Penso muitas vezes: deve haver tesouros
onde se armazenam todas essas muitas vidas,
como armaduras ou liteiras, berços
que nunca portaram alguém francamente real,
vidas qual roupas vazias que não se sustentam
de pé e, despencando, agarram-se
às sólidas paredes de pedra abobadada.

E quando à noite vagueio
fora do meu jardim, imerso em tédio,
sei que os caminhos todos que se estendem
levam ao arsenal de coisas não vividas

Não há árvore ali, como se a terra se guardasse
e com ao redor da prisão ergue-se o muro,
sem janela alguma, em seu sétuplo anel.
E seus portões, de trancas de ferro,
que repelem os que querem passar,
têm suas grades todas feitas por mãos humanas.

sábado, 14 de setembro de 2013

Pedro Juan Gutiérrez



   
Trilogia suja de Havana

     Então finalmente nos esbarramos um no outro, e foi de primeira. Eu me divertia muito porque sua luxúria comigo a transformava numa das grandes pecadoras da história da humanidade. Era só sentir a pele do meu pau roçando nos lábios vaginais e ela perdia a cabeça. Mandava à merda toda a pose intelectualóide e virava uma doida pornográfica. E tudo sem uma gota de rum, sem um baseado. Nada. Não precisava de nada. A capella. Falava sem parar e quando começava a ter um orgasmo atrás do outro, falava mais e mais. Toda aquela parafernália me excitava muito. Não posso me fazer de santo agora e dizer que odiava suas contorções mentais. Não, não. A verdade é que aquilo tudo me excitava muito.
       "Quero ser sua escrava, papito. E quero que você me amarre e me bata de chicote. Ali estão a corda e o cinto de couro. Quero que você me bata e me faça trepar com quatro homens ao mesmo tempo. Quero ser puta e foder com todos esses homens na sua frente. Ahh, me come. Olha que bunda mais dura eu tenho. É toda sua, seu veado, toda sua. E vou virar sapata pra você. Arranja uma branca bonita e vai ver que eu endoido ela pra você. Quero ser sua escrava, papi. Me bate. Me chicoteia, papito. Me morde. Me marca com seus dentes. Enfia o dedo no meu cu."
       Tinha revista de sacanagem e gostava de ter seus orgasmos olhando para aquelas lindas louras de olhos verdes. Bom, eu me divertia com aquilo tudo e nunca pretendi entender. É impossível entender tudo. A vida não dá pra ser vivida e entendida. Você tem que escolher.
      [...]
      A vida é assim, safada. Se você tem um caráter forte, é intransigente e depreciativo. O rigor e a disciplina transformam você nunca pessoa implacável. Só os fracos são submissos e parasitários. E precisam do forte. Sacrificam tudo esperando alguma migalha. Sacrificam sua dignidade. Sei que é complicado dizer isso em voz alta, mas a verdade é que uns mandam e outros obedecem. Eu não posso obedecer a ninguém. Nem a mim mesmo. E isso me custa caro. pago bem caro.
     Então você está cheio de fúria  e de raiva e tem que relaxar. Todo mundo sabe como: álcool, sexo, drogas. Bom, outros se fartam de chocolates ou de comida compulsiva, sei lá. Aqui no bairro todo mundo usa muito sexo e um pouco de álcool e maconha. E também há os místicos, e são os que vivem melhor. Mas isso é outra coisa. Vamos deixar de lado os místicos e os exotéricos, são muito poucos. Não contam.

Wislawa Szymborska



A vida na hora

A vida na hora.
Cena sem ensaio.
Corpo sem medida.
Cabeça sem reflexão.

Não sei o papel que desempenho.
Só sei que é meu, impermutável.

De que trata a peça
devo adivinhar já em cena.

Despreparada para a honra de viver,
mal posso manter o ritmo que a peça impõe.
Improviso embora me repugne a improvisação.
Tropeço em cada passo no desconhecimento das coisas.
Meu jeito de ser cheira à província.
Meus instintos são amadorismos.
O pavor do palco, me explicando, é tanto mais humilhante.
As circunstâncias atenuantes me parecem cruéis.

Não dá pra retirar as palavras e os reflexos,
inacabada a contagem das estrelas,
o caráter como um casaco às pressas abotoado -
eis os efeitos deploráveis desta urgência.

Se eu pudesse ao menos praticar uma quarta-feira antes
ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!
Mas já se avizinha a sexta com um roteiro que eu não conheço.

Isso é justo - pergunto
(com a voz rouca
porque nem sequer me foi dado pigarrear nos bastidores).

É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida
feita em acomodações provisórias Não.
De pé em meio à cena vejo como é sólida.
Me impressiona a precisão de cada acessório.
O palco giratório já opera há muito tempo.
Acenderam-se até as mais longínquas nebulosas.
Ah, não tenho dúvida de que é uma estreia.
E o que quer que eu faça,
vai se transformar pra sempre naquilo que fiz.