sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Antônio Damásio



E o cérebro criou o homem

Os organismos unicelulares dotados de núcleo têm uma vontade de viver e gerir a vida pelo tempo que certos genes lhes permitirem, e essa vontade é suficientemente adequada, mesmo sem a participação de uma mente e de uma consciência. Os cérebros expandiram as possibilidades de gestão da vida mesmo quando não produziam mentes, muito menos mentes conscientes.  Por essa razão, também prevaleceram. Quando a mente e a consciência foram adicionadas à mistura, as possibilidades de regulação aumentaram ainda mais e abriram caminho para o tipo de gestão que ocorre não apenas em um organismo, mas em muitos deles, em sociedades. A consciência capacitou os humanos a repetir o leitmotiv da regulação da vida por meio de um conjunto de instrumentos culturais - troca econômica, crenças religiosas, convenções sociais e regras éticas, leis, artes, ciência, tecnologia. Ainda assim, a intenção de sobreviver da célula eucariótica e a intenção de sobreviver implícita na consciência humana são idênticas. 

Por trás do imperfeito mas admirável edifício que a cultura e a civilização construíram para nós, a regulação da vida continua a ser nossa principal preocupação. Igualmente importante é o fato de que a motivação da maioria das realizações nas culturas e nas civilizações humanas vincula-se justamente a essa preocupação e à necessidade de administrar o comportamento das pessoas enquanto se dedicam a ela. A regulação da vida está na raiz de muita coisa que precisa ser explicada na biologia em geral e na humanidade em particular: a existência do cérebro, a existência da dor, prazer, emoções e sentimentos, os comportamentos sociais, as religiões, as economias, e seus mercados e instituições financeiras, os comportamentos morais, as leis, a justiça, política, arte, tecnologia e ciência - uma lista bem modesta, como o leitor pode ver. 

A vida, e suas condições essenciais - o imperativo de sobreviver e a complicada tarefa de administrar a sobrevivência em um organismo, tenha ele uma célula ou trilhões delas - foram a causa fundamental do surgimento e da evolução do cérebro, o mais elaborado maquinário gestor já montado pela evolução, e também a causa fundamental de tudo que decorreu do desenvolvimento de cérebros cada vez mais elaborados, no interior de corpos progressivamente mais complexos, vivendo em ambientes cada vez mais intricados. 

Quando examinamos a maioria dos aspectos da função cerebral através do filtro dessa ideia, isto é, de que o cérebro existe para gerir a vida de dentro do corpo, as singularidades e os mistérios de algumas das categorias fundamentais da psicologia - emoção, percepção, memória, linguagem, inteligência e consciência - tornam-se menos singulares e muito menos misteriosos. De fato, adquirem uma racionalidade transparente, uma lógica inevitável e cativante. Como poderíamos ser diferentes, parecem perguntar essas funções, diante do trabalho que precisa ser feito?