terça-feira, 23 de agosto de 2016

Edward O. Wilson




O novo Iluminismo

De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? 

Os seres humanos são atores em uma história. Somos a ponta de crescimento de um épico inacabado. A resposta para as perguntas existenciais deve residir na história, e é essa a abordagem adotada pelas humanidades. Mas a história convencional por si mesma está truncada, tanto na sua linha do tempo como na percepção do organismo humano. A história não faz sentido sem a pré-história, e a pré-história não faz sentido sem a biologia. 

A humanidade é uma espécie biológica em um mundo biológico. Em cada função de nosso corpo e mente e em cada nível, somos perfeitamente adaptados para viver neste planeta particular. Pertencemos à Biosfera onde nascemos. Embora exaltados de várias formas, permanecemos uma espécie animal da fauna global. Nossas vidas são limitadas pelas duas leis da biologia: todas as entidades e processos da vida obedecem às leis da física e da química, e todas as entidades e processos da vida surgiram através da evolução por seleção natural.

Quanto mais aprendemos sobre a nossa existência física, mais aparente se torna que, mesmo as formas mais complexas do comportamento humano, são, em última análise, biológicas. Elas exibem as especializações desenvolvidas ao longo de milhões de anos por nossos ancestrais primatas. A marca indelével da evolução está clara na forma idiossincrásica como os canais sensoriais da humanidade limitam a nossa percepção natural da realidade. Ela se confirma na maneira como programas hereditariamente preparados e contrapreparados guiam o desenvolvimento da mente.

Mesmo assim, não podemos escapar da questão do livre-arbítrio, que, segundo a argumentação de alguns filósofos, ainda nos distingue. É um produto do centro da tomada de decisões subconsciente do cérebro que dá ao córtex cerebral a ilusão de ação independente. Quanto mais os processos físicos da consciência foram definidos pela pesquisa científica, menos sobrou para qualquer fenômeno que possa ser intuitivamente rotulado como livre-arbítrio. Somos livres como seres independentes, mas nossas decisões não são livres de todos os processos orgânicos que criaram nosso cérebro e nossa mente.  O livre-arbítrio, portanto, parece ser na verdade biológico. 

Claro que, por qualquer padrão concebível, a humanidade é de longe a maior realização da vida. Somos a mente da biosfera, do sistema solar e - quem sabe? - talvez da galáxia. Olhando à nossa volta, aprendemos a traduzir para nossos sistemas audiovisuais limitados as modalidades sensoriais de outros organismos. Conhecemos grande parte da base bioquímica de nossa própria biologia. Logo criaremos organismos simples em laboratório. Aprendemos a história do universo e a observamos quase até seu limite. 

Os nossos ancestrais foram uma em apenas umas duas dúzias de linhagens de animais a desenvolverem a eussocialidade, o seguinte grande nível de organização biológica acima da orgânísmica. Ali, membros do grupo que incluíam duas ou mais gerações permanecem juntos, cooperam, cuidam dos jovens e dividem o trabalho de modo a favorecer a reprodução de alguns indivíduos em detrimento de outros. Os pré-humanos eram bem maiores fisicamente do que qualquer dos insetos e outros invertebrados eussociais. Foram dotados de cérebros bem mais volumosos desde o princípio.  Com o tempo, descobriram a linguagem baseada nos símbolos, a escrita, e a tecnologia baseada na ciência que nos dá a vantagem em relação ao resto dos seres vivos. Agora, exceto o fato de nos comportarmos como macacos antropoides grande parte do tempo e termos tempo de vida geneticamente limitado, somos semelhantes a deuses. 

Que força dinâmica nos alçou a essa posição elevada? Eis uma pergunta de enorme importância para autocompreensão. A resposta aparente é a seleção natural multinível. No nível mais alto dos dois níveis relevantes da organização biológica, os grupos competem entre si, favorecendo traços sociais cooperativos entre os membros do mesmo grupo. No nível mais baixo, membros do mesmo grupo competem entre si de forma que leva ao comportamento egoísta. A oposição entre os dois níveis de seleção natural resultou em um genótipo quimérico em cada pessoa, tornando cada um de nós em parte santo, em parte pecador.  

A seleção de grupo é claramente o processo responsável pelo comportamento social avançado. Ela também engloba os dois elementos necessários à evolução. Em primeiro lugar, descobriu-se que os traços no nível do grupo, incluindo cooperação, empatia, e padrões de interligação, são hereditários nos seres humanos - ou seja, variam geneticamente em certo grau de uma pessoa para outra. Segundo, cooperação e unidade afetam claramente a sobrevivência de grupos que estão competindo. 

Ocorre ainda que a percepção da seleção de grupo como a principal força propulsora da evolução combina bem com grande parte do que é mais típico - e desconcertante - na natureza humana.  Além disso,, repercute nos indícios dos campos normalmente discrepantes da psicologia social, da arqueologia e da biologia evolutiva de que os seres humanos são, por natureza, intensamente tribalistas. Um elemento básico da natureza humana é que as pessoas se sentem compelidas a pertencer a grupos e, tendo aderido a um deles, consideram-no superior aos grupos concorrentes. 

A seleção multinível (seleção de grupo e individual combinadas) também explica a natureza conflituosa de nossas motivações. Toda pessoa normal sente a pressão da consciência, do heroísmo contra a covardia, da verdade contra a fraude, do compromisso contra o distanciamento. Constitui nosso destino sermos atormentados por grandes e pequenos dilemas ao abrirmos caminho diariamente pelo mundo arriscado e incontrolável que nos deu origem. Temos sentimentos contraditórios. Não estamos seguros quanto a este ou aquele rumo. Sabemos muito bem que ninguém é tão sábio ou superior que seja incapaz de cometer um erro catastrófico, e que nenhuma organização é tão nobre que esteja livre da corrupção. Todos nós vivemos nossas vidas em conflitos e controvérsias. 

As lutas oriundas da seleção natural multinível também são onde as humanidades e as ciências sociais habitam. Os seres humanos são fascinados por outros seres humanos, como todos os demais primatas são fascinados por seus próprios semelhantes. Sentimos um prazer incessante em observar e analisar nossos parentes, amigos e inimigos.  A fofoca sempre foi a ocupação favorita em todas as sociedades, dos grupos caçadores-coletores às cortes reais. Avaliar o mais exatamente possível as intenções e a confiabilidade daqueles que afetam nossa própria vida pessoal é um bem humano e altamente adaptativo.  Também é adaptativo julgar o impacto do comportamento dos outros sobre o bem-estar do grupo como um todo. Somos gênios em interpretar as intenções dos outros, enquanto eles também lutam, hora após hora, com seus próprios anjos e demônios. O direito civil é o meio pelo qual moderamos o dano de nossas falhas inevitáveis