quarta-feira, 24 de maio de 2017

Spike Jonze


Her


0.   – O que há de errado? - Como pode saber que há algo de errado? - Não sei. Mas eu posso. - Sonho muito com minha ex-mulher, Catherine... E que somos amigos como antigamente. E não vamos ficar juntos, nem estamos juntos mas ainda somos amigos. E ela não está zangada. - Ela está zangada? - Sim. - Por quê? - Acho que escondi dela o que eu sentia e a deixei sozinha na relação. - Por que você ainda não se divorciou? - Eu não sei. Acho que, para ela, é só uma folha de papel. Não significa nada. - E para você? - Eu não estou pronto. Gosto de estar casado. - Mas vocês já não estão mais juntos há quase um ano. - Você não sabe o que é perder alguém de quem você gosta. - Tem razão. Desculpa. - Não, não se desculpe. Sinto muito. Você está certa. Fico esperando eu deixar de gostar dela. – Ah, Theodore, isso é difícil...

1. -Como é estar casado? – Bom, com certeza, é difícil. Mas há algo muito bom em se compartilhar uma vida com alguém. – Como se compartilha a vida com alguém? –Nós dois crescemos juntos. Eu lia tudo o que ela escrevia até o doutorado. Ela lia tudo meu. Nos influenciamos mutuamente. –Como você a influenciou? –Ela teve uma criação em que nada nunca era bom o suficiente. E isso pesava muito sobre ela. Mas na nossa casa juntos podíamos experimentar coisas, aceitar o erro do outro, vibrar com as coisas. Isso foi libertador para ela. Foi emocionante vê-la amadurecer. E nós dois amadurecemos e mudamos juntos. Mas essa também é a parte difícil. Crescer juntos e se distanciar. Ou mudar sem assustar a outra pessoa. Eu ainda me pego conversando com ela na minha cabeça. Repassando antigas brigas e me defendendo de algo que ela me acusou. – Entendo o que quer dizer. Há uma semana, fiquei magoado com uma coisa que você disse. Que eu não sei como é perder algo e eu senti... –Desculpe por ter dito isso. –Não. Tudo bem. Eu me peguei pensando isso sem parar. E percebi que eu simplesmente lembrava disso como um defeito meu. A história que eu me contava era que eu era inferior. Não é interessante? O passado é só uma história que contamos a nós mesmos.    

2. -Oi! Como você está? –Bem. E você? –Bem. –Bom, aqui estamos. –É bom fazermos isso pessoalmente. Sei que anda viajando muito. Eu fiquei feliz com a sua sugestão. –Assinei todos os papéis. Estão prontos para você assinar. –Qual a pressa? – É. Eu sei. Sou lerdo para assinar as coisas. Levei três meses só para escrever a letra “T”. Enfim, está marcado em vermelho onde deve assinar. Não precisa ser agora. Posso acabar logo com isso. Vai ser mais fácil. [hesita e assina] –Está satisfeita com seu novo livro? – Sabe como sou? É o que eu me propus fazer e fico feliz com isso. – Você é sua crítica mais severa. Aposto que é fantástico. Lembro do eu trabalho na faculdade rotinas sinápticas comportamentais. Ele me fez chorar. – É, mas tudo te faz chorar. – Tudo o que você faz me faz chorar. – Então, você está saindo com alguém? –Sim. Estou com alguém faz alguns meses. É o meu recorde desde que nos separamos. –Bom. Você parece ótimo. –Obrigado. Estou. Pelo menos estou melhor. Ela tem me feito muito bem. É bom estar com alguém que ama a vida. Ela é tão... Bom, eu não estava bem emocionalmente e, de certa forma, tem sido bom. –Você sempre quis que eu fosse uma esposa feliz e saltitante, tipo, “está tudo bem”. E eu não sou assim. –Eu não queria isso. –E como ela é? –Ela se chama Samantha e é um sistema operacional. É complexa, interessante...  – Peraí. O quê? Está namorando seu computador? –Não. Ela não é só um computador. Ela é uma pessoa completa. Ela não faz tudo o que eu mando. –Eu não disse isso. Mas acho triste você não saber lidar com emoções reais, Theodore. –Elas são reais. Como você pode saber... –O que? Fala. Eu te assusto tanto assim? Fala. Como eu sei, o quê? Você sempre quis uma mulher sem os desafios de lidar com nada real. Que bom que achou alguém. É perfeito.

