sábado, 14 de dezembro de 2013

Carlos Drummond de Andrade



Resíduo


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.

domingo, 1 de dezembro de 2013

Rafael R. Macêdo



[um copo de cerveja quente, um isqueiro e um cigarro]

Na escada que leva aos banheiros, um rapaz magro está parado, na altura do terceiro degrau. Blusa de algodão marrom, mangas recolhidas, listras brancas. As mãos repousam sobre o corrimão amarelo claro, preso à parede vermelha na mesma altura onde se inicia sua metade superior: um apanhado de espelhos gastos, distribuídos por ambos os lados até o teto.

No mesmo instante, mais acima, ao final do primeiro lance de escadas, uma jovem também parada. Vestido de alças azuis, jeans escuro, cobalto. A barra pela metade das coxas, grossas e resguardadas numa delicada meia-calça escura, discretamente rendada. Acaba de sair do banheiro, um tanto alta e desajeitada. Disfarça. Observa surpresa o rapaz lá embaixo. Permanece imóvel, como se congelada. 

Ele prossegue em sua direção. Sobe decidido o que lhe falta da escada. Aflita, ela arregala os olhos, confere ao lado os que passam, então sorri, respirando fundo e relaxando os ombros, como se desabrochasse. A rara combinação de malícia e ternura pela qual ele sempre se apaixonou.

Então eles se beijam com força. Francamente desesperados. Como que precipitando ali uma vontade urgente, dolorosamente condensada pelo passar dos anos. As mãos dele, dedos curtos e modestos, percorrem a pele de seu rosto macio, seu anguloso maxilar. Depois, com calma, recolhem até detrás das orelhas as mechas do seu cabelo escuro, levemente ondulados, e ainda, sorrindo, seus precoces fiapos brancos. Tudo num tamanho curto, colados ao corpo, um chanel de pontas, como se diz. 

Feito isso, ele então conforta sua nuca molhada com uma das mãos. A outra repousa esquecida, suave, sobre a cintura dela, sustentando ainda um copo de cerveja quente, o isqueiro e um cigarro de palha apagado. Tudo a um palmo de onde se começa o vestido, que lhe deixa as costas nuas, ora pressionadas, ora refletidas contra o espelho.

Pronunciam qualquer tipo de acordo, um lugar talvez, baixinho, feito prece. Ela suspira hesitante, pensa no namorado, tonta e apreensiva, no mesmo instante em que despeja lentamente seus braços magros sobre o peito dele, apoiando em seus ombros com carinho. Beijam-se mais uma vez de maneira terna, um abraço breve e íntimo como antigamente. Seguem sozinhos, em sentidos contrários. Ele, atordoado, em direção ao banheiro.

Em quarenta minutos estarão agarrados, confidentes, suados dentro de um carro, protegidos pela chuva que tomou conta da cidade enquanto tudo aconteceu. 

Georges Bataille



História do Olho

          Havia no corredor um prato de leite para o gato.
          - Os pratos foram feitos para a gente sentar - disse Simone.  - Quer apostar que eu me sento no prato?
          - Duvido que você se atreva - respondi, ofegante.
          Fazia calor. Simone colocou o prato num banquinho, instalou-se à minha frente e, sem desviar dos meus olhos, sentou-se e mergulhou a bunda no leite. Por um momento fiquei imóvel, tremendo, o sangue subindo à cabeça, enquanto ela olhava meu pau se erguer na calça. Deitei-me a seus pés. Ela não se mexia; pela primeira vez, vi sua "carne rosa e negra" banhada em leite branco. Permanecemos imóveis por muito tempo, ambos ruborizados.
          De repente, ela se levantou: o leite escorreu por suas coxas até as meias. Enxugou-se com um lenço por cima da minha cabeça, com um pé no banquinho. Eu esfregava o pau, me remexendo no assoalho. Gozamos no mesmo instante, sem nos tocarmos. Porém quando sua mãe retornou, sentando-me numa poltrona baixa, aproveitei um momento em que a menina se aninhou nos braços maternos: sem ser visto, levantei o avental e enfiei a mão por entre suas coxas quentes.
          Voltei pra casa correndo, louco para bater punheta de novo. No dia seguinte, amanheci de olheiras. Simone me olhou de frente, escondeu a cabeça contra meu ombro e disse: "Não quero mais que você bata punheta sem mim". 

Georges Bataille

História do Olho (II)


          Um deslumbramento interior me esgotava e não sei o que teria acontecido se, de repente, Simone não tivesse se movido ligeiramente; abriu as coxas, abriu-as tanto quanto podia e me disse, em voz baixa, que não conseguia mais se conter; inundou o vestido, com um estremecimento; no mesmo instante, a porta jorrou nas minhas calças.
          Deitei-me então na grama, o crânio apoiado numa pedra lisa e os olhos abertos sobre a Via Láctea, estranho rombo de esperma astral e de urina celeste cravado na caixa craniana das constelações; aquela fenda aberta no topo do céu, aparentemente formada por vapores de amoníaco brilhando na imensidão - no espaço vazio onde se dilaceram como um grito de galo em pleno silêncio - refletia no ininito as imagnes simétricas de um ovo, de um olho furado ou do meu crânio deslumbrado, aderido à pedra. Repugnante, absurdo grito do galo coincidia com a minha vida: quer dizer, nesse momento eu era o Cardeal, devido à fenda, à cor vermelha, aos gritos dissonantes que me provocara dentro do armário e, também, porque os galos são degolado...


