sexta-feira, 12 de julho de 2024

Stendhal



O vermelho e o negro 



- “Senhores jurados, o horror do desprezo, que acreditava poder enfrentar no momento da morte, me faz tomar a palavra. Senhores, não tenho a honra de pertencer à sua classe, vêem em mim um camponês que se revoltou conta a baixeza de sua sorte. Não lhes peço nenhuma graça - continuou Julien, firmando a voz. - Não tenho ilusões, a morte me espera: ela será justa. Fui capaz de atentar contra a vida da mulher mais digna de todo o respeito, de todas as homenagens. A senhora de Rênal foi para mim como uma mãe. Meu crime é atroz e foi premeditado. Mereci portanto a morte, senhores jurados. Mas, ainda que fosse menos culpado, vejo homens que, sem se deterem em tudo o que minha juventude pode merecer de piedade, vão querer punir em mim e desencorajar para sempre essa classe de jovens que, nascidos numa classe inferior e de alguma forma oprimidos pela pobreza, têm a sorte de conseguir uma boa educação e a audácia de misturar-se ao que o orgulho dos ricos chama de boa sociedade. Este é o meu crime, senhores, e, na verdade, será punido ainda mais severamente por não ser julgado por meus pares. Não vejo nos bancos dos jurados nenhum camponês enriquecido, mas apenas burgueses indignados…” 

(…) 

“Não existe um direito natural: essa expressão não passa de uma tolice antiga bem digna do promotor que me acusou naquele dia, e cujo antepassado foi enriquecido por um confisco de Luíz XIV. Só há um direito quando há uma lei que proíba de fazer alguma coisa, sob pena de punição. Antes da lei, só era natural a força do leão ou a necessidade… Não, as pessoas honradas não passam de velhacos que tiveram a sorte de não serem apanhados em flagrante delito. O acusador que a sociedade lança foi enriquecido por uma infâmia… Atentei contra a vida de alguém e fui justamente condenado, mas, a não ser por essa ação, o Valenod que me condenou é cem vezes mais nocivo à sociedade. “Pois bem”, continuou Julien, com tristeza mas sem raiva, “apesar de sua avareza, meu pai vale muito mais que todos esses homens! Ele nunca me amou. Acabo de ultrapassar os limites ao desonrá-lo com uma morte infame. Esse medo de ficar sem dinheiro, essa concepção exagerada da maldade humana que chamamos de avareza faz com que ele veja um prodigioso motivo de consolo e de segurança numa quantia de trezentos ou quatrocentos Luíses que posso lhe deixar. Um domingo, depois do jantar, ele mostrará seu ouro a todos os invejosos de Verrières. A esse preço, dirá o seu olhar, qual dentre vocês não ficaria encantado em ter um filho guilhotinado?” 

(…) 

“Amei a verdade… Onde ela está? Por toda parte a hipocrisia, ou pelo menos o charlatanismo, mesmo entre os mais virtuosos, mesmo entre os maiores”, e seus lábios assumiram a expressão de desgosto… “Não, o homem não pode confiar no homem.”


Tradução: Raquel Prado

sábado, 9 de janeiro de 2021

Edward O. Wilson

 



As origens das artes criativas 


Por mais ricas e ilimitadas que possam parecer, as artes criativas são filtradas pelos canais biológicos estreitos da cognição humana. Nosso mundo sensorial, o que podemos saber sem a ajuda de instrumentos sobre a realidade externa aos corpos, é lamentavelmente pequeno. [...] Os seres humanos, junto com os macacos antropóides e aves, estão entre as raras formas de vida que são basicamente audiovisuais e, portanto, fracos em paladar e olfato. Somos idiotas comparados com cascavéis e sabujos. Nossa pouca capacidade de cheirar e sentir gosto se reflete no tamanho pequeno de nosso vocabulário quimiossensorial, forçando-nos quase sempre a recorrer a símiles e outras formas de metáforas. Um vinho possui um buquê delicado, dizemos, seu sabor é encorpado e um tanto frutado, Uma fragância se assemelha à da rosa, do pinheiro ou da terra molhada pela chuva. Somos forçados a cambalear por nossas vidas quimicamente deficientes em uma biosfera quimiossensonrial, dependendo do som e da visão que evoluíram basicamente para a vida nas árvores. 


