quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Rebecca Newberger Goldstein





Betraying Spinoza

O que é que faz uma pessoa ser exatamente o que ela é, ela e não outra, uma integridade de identidade que se mantém ao longo do tempo, sofrendo mudanças, mas ainda assim continuando a ser - até não continuar mais, pelo menos não sem problemas? 

Olho fixamente para a foto de uma criancinha num piquenique de verão, agarrando a mão da irmã mais velha com um de suas mãozinhas, enquanto a outra segura precariamente uma enorme fatia de melancia, que ela parece ter lutado para que se acertasse com o pequeno"o" de sua boca. Essa criança sou eu. Mas por que sou eu? Não tenho nenhuma lembrança daquele dia de verão, sou tão incapaz quanto qualquer outra pessoa de dizer se a criança conseguiu pôr a melancia na boca. É verdade que uma suave progressão de acontecimentos físicos contíguos pode ser traçada desde seu corpo até o meu, de modo que poderíamos querer dizer que seu corpo é o meu; e talvez a identidade pessoal não passe disso, identidade de corpos. Mas a persistência corpórea ao longo do tempo também apresenta dilemas filosóficos. A progressão de acontecimentos físicos contíguos tornou o corpo da criança muito diferente daquele que eu olho de relance neste momento. Os próprios átomos que compunham seu corpo já não compõe o meu. E se nossos corpos são diferentes, nossos pontos de vista o são ainda mais. O meu seria tão inacessível para ela - imagine-a tentando compreender a Ética [de Spinoza] - quanto a dela é atualmente para mim. Seus processos de pensamento, pré-linguísticos, me enganariam amplamente.

E, contudo, aquela coisa minúscula e determinada vestindo um avental branco de babados sou eu. Ela continuou a existir, sobreviveu às doenças de sua infância, escapou de se afogar numa correnteza da praia de Rockaway Beach aos doze anos, e de outros dramas. Há presumivelmente aventuras pelas quais essa criança - isto é, eu - não pode passar e continuar a ser ela mesma. Seria eu outro alguém, ou simplesmente eu deixaria de existir? Se eu viesse a perder toda a consciência de mim mesma - fosse a esquizofrenia ou a possessão demoníaca, o coma ou uma demência progressiva o fator que me faz sair de mim mesma - seria eu quem passaria por essas provas ou eu teria que desocupar os locais? Nesse caso, haveria aí outra pessoa ou não haveria ninguém?

É a morte uma dessas aventuras das quais eu posso emergir como eu mesma? A irmã cuja mão estou segurando na foto já morreu. Eu me pergunto todo dia se ela ainda existe. Uma pessoa que se amou parece ser uma coisa significativa demais para simplesmente desaparecer por completo do mundo. Uma pessoa que se ama é um mundo, exatamente como cada um sabe ser ele mesmo um mundo. Como podem mundos como esses simplesmente cessarem de todo? Mas se minha irmã existe, então o que é ela, e o que faz com que essa coisa que ela é agora seja idêntica à linda moça que sorria para sua irmãzinha naquele dia esquecido?


Excerto retirado de "Guia de escrita", Steven Pinker - Tradução: Rodolfo Ilari