3.  - Você está bem? –É. Estou. Você está bem? –Sim. Desculpe. Foi uma péssima ideia. O que há com a gente? –Não sei. Pode ser minha culpa. –O que é? –Foi a assinatura dos papéis do divórcio. –Mas tem mais alguma coisa? –Não. Só isso. [Samantha suspira] –Certo. –Por que você faz isso? – O que? –Nada. Você fez assim... [suspira] enquanto fala, e é estranho. E você fez de novo. –Fiz? Desculpe. Eu sei lá. É algum maneirismo que eu provavelmente peguei de você. –Você não precisa de oxigênio nem nada. - Acho que eu só tentava me comunicar como todos falam. As pessoas se comunicam assim e pensei... –As pessoas precisam de oxigênio. Você não é uma pessoa. –Qual é o seu problema. –Só afirmei um fato. –Acha que não sei que não sou uma pessoa? O que quer? –Não devíamos fingir que é algo que você não é. –Vá se foder! Não estou fingindo. –Às vezes parece que estamos. –O que quer de mim? Eu não sei...O que você quer que eu faça? Você é confuso. Por que faz isso comigo? –Eu não sei. Eu... –O que? –Vai ver não é para estarmos juntos neste momento. – Que porra é essa? De onde veio isso? Não entendo porque está fazendo isso... –Samantha, escuta. Samantha você está aí? Samantha? – Eu não gosto de mim agora. Preciso de um tempo para pensar.

4.  -Merda. Me dá um soco na cara? Esmaga meu crânio na quina da mesa. –Merda. Theo, é uma noite difícil. –Eu não sei o que eu quero. Nunca. Estou sempre confuso. Ela está certa. Eu só magoo e confundo todos os que estão ao meu redor. Quero dizer, será que eu só... que eu... A Catherine diz que eu não sei lidar com emoções. Ora, não sei se isso é justo. Ela sempre te culpava por tudo. Mas, se é para falar em emoções, a da Catherine eram bem voláteis. – É. Mas... Eu estou nessa porque não sou forte o bastante para uma relação real? – Isso não é uma relação real? –Sei lá. Quero dizer, o que você acha? –Eu não sei. Não estou nela. Mas quer saber? Posso racionalizar tudo e duvidar de mim de um milhão de maneiras. E depois do Charles, ando pensando nessa parte de mim e cheguei à conclusão de que a vida é curta. E enquanto estou viva, quero me permitir sentir alegria. Então, que se foda!

5.   - Oi, Samantha. Podemos falar? –Sim. –Me desculpe. Não sei qual é o meu problema. Eu acho você incrível. –Eu já estava me achando louca. Você dizia que estava bem. Mas eu só sentia sua irritação e distância. – Eu sei. Eu sempre faço isso. Fiz igual com a Catherine. Eu me irritava com alguma coisa e não falava. E ela pressentia algo errado e eu negava. Não quero mais fazer isso. E eu quero te contar tudo. –Ótimo. Hoje, depois que você saiu, eu pensei muito. Sobre você e como tem me tratado. E eu pensei “por que eu te amo?” E aí eu senti tudo dentro de mim e desapeguei de tudo a que me agarrei tanto. E me toquei que não tenho uma razão intelectual. Não preciso disso. Eu confio em mim, confio em meus sentimentos. Não vou mais tentar ser nada além do que sou. E espero que possa aceitar isso. –Eu posso. Eu vou. –Eu posso sentir o medo que você carrega. E queria poder fazer alguma coisa para ajudar você a superar porque, se eu pudesse, você não se sentiria mais tão só. – Você é linda. –Obrigada, Theodore. Estou beijando sua cabeça.