[...]


Podemos obter vislumbres da origem e da natureza do julgamento estético. Por exemplo, o monitoramento neurobiológico, em particular medições do amortecimento das ondas alfa durante as percepções de desenhos abstratos, mostrou que o cérebro é mais excitado por padrões com cerca de 20% de redundância de elementos, ou seja, mais ou menos a complexidade encontrada em um labirinto simples, ou em duas voltas de uma espiral logarítmica, ou em uma cruz assimétrica. [...] A origem do princípio pode ser o fato de que esse grau de complexidade é o máximo que o cérebro consegue processar de um só relance, assim como sere é o número máximo de objetos que podem ser contados de um só relance. 


        Em outra esfera das artes visuais existe a biofilia, a ligação inata que as pessoas buscam com outros organismos, especialmente com o mundo natural vivo. Estudos mostraram que, com liberdade para escolher o ambiente de suas casas ou escritórios, pessoas em diferente culturas gravitam em direção a um ambiente que combine três aspetos. Elas querem estar no alto olhando para baixo, preferem terrenos abertos como da savana com árvores e bosques espalhados e querem estar próximos de um corpo d’água como um rio, lago ou oceano. [...] As pessoas, em outras palavras, preferem viver naqueles ambientes onde nossa especie evoluiu por milhões de anos na África. Instintivamente gravitam rumo à savana e à floresta transicional, olhando, a uma distância segura, para fontes confiáveis de alimento e água. [...] Todas as espécies móveis são guiadas por instintos que as conduzem a habitas onde têm uma chance máxima de sobrevivência e reprodução. 


[...] 


Existem agora indícios substanciais de que o comportamento social humano surgiu geneticamente por evolução multinível. Se essa interpretação for correta, e um número crescente de biólogos e antropólogos evolutivos acredita que seja, podemos esperar um conflito constante entre componentes do comportamento favorecidos pela seleção individual e aqueles favorecidos pela seleção de grupo. A seleção no nível individual tende a criar competitividade e comportamento egoísta entre os membros do grupo - em torno de status, acasalamento e acesso aos recursos. Já a seleção entre grupos tende a criar um comportamento desprendido, expresso na maior generosidade e altruísmo, os quais por sua vez promovem uma maior coesão e aumentam a força do grupo como um todo. 


        Um resultado inevitável das forças mutuamente contrabalançantes da seleção multinível é a ambiguidade permanente na mente humana individual, levando a inúmeros cenários na forma como as pessoas acasalam, amam, se associam, traem, compartilham, sacrificam, roubam, enganam, se redimem, punem, imploram e decidem. A luta endêmica ao cérebro de cada pessoa, espalhada na vasta superestrutura da evolução cultural, é o manancial das humanidades. Um Shakespeare no mundo das formigas, livre de tal guerra entre honra e traição, e acorrentado pelos comandos rígidos do instinto a um repertório minúsculo de sentimentos, seria capaz de escrever apenas um drama de triunfo e outro de tragédia. As pessoas comuns, no entanto, podem inventar uma infinidade dessas histórias e compor uma sinfonia infinita de ambivalência e estados de espírito. 


[...]