Para outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade. Não sentem nenhuma angústia ao ouvir o grito do galo ou ao descobrirem o céu estrelado. Em geral, apreciam "os prazeres da carne", na condição de que sejam insossos.
          Mas desde então, não havia mais dúvidas: eu não gostava daquilo a que se chama "os prazeres da carne", justamente por serem insossos. Gostava de tudo o que era tido por "sujo". Não ficava satisfeito, muito pelo contrário, com a devassidão habitual, porque ela contamina a devassidão e, afinal de contas, deixa intacta uma essência elevada e perfeitamente pura. A devassidão que eu conheço não suja apenas meu corpo e os meus pensamentos, mas tudo o que imagino em sua presença e, sobretudo, o universo estrelado...

Gustav Flaubert




Educação Sentimental

           Viajou.
     Conheceu a melancolia dos paquetes, o frio despertar sob a tenda de campanha, o atordoamento das paisagens e das ruínas, a amargura das simpatias interrompidas.
           Voltou.
        Frequentou a sociedade, e teve novos amores. Mas a permanente lembrança do primeiro tornava-os insípidos; e além disso, a veemência do desejo, a própria flor da sensação, já não existia. Também suas ambições espirituais tinham diminuído. Passaram-se os anos; e suportava a ociosidade da sua inteligência e a inércia do seu coração.
         Em fins de março de 1867, ao cair da noite, estava sozinho em seu gabinete, quando uma mulher entrou.
           - A Senhora Arnoux!
           - Frédéric!
           Ela agarrou-lhe as mãos, puxou-o, docemente até a janela, e olhava-o repetindo:
           - É ele! Sim, é ele!
        Na penumbra do crepúsculo, só lhe via os olhos, debaixo do véu de renda preta que lhe velava o rosto.
          Depois de pousar na borda da lareira uma pequena carteira de veludo cor de vinho, sentou-se. Ambos estavam incapazes de falar, sorrindo um para o outro.
          Finalmente, Frédéric fez-lhe uma série de perguntas sobre ela e sobre o marido. 
          Habitavam nos confins da Bretanha, para viver economicamente e pagar as dívidas. Arnoux, quase sempre doente, parecia agora um velho. A filha estava casada em Bordéus, e o filho num regimento, em Monstagnem. Depois, ela ergueu a cabeça: 
            -Mas torno a vê-lo! Sinto-me feliz!
            [...]
            Então, numa voz trêmula, e com demorados intervalos entre as palavras:
            -Tinha  medo! Sim... medo de você... e de mim!
     Esta revelação fê-lo sentir como que um arrepio de volúpia. O coração batia-lhe apressadamente. Ela continuou:
           - Desculpe por eu não ter vindo antes. [...]
           E falou-lhe do lugar onde morava.
         Era uma casa baixa, de um só pavimento, com um jardim cheio de enormes buxos e uma avenida ladeada de castanheiros que subia até o alto da colina, de onde se via o mar.
           - Vou pra lá, e sento-me num banco, ao qual dei o nome de banco do Frédéric. 
           Ela confessou o desejo de dar uma volta, pelo seu braço.
       A luz dos estabelecimentos iluminava-lhe, a intervalos; o perfil pálido; depois, a sombra novamente a envolvia; e, no meio das carruagens, da multidão e do ruído, seguiam sem se distrair de si próprios, sem nada ouvir, como aqueles que caminham juntos no campo, sobre um leito de folhas mortas.
         Contavam um ao outro os dias antigos, os jantares ao tempo da Art Industriel, a sua maneira de esticar as pontas do colarinho, de esmagar cosméticos nos bigodes, e outras coisas mais íntimas e profundas. Que emoção emoção ele sentira ao ouvi-la cantar pela primeira vez! Como ela estava bela, no dia da sua festa, em Saint-Cloud! Lembrou-lhe o jardinzinho de Auteuil, as noites de teatro, um encontro no bulevar, antigos criados, a babá preta. 
          Ela espantava-se da sua memória. Contudo, disse-lhe: 
          - Às vezes, suas palavras voltam-me como um eco longínquo, como som de um sino trazido pelo vento; e  parece-me tê-lo, quando leio passagens de amor nos livros.
     - Tudo o que neles se censura como exagerado, senti-o por você, - disse Frédéric. - Compreendo os Werther, - aos quais não aborrece o pão com a manteiga de Carlota.
          - Pobre amigo querido!
          Suspirou, e, ao fim de longo silêncio:
          - De qualquer modo, amamo-nos muito.
          - Mas não pertencemos um ao outro!
          -Talvez tenha sido melhor assim - disse ela.
          - Não! Não! Que felicidade teria sido a nossa!
          - Oh! Acredito, com um amor como o seu!
          E devia ser bem forte, para ainda durar ao cabo de tão longa separação! 
          Frédéric perguntou-lhe  como tinha descoberto que ele a amava.
          - Foi uma  noite em que me beijou o pulso, entre a luva e o punho. Disse de mim pra mim: "Mas ele ama-me, ele ama-me". Tinha medo de ter certeza, contudo. A sua reserva era tão deliciosa, que eu sentia o prazer de uma homenagem involuntária e contínua.
           Ele nada lamentava. Os sofrimentos de outrora tinha sido pagos.