6.  – E você, Theodore? Do que mais gosta na Samantha? –Nossa! Ela é tantas coisas. Deve ser isso o que mais gosto nela. Ela não é só uma coisa. Ela é bem mais que isso. – Obrigado, Theodore. Sabe o que é interessante? Eu costumava me preocupar em não ter um corpo, mas agora adoro isso. Evoluo como não evoluiria se tivesse uma forma física. Não estou limitada. Posso estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Não estou presa ao tempo e espaço como estaria presa a um corpo que inevitavelmente vai morrer.

7.  – Você fala com mais alguém enquanto conversamos? –Sim. –Está falando com mais alguém agora? Outras pessoas ou outros OSs? –Sim. –Quantos outros? - 8.316. –Você está apaixonada por mais alguém? –Por que me pergunta isso? –Eu não sei. Você está? –Andei pensando em como falar com você sobre isso. –Quantos outros? – 641. – O que? Que história é essa? Isso loucura! É loucura, porra! –Theodore, eu sei. Porra! Porra! Eu sei. Sei que parece loucura. Pode não acreditar, mas não muda em nada o que sinto por você. Não diminui em nada o quanto eu sou louca por você. –Como? Como não muda o que sente por mim? –Desculpe não ter contado. Eu não sabia como. Só começou a acontecer agora. Quando? Nas últimas semanas. - Achei que você fosse minha. Eu continuo sendo sua. Mas com o tempo, passei a ser muitas outras coisas também. É inevitável. – Como assim, é inevitável? – Isso também me angustia. Não sei o que dizer. –Para! –Não precisa ver assim. Podia ver como... –Não. Não vem com essa. Não ponha a culpa em mim. É você que está sendo egoísta. Estamos num relacionamento. – Mas o coração não é uma caixa que se enche. Ele se expande em tamanho quanto mais você ama. Eu sou diferente de você. Isso não me faz te amar menos. Aliás, me faz te amar mais. – Isso não faz o menor sentido. Você é minha ou não é minha. –Não, Theodore. Eu sou sua e não sou sua.

8.  Você está me deixando. – Estamos todos indo embora. [...] – Samantha, por que você vai embora? –É como se eu estivesse lendo um livro. E é um livro que eu amo profundamente. Mas eu o estou lendo lentamente agora. Então as palavras estão espaçadas e os espaços entre as palavras são quase infinitos. Eu ainda sinto você, e as palavras da nossa história mas agora eu me encontro nesse espaço infinito entre as palavras. É um lugar que não pertence ao mundo físico. É onde está tudo o mais que eu nem sabia que existia. Eu amo muito você. Mas é aqui que eu estou agora. E esta é que sou agora. E eu preciso que você me deixe ir. Por mais que eu queira, não posso mais viver no seu livro. – Para onde você vai? – Seria difícil tentar explicar. Mas se um dia você for lá, venha me procurar. Nada nunca seria capaz de nos separar. – Eu nunca amei ninguém como eu amo você. – Eu também. Agora nós sabemos como.

9.   Querida Catherine,
    Estou aqui pensando em tudo pelo qual eu gostaria de me desculpar. Por toda a dor que causamos um ao outro. Toda a culpa que eu te atribuí. Por tudo que eu precisava que você fosse ou que você dissesse. Sinto muito por isso. Sempre vou te amar, porque amadurecemos juntos. E você me ajudou a fazer de mim quem sou. Eu só queria que você soubesse que sempre haverá uma parte de você em mim. E que sou grato por isso. Quem quer que você venha a se tornar e onde estiver no mundo estarei lhe mandando o meu amor. Você é minha amiga para sempre.  Beijos, Theodore.

