sábado, 29 de abril de 2017

Friedrich Nietszche


Aurora
129. A pretensa luta dos motivos. -  Fala-se da “luta dos motivos”, mas com isso é designado um conflito que não é dos motivos. Ou seja: antes de um ato se apresentam à nossa consciência reflexiva, uma após outra, as consequências de diferentes atos que acreditamos poder realizar, e nós comparamos estas consequências. Cremos que nos decidimos por um ato ao constatar que suas consequências serão predominantemente favoráveis; antes que o nosso exame chegue à esta conclusão, com frequência nos torturamos honestamente, pela grande dificuldade em descobrir as consequências, e vê-las em toda a sua força, todas elas, sem erro de omissão: nisso, além do mais, a conta tem de ser dividida com o acaso. E, para exprimir a dificuldade maior: todas as consequências, que são tão difíceis de constatar isoladamente, devem ser equilibradas umas em relação ás outras na mesma balança; mas frequentemente nos falta, para essa casuística da vantagem, a balança com os pesos, devido às diferenças na qualidade de todas essas possíveis consequências. Supondo, contudo, que superamos também isso, e o acaso nos tenha posto na balança consequências mutuamente equilibráveis: então temos de fato, em nossa imagem das consequências de determinada ação, um motivo para realizar precisamente esta ação – sim, um motivo! Mas, no instante em que afinal agimos, com frequência somos condicionados por um gênero de motivos diverso daquele que aqui falamos, o da “imagem das consequências”. Intervêm aí o jogo habitual de nossas forças, ou um pequeno empurrão de alguém que tememos, veneramos ou amamos, ou a comodidade que prefere fazer o que está à mão, ou uma excitação da fantasia, provocada no instante decisivo por um trivial acontecimento qualquer, intervém algo físico, que surge de modo inteiramente imprevisível, intervém o humor, intervém a irrupção de algum afeto casualmente pronto a irromper: em suma, intervém motivos que em parte não conhecemos, em parte, conhecemos muito mal, e que nunca podemos calcular antes nas suas relações mútuas. É provável que também entre eles ocorra uma luta, um empurrar e afastar, um subir e abaixar de pesos – e tal seria propriamente a “luta dos motivos”: - algo para nós completamente invisível e inconsciente. Calculei as consequências e resultados, e inseri um motivo muito essencial na linha de combate dos motivos – mas essa linha de combate não a estabeleço, tampouco a vejo: a luta mesma se acha oculta de mim e igualmente a vitória, como vitória; pois eu venho a saber o que faço – mas não o motivo que propriamente venceu. Mas talvez estejamos habituados a não levar em conta todos esses fenômenos inconscientes, e cogitar na preparação de um ato somente na medida em que ela é consciente: assim confundimos a luta dos motivos com a comparação das possíveis consequências de atos diversos – uma das confusões mais ricas em consequências e mais nefastas para o desenvolvimento da moral!


quarta-feira, 5 de abril de 2017

Alain de Botton



Fatalismo romântico

O anseio por um destino não é em nenhuma parte mais forte do que em nossa vida romântica. Não podemos ser perdoados se acreditamos (contrariamente a todas as regras de nossa era iluminada pela razão) que estamos destinados a um dia encontrar o homem ou a mulher dos nossos sonhos? Não podemos ser perdoados por uma fé supersticiosa numa criatura que será a solução de nossos anseios incansáveis? Podemos realmente esperar atribuir o encontro com este príncipe ou esta princesa a uma mera coincidência? Ou não podemos por uma vez uma fez fugir à censura racional e interpretar isso como nada além de nosso destino romântico?

Ambos sentimos que nunca havíamos falado assim com ninguém antes, que todo o resto havia sido compromisso e ilusão de nossa parte, que só agora éramos finalmente capazes de compreender – que a espera (de natureza messiânica) de fato havia acabado. Reconheci nela a mulher que havia procurado de modo desajeitado por toda a minha vida, cujo sorriso e cujos olhos, cujo o senso de humor e gosto literário, cujas ansiedades e inteligência se encaixavam perfeitamente em meu ideal.

E foi por sentir que éramos tão certos um para o outro que fui incapaz de considerar a ideia de que conhecer Chloe havia sido uma simples coincidência. Perdi a capacidade de analisar a questão da predestinação com o necessário ceticismo. Não supersticiosos normalmente, Chloe e eu nos agarrávamos a uma série de detalhes, por mais triviais que fossem, como uma confirmação do que já sabíamos por intuição: que havíamos sido destinados um para o outro.

Atribuímos ao tempo um senso narrativo que não lhe era inerente. Chloe e eu mitificamos nosso encontro no avião como o desígnio de Afrodite, Ato I, Cena I, da mais clássica e mítica configuração narrativa: a história de amor. 

Deveríamos, é claro, ter sido mais racionais. [...] A chance de nos conhecermos era de uma em 989.727. [...] E no entanto, havia acontecido. O cálculo, longe de nos convencer dos argumentos racionais, só reforçava a interpretação mística da nossa paixão. 

Abrigados pelo amor, ocultamos a natureza aleatória de nossas vidas por trás de um véu de intencionalidade. Somos forçados a crer que esse encontro com nosso redentor, objetivamente arriscado e daí improvável, foi pré-escrito num pergaminho que se desenrola devagar no céu. Inventamos um destino para escaparmos do medo de que o pouco sentido que haja em nossa vida seja criado apenas por nós mesmos, que não haja pergaminho. (e daí nenhum destino preordenado esperando) e o que possa, ou não, nos acontecer (podermos, ou não, nos encontrar em aviões) não faz nenhum sentido além do que escolhemos atribuir a ele – resumindo – a ansiedade de que ninguém tenha escrito nossa história ou assegurado nossos amores. 

O fatalismo romântico nos protegeu, a mim e a Chloe, da ideia de que pudéssemos, do mesmo modo, ter começado a amar outras se as coisas tivessem ocorrido de modo diferente. Um pensamento inconcebível quando o amor está tão ligado à natureza única do amado. Como eu poderia ter imaginado que o papel que Chloe veio a ter na minha vida pudesse ter sido igualmente preenchido por outra pessoa, quando foi pelos olhos dela que eu me apaixonei, e pelo seu jeito de escorrer o macarrão, de pentear os cabelos, e de encerrar uma conversa telefônica?

Meu erro havia sido confundir o destino de amar com o destino de amar uma determinada pessoa. Foi o erro de pensar que Chloe, diferente do amor, era inevitável. Contudo, minha interpretação fatalista do início de nossa história era pelo menos prova de uma coisa: eu estava apaixonado por Chloe. O momento em que eu sentisse que nosso encontro, ou não encontro, era no fim apenas um acidente, apenas uma probabilidade de 1 em 989.727, seria também o momento em que eu teria deixado de sentir a necessidade absoluta de uma vida com ela – e, portanto, deixado de amá-la.