As artes criativas se tronaram possíveis como um avanço evolutivo quando os seres humanos desenvolveram a capacidade do pensamento abstrato. A mente humana pôde então formar um modelo de uma forma, ou de uma espécie de objeto, ou de uma ação, e transmitir uma representação concreta do conceito para outra mente. Assim surgiu a linguagem verdadeira, produtiva, formada de palavras e símbolos arbitrários A linguagem foi seguindo pela arte virtual, pela música, pela dança e por cerimônias e rituais da religião. [...] Somos tentados a pensar que o processamento neural da linguagem serviu de pré-adaptação para a música, a qual, uma vez surgida, mostrou-se suficientemente vantajosa para adquirir sua própria predisposição genética


Trecho do livro A conquista social da Terra

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Edward O. Wilson



 As origens da religião 

[...] O homem foi feito à imagem de Deus, ou Deus foi feito à imagem do Homem? [...] Deus existe? Caso Ele exista, será um Deus pessoal a quem possamos orar com a expectativa de receber uma resposta? 

[...]

Os indícios abundantes em nossa frente apontam para a religião organizada como uma expressão do tribalismo. Toda religião ensina aos adeptos que eles formam uma confraria especial e que sua história da criação, seus preceitos morais e os privilégios do poder divino são superiores aos reivindicados por outras religiões. Sua caridade e outros atos de altruísmo estão concentrados em seus correligionários. Quando estendidos aos forasteiros, geralmente se visa ao proselitismo e, portanto, fortalecer o tamanho da tribo e seus aliados. Nenhum líder religioso jamais exorta as pessoas a examinarem as religiões rivais e escolherem aquelas  que julguem melhor à sua pessoa e sociedade. Pelo contrário, o conflito entre as religiões constumam ser um acelerador, se não a causa direta, da guerra. Os crentes devotos valorizam sua religião acima de tudo e logo se enfurecem quando ela é desafiada. O poder das religiões organizadas se baseia em sua contribuição à ordem social e à segurança pessoal, não na busca da verdade. A meta das religiões é a submissão à vontade e ao bem comum da tribo.  

[...]

Tal instinto intensamente tribal pôde, no mundo real, surgir na evolução somente por seleção de grupo, no contexto das tribos competindo entre si. As qualidades peculiares da fé religiosa são a consequência lógica do dinamismo nesse nível mais alto de organização biológica. 

[...]

Os crentes religiosos atuais, como nos tempos antigos, não estão, comumente, interessados em teologia, e menos ainda nos passos evolutivos que levaram às religiões do mundo atual. Em vez disso, estão preocupados com a fé religiosa e os benefícios que ela oferece. Os mitos da criação explicam tudo de que precisam para conhecer a história profunda a fim de manter a unidade tribal. Em épocas de mudança e perigo, sua pessoal promete estabilidade e paz. Diante de ameaça e da competição de grupos externos, os mitos asseguram aos crentes que eles são supremos aos olhos de Deus. A fé religiosa oferece a segurança psicológica que advém exclusivamente do pertencimento a um grupo, e ainda por cima um grupo divinamente abençoado. Ao menos para as multidões imensas de fiéis abraâmicos ao redor do mundo, ela promete a vida eterna após a morte, e no céu, não no inferno - especialmente se escolhermos a seita certa entre as muitas disponíveis, e juramos praticar fielmente seus rituais. 


Trecho do livro A conquista social da Terra

sábado, 2 de janeiro de 2021

Arnold Hauser




 Culturas urbanas do Oriente Antigo: Creta 


A arte cretense apresenta ao sociólogo o mais difícil problema de todo o campo da arte do Oriente antigo. [...] Em todo o vasto período, no qual predominou o estilo geométrico abstrato, nesse mundo imutável de estrito tradicionalismo e formas rígidas, Creta brinda-nos com um quadro de vida livre, colorida, exuberante, embora as condições econômicas e sociais não sejam aí diferentes das que vigoram em todo o mundo circundante. Aí, exatamente como no Egito e na Mesopotâmia, déspotas e senhores feudais, detêm o poder, a cultura encontra-se toda sob a égide de uma ordem aristocrática - e, não obstante, que enorme diferença na concepção da arte como um todo! Que liberdade na vida artística, em contraste com o convencionalismo opressivo do resto do mundo do Oriente antigo. [...] Talvez a diferença resida, em parte, no papel relativamente subordinado que a religião e o culto religioso desempenharam na vida pública de Creta. [...] Mas a liberdade da arte cretense também pode ser parcialmente explicada pelo papel de extraordinária importância que a vida urbana e o comércio desempenharam na economia da ilha. [...] O caráter especial da arte cretense deve contudo ser visto, em primeiro lugar, em relação ao fato de que, no Egeu, em contraste com outras áreas, o comércio sobretudo o comércio externo, estava concentrado nas mãos de uma classe dominante. O espírito instável do mercador, sempre disposto a fazer inovações, pôde abrir caminho e progredir com menos entraves do que no Egito ou na Babilônia. [...] Tal como no Egito e na Babilônia, a arte possui um caráter inteiramente palaciano, mas o elemento rococó, o prazer no requintado e no divertido, no delicado e no elegante são mais acentuados. [...] Esse estilo cortesão e cavaleiresco facilita o desenvolvimento de formas de vida menos rígidas, mais espontâneas e flexíveis, em contraste com o rigoroso e tenso modo de vida dos velhos e predatórios barões latifundiários - um processo que se repetiu na Idade Média - ,  e produz, de acordo com os novos padrões de vida, uma arte mais individualista, estatisticamente mais livre e que expressa um deleite isento de preconceitos na natureza.  

[...]

Creta não só estimulou a arte “modernista”, mas, em certos aspectos, até antecipou a moderna arte industrial. A “modernidade” dos cretenses estava provavelmente ligada às características fabris e de produção de massa de sua arte, com vistas a um enorme mercado exportador. Por outro lado, os gregos evitaram o perigo da padronização, apesar de uma industrialização igualmente avançada; mas isso apenas vem provar que, na história da arte, as mesmas causas nem sempre têm os mesmos efeitos, ou que as causas são, talvez, demasiado números para que a análise científica logre esgotá-los por completo. 


Trecho de História social da Arte e da literatura

Arnold Hauser

 



Culturas urbanas do Oriente Antigo: Mesopotâmia


O problema real da arte mesopotâmica consiste no fato de que, apesar de uma economia baseada predominantemente no comércio e na indústria, na finança e no crédito, possuiu um caráter mais rigidamente disciplinado, menos variável e dinâmico do que a arte do Egito, um país com raízes profundas na agricultura e na economia natural. 

[...]

A maior disciplina formal da arte babilônica, a par de uma economia mais diretamente urbana e dotada de maior mobilidade, refuta porém, a tese sociológica, aliás normalmente válida sob outros aspectos, segundo o qual o estilo geométrico estrito está vinculado à agricultura tradicionalista, e o naturalismo irrestrito à mais dinâmica economia urbana. Talvez as formas mais rígidas de despotismo e o espírito mais intolerante da religião na Babilônia tenham-se contraposto à influência emancipadores da vida na cidade, isto é, pressupondo-se que a mera circunstância de existir aí apenas uma arte da corte e do tempo - que ninguém, além do governante e dos sacerdotes, poderia exercer qualquer influência sobre a prática da arte - tenha cerceado no nascedouro todos os esforços de natureza individualista e naturalista. 

[...]

O racionalismo abstrato é praticado ainda mais sistematicamente na arte babilônica e assíria do que na egípcia. A figura humana apresenta-se não só em estrita frontalidade, com a cabeça voltada para apresentar-lhe o perfil, mas as partes características do rosto, o nariz e o olho, são consideravelmente ampliadas, enquanto os traços menos interessantes, como a testa e o queixo, são bastante reduzidos. O princípio antinaturalista da frontalidade em lugar nenhum se evidencia com maior clareza do que nos chamados “Porteiros”, leões e touros alados, da escultura arquitetônica assíria. Dificilmente se encontrará qualquer ramo da arte egípcia em que a estilização superlativa, renunciando a todo o ilusionismo, tenha sido posta em prática de forma tão inflexível quanto nessas figuras, as quais, vistas de perfil têm quatro pernas em movimento e, vistas de frente, duas pernas em repouso, cinco pernas no total, e que representam realmente a combinação de dois animais. A flagrante violação da lei natural é devida, nesse caso, a motivos puramente racionais: o criador desse gênero pretendia, obviamente, que o contemplador obtivesse de todos os lados uma imagem independente, completa e formalmente perfeita do objeto.     


Trecho de História social da Arte e da literatura


quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Arnold Hauser




 Culturas urbanas do Oriente antigo: O naturalismo da era e Akhenaton


Amenhotep IV, a cujo o nome está vinculada a grande revolução cultural, é não só o fundador de uma religião, o descobridor da ideia de monoteísmo, como geralmente é conhecido, não só o “primeiro profeta” e o “primeiro individualista” na história do mundo, como tem sido chamado, mas também o primeiro inovador consciente no campo da arte: o primeiro homem a converter o naturalismo num programa e, opondo-o ao estilo arcaico, numa realização recém-conquistada. [...] O que a arte e os artistas lhe devem é obviamente uma nova forma de amor à verdade, uma nova sensibilidade e sensitividade que leva a uma espécie de impressionismo na arte egípcia. A superação do estilo acadêmico e rígido por seus artistas está em harmonia com sua própria luta contra as tradições pedantescas, vazias e desprovidas de significado da religião. Sob sua influência, o formalismo do Médio Império dá lugar, tanto na religião quanto na arte, a um enfoque dinâmico, naturalista, que encoraja o homem a deleitar-se na realização de novas descobertas. São escolhidos novos temas, procuram-se novos símbolos, a descrição de situações novas e incomuns é favorecida e tenta-se não só retratar a vida espiritual individual e íntima mas ainda mais do que isso, insuflar tensão intelectual, uma sensibilidade exarcebada e uma vivacidade nervosa quase anormal nos retratos. Os rudimentos. De perspectiva no desenho, tentativas de composição de grupo mais coerente, um interesse mais vivo na paisagem, predileção por representações de cenas e acontecimentos cotidianos e, como resultado da aversão pelo antigo estilo monumental, um acentuado prazer nas formas delicadas e graciosas das artes menores - tudo isso começa agora a mostrar-se. 

A única característica surpreendente é como essa nova arte permanece inteiramente palaciana, cerimonial e formal, apesar de todas as inovações. [...] Vemos Amenhotep IV em seu círculo familiar, em cenas e situações da vida cotidiana, numa intimidade humana que excede todas as concepções prévias, e contudo ele ainda se movimenta em planos retangulares, o peito todo voltado para o observador, e exibe uma estatura que é duas vezes superior à dos mortais comuns; a pintura ainda é produto de uma arte senhorial, destinada a servir como memorial para o rei. É verdade que o governante deixou de ser retratado como um deus, completamente livre de todas as limitações terrenas, mas permanece sujeito à etiqueta da corte. 

[...]

Os meios de expressão empregados pelo naturalismo no período do Novo Império são tão ricos e sutis, que dever ter tido um longo passado, um extenso período de preparação e aperfeiçoamento. Onde se originaram eles? Em que forma se conservaram vivos, até emergirem ao reinado de Akhenaton? O que os salvou da destruição durante o período rigorosamente formal do Médio Império? A resposta é simples: o naturalismo sempre esteve latente como uma corrente subterrânea na arte egípcia e deixou inconfundíveis traços de sua influência, paralelamente ao estilo oficial, pelo menos nos ramos não-oficiais da arte

[...]

Existe uma justificativa muito mais sólida para se falar da existência de uma arte provinciana a par da arte palaciana, do que de uma parte popular paralela à da corte. As realizações artísticas importantes originam-se repetidamente, e de um modo cada vez mais exclusivo, à medida que o progresso avança, na corte real ou nos recintos sob alçada direta da corte - primeiro em Mênfis, depois em Tebas e finalmente em El Amarana. O que acontece nas províncias, longe da capital e dos grandes templos, é comparativamente pouco importante e caminha lenta e penosamente no encalço do desenvolvimento geral. Representa uma cultura que foi filtrada da classe alta, e em nenhuma acepção é possível considerá-la uma cultura que tenha brotado das profundezas da vida do povo. Essa arte provinciana, impossível de ser avaliada como a continuação da velha arte camponesa, também se destina a aristocracia rural e latifundiária, e deve sua própria existência à separação da nobreza feudal da corte, um processo que vinha ocorrendo desde a sexta dinastia. A nova nobreza provinciana, com sua cultura regional e retrógrada e sua arte provinciana derivativa é formada a partir desses elementos que haviam abandonado a capital.       


Trecho de História social da Arte e da literatura


terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Arnold Hauser

 

“O escriba”


Culturas urbanas do Oriente antigo: O estereótipo artístico no médio império 


“O conservantismo e o convencionalismo são atípicos das características raciais do povo egípcio, as quais são antes um fenômeno historicamente condicionado que se modifica à medida que evolui a situação como um todo. Nos relevos da última época pré-dinástica e da primeira época dinástica, prevalece uma liberdade de forma e composição que se perde mais tarde e somente voltará a ser readquirida na esteira de uma vasta revolução cultural.  [...] Talvez nunca mais tenha existido tanta liberdade e espontaneidade na arte egípcia quanto nesse estágio inicial de desenvolvimento. As condições especiais de vida na nova civilização urbana, as relações sociais diferenciadas, a especialização dos ofícios manuais e a emancipação do comércio contribuíram mais diretamente para a propagação do individualismo do que ocorreria mais tarde, quando essa influência foi obstruída e, com frequência, frustrada pelas forças que lutavam pela manutenção de sua própria autoridade. Só com o início do Médio império, quando a aristocracia feudal guinou-se ao primeiro plano, com sua consciência de classe fortemente acentuada, é que se desenvolveram as rígidas convenções da arte religiosa e palaciana, as quais suprimiram o surgimento posterior de quaisquer formas espontâneas de expressão. O estilo estereotipado das representações ligadas ao culto era bem conhecido desde os tempos neolíticos, mas as rígidas formas cerimoniais da arte palaciana são absolutamente novas e aí ganharam proeminência pela primeira vez na história da cultura humana. Refletem  o domínio de uma ordem social superior, supra-individual, de um mundo que deve sua grandeza e esplendo aos favores do rei. São formas antiindividualistas, estáticas, convencionais, porque expressam uma concepção de vida para a qual a descendência, a classe ou o vínculo a um clã ou grupo representa um grau de realidade mais elevado do que o caráter pessoal de um indivíduo; e por isso as regras abstratas de conduta e o código moral estão em evidência muito mais direta do que tudo aquilo que os indivíduos possam sentir, pensar ou querer. Todas as boas coisas e encontros da vida estão ligados, para os membros privilegiados dessa sociedade, à sua separação das outras classes, e todas as máximas a que eles obedecem assumem mais ou menos o caráter de regras de decoro e etiqueta.


Trecho de História social da Arte e da literatura

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Arnold Hauser



 Culturas urbanas do oriente antigo - O status do artista e a formalização da produção 


O primeiro acúmulo de terras caiu nas mãos de guerreiros e salteadores, conquistadores e opressores, chefes militares e príncipes; a primeira propriedade racionalmente administrada pode muito bem ter sido construída pelos domínios do templo, isto é, a propriedade dos deuses fundada pelos príncipes e gerida pelos sacerdotes. Por conseguinte, é sumamente provável que os sacerdotes tenha sido os primeiros empregadores regulares de artistas, os primeiros a dar-lhes encomendas; os reis limitaram-se a seguir-lhes o exemplo. [...] As criações consistiam, na maior parte, em oferendas vomitivas aos deuses e em monumentos comemorativos das façanhas régias, nos requisitos ou do culto dos deuses ou do soberano, em instrumentos de propaganda destinados a servir à fama dos imortais ou à fama póstuma de seus representantes na terra. O sacerdócio e a casa real constituíam parte integrante do mesmo sistema hierático, e as tarefas de que incumbiam os artistas, de garantir-lhes a salvação espiritual e a fama perpétua, estavam unidas nos alicerces de toda a religião primitiva, consubstanciada no culto dos mortos. [...] Os sacerdotes transigiam com que os reis fossem considerados deuses, de modo a atraí-los para sua própria esfera de autoridade, e os reis permitiam a edificação de templos para os deuses e sacerdotes como forma de aumentar sua própria glória.  [...] Em tais circunstâncias, estava fora de questão a existência de uma arte autônoma. [...] As grandes obras de artes, de cultura monumental e pintura mural, não foram criadas com um fim em si mesmas e por sua beleza intrínseca. 

A demanda por representações pictóricas, sobretudo de obras de arte sepulcral, foi tão grande no Egito, desde o começo, que não se pode deixar de supor que a profissão do artista tenha se tornado distinta e auto-suficiente. [...] Porém, de modo geral, o artista permanceram como artífice anônimo, parecido quando muito nessa condição e não como personalidade em si. [...] No Oriente antigo, a dependência do status social da concepção primitiva de prestígio, de acordo com a qual o trabalho manual era considerado desonroso, terá sido ainda maior que entre os gregos e romanos. Em todo caso, o apreço pelo artista cresceu à medida que se desenrolava o progresso geral. 

[...]

As oficinas do tempo e do palácio real eram as maiores e mais importantes, mas não as únicas; tais estabelecimentos eram igualmente encontrados nos grande s domínios senhoriais e nos bazares das maiores cidades. [...] O sistema de bazar, com sua sepraração entre a rotina de oficina e o trabalho doméstico, significa uma inovação revolucionária: contém o germe da indústria independente, produzindo bens sistematicamente - já não mais restritos a encomendas ocasionais - e mantendo-se, por um lado, como atividade profissional exclusiva, e por outro, como atividade fabricando artigos para o mercado livre. Esse sistema não só converte o produtor primário num trabalhador manual, mas retira-o dos limites fechados do trabalho doméstico. [...] O princípio da economia doméstica, na qual a produção está limitada às necessidades imediatas internas, é deste modo quebrado. 

[...] 

É usual considerar as oficinas, sobretudo as ligadas aos templos, os mais importantes centros transmissores de tradição. [...] Diga-se de passagem que tanto na oficina do templo quanto na do palácio real toda a prática de arte possuía o mesmo caráter acadêmico e formalista. O fato de existirem desde o começo regras universalmente vinculatórias, modelos universalmente válidos e métodos uniformes de trabalho indica a existência de um sistema dirigido a partir de um reduzido número de centros. A tradição acadêmica, algo rígida e pedantesca, levou, por um lado, a um excesso de produtos medíocres, mas, por outro, assegurou aquele nível médio comparativamente elevado que é tão típico da arte egípcia. 

[...]

A organização do trabalho artístico, a captação e o emprego variado de ajudantes, a especialização e a combinação de realizações individuais atingiram um desenvolvimento tão elevado no Egito, que recordam, de certo modo, os métodos empregados nas oficinas das catedrais medievais e, sob alguns aspectos, deixam na sombra toda a atividade artística anterior organizada em moldes individualistas. Desde o começo, toda a evolução encaminhou-se no sentido de uma padronização da produção, e essa tendência esteve sempre de acordo com a rotina da oficina. Sobretudo, a racionalização gradual dos processos artesanais exerceu uma influência niveladora sobre os métodos artísticos. Com a crescente demanda, consolidou-se o hábito de trabalhar de acordo com esboços preliminares, modelos e padrões uniformes, e desenvolveu-se uma técnica quase mecanicamente estereotipada de produção, permitindo  que objetos diferentes fossem construídos à partir de componentes uniformes produzidos separadamente. A aplicação de tais métodos racionalistas à produção artística só foi possível, é claro, porque era usual determinar a cada artista a execução repetida da mesma tarefa um sem-número de vezes, encomendando-lhe as mesmas oferendas volitivas, os mesmos ídolos, os mesmos monumentos sepulcrais, o mesmo tipo de imagens régias e de retratos particulares. e como a originalidade do tema nunca foi muito apreciado no Egito, sendo na verdade geralmente proibida, toda a ambição do artista concentrava-se na meticulosidade e perfeição da execução, à qual é tão notória, mesmo em obras de menor importância, que compensa a falta de interesse e vivacidade na invenção. A exigência de um acabamento polido e impecável também explica por que a produção das oficinas egípcias era comparativamente pequena, apesar da organização racionalista aí empregada. A predileção dos escultores por trabalhos em pedra, nos quais apenas o desbaste grosseiro do bloco era confiado aos aprendizes, enquanto o trabalho mais refinado dos detalhes e o acabamento final eram reservados ao mestre, desde o início impôs limites muito estreitos à produção.   


Trecho de História social da Arte e da literatura

domingo, 27 de dezembro de 2020

Arnold Hauser

 


O jardim de Nebamun, 1400a.C.




Elementos estáticos e dinâmicos na arte do oriente antigo 


A ruptura [que distingue o paleolítico do neolítico] tinha sido caracterizada pela transição do mero consumo para a produção, do primitivo individualismo para a cooperação, e agora [na transição entre do neolítico para o Oriente antigo] era marcada pelos alvores do comércio e das manufaturas independentes, pela ascensão de cidades e mercados, e pela aglomeração e diferenciação de populações. [...] Na maioria das instituições e costumes do Oriente Antigo, as formas autocráticas de governo, a manutenção parcial de uma economia natural, a impregnação da vida cotidiana por cultos religiosos e a tendência rigorosamente formalista da arte, os costumes e  tradições neolíticos persistiram lado a lado com o novo modo de vida urbano. 

[...]

A mudança decisiva no novo modo de vida é expressa, sobretudo, no fato de que a produção primária deixou de ser a ocupação principal e, historicamente, a mais progressiva, ingressando agora no serviço do comércio e da manufatura. O aumento da riqueza, o acúmulo de solos aráveis e de suprimentos alimentares livremente disponíveis em um número de mãos comparativamente reduzido, criou novas, mais intensivas e mais variadas necessidades de trocas  de produtos e redundou em nova divisão do trabalho. O criador de imagens de espíritos, de deuses e de homens, de utensílios decorativos e de jóias, emerge do meio fechado do lar e torna-se um especialista que faz dessa profissão seu modo de subsistência. Já deixou de ser o inspirado mágico ou o membro expedito do lar para tornar-se artífice que cinzela esculturas, faz pinturas ou modela vasos, tal como outros fabricam machados e sapatos, e não é tido em muito mais alto apreço que o ferreiro ou o sapateiro. A perfeição do trabalho manual, o controle seguro de materiais difíceis e o esmero da execução impecável, que é especialmente notável no Egito, em contraste com a genialidade ou a despreocupação diletante da arte anterior, é resultado da especialização profissional do artista, da vida urbana com a crescente competição entre formação rivais e do treinamento de uma elite experimentado e exigente de conhecedores nos centros culturais da cidade, nos recintos e dos templos e no palácio real. 

A cidade, com a sua concentração de população e os estímulos intelectuais produzidos pelo estreito contato entre os diferentes níveis da sociedade, seu mercado flutuantes e seu espírito antitradicionalista, condicionado pela natureza peculiar do mercado, seu comércio externo e a familiaridade dos mercados com terras e povos estranhos, sua economia monetária, por muito rudimentar que tenha inicialmente sido, e os deslocamentos de riqueza promovidos pela natureza da moeda, teve, inevitavelmente