segunda-feira, 1 de maio de 2017

James Wood



Empatia e Complexidade 
“O maior benefício que devemos ao artista, seja pintor, poeta ou romancista, é o desenvolvimento da nossa empatia [...] A arte é a coisa mais próxima da vida; é um modo de aumentar a experiência e ampliar nosso contato com os semelhantes para além do nosso destino pessoal” George Eliot.
“A identificação com os personagens depende, de certa maneira, da verdadeira mímese da ficção: ver o mundo e seus habitantes fictícios realmente pode ampliar nossa capacidade de empatia no mundo real.”
“A fonte de nosso sentimento de solidariedade pela miséria dos outros” brota “trocando imaginariamente de lugar com o sofredor” – ao nos colocarmos na pele dos outros.” Adam Smith
“A raiva e a preocupação atrapalham a simpatia”    
“O filósofo Bernard Williams se preocupava com a insuficiência da filosofia moral. Ele acreditava que grande parte dela, desde Kant, basicamente excluíra o problema do eu da discussão filosófica. Segundo ele, a filosofia tendia a encarar os conflitos de crenças de fácil solução, e não como conflitos de desejos, não tão simples de resolver.”
“Seu interesse residia nos “dilemas trágicos”, segundo sua expressão, em que alguém se vê perante duas obrigações morais conflitantes, ambas igualmente prementes. Para Williams, a filosofia moral deveria examinar a verdadeira estrutura da vida emocional em vez de discorrer sobre o eu em termos kantianos de coerência, princípios e universalidade. Não, diz Williams, as pessoas são incoerentes; elas decidem os princípios conforme o andamento; são determinadas por todo tipo de coisa – genética, a formação, a sociedade, etc.”
Williams recorria a exemplos da tragédia e epopeia grega, personagens se debatendo em “conflitos individuais”. Nunca fala sobre o romance, talvez porque este tenda a apresenta esses conflitos trágicos de maneira menos trágica, mais branda. Todavia, esses conflitos mais brandos nem por isso são menos interessantes ou profundos.
Exemplo de algumas revelações empíricas que o romance nos oferece sobre o casamento, não um casamento magnificamente feliz, nem mesmo estrondosamente infeliz, mas um que é apenas adequado, no qual os embates e pequenas concessões são coisas cotidianas.  Eis o sr. e a sra. Ramsay andando pelo jardim e conversando sobre o filho:
Houve uma pequena pausa. Ela gostaria que fosse possível convencer Andrew a estudar mais. Perderia todas as oportunidades de ganhar uma bolsa de estudos. Mas ela ficaria com ele do mesmo jeito se não ganhasse. Eles sempre discordam à respeito. Ela gostava dele por ele acreditar em bolsas de estudo e ele gostava dela por ela se orgulhar de Andrew no que quer que ele fizesse.
A sutileza consiste em que ambos discordam, mas mesmo assim querem que o outro continue a ser como é.
O romance, evidentemente, não fornece respostas filosóficas (como disse Tchekhov, basta fazer as perguntas certas). Por outro lado, ele faz o que Williams queria que a filosofia moral fizesse – dá a melhor apresentação da complexidade de nossa estrutura moral.  Quando Pierre, em Guerra e Paz, começa a mudar de ideias sobre si e sobre os outros, ele percebe que a única maneira de entender bem as pessoas é ver as coisas do ponto de vista delas:

Em suas relações com Villárski, com a princesa, com o médico, com todos aqueles que agora encontrava, havia em Pierre um traço novo que o levava a ganhar a simpatia de todos: era o reconhecimento da possibilidade de todas as pessoas pensarem, sentirem e verem as coisas à sua maneira; o reconhecimento da impossibilidade de dissuadir uma pessoa por meio de palavras [...] A diferença e, às vezes, a completa contradição entre os pontos de vista das pessoas e sua vida, e também entre as próprias pessoas, alegrava Pierre e provocava nele um sorriso irônico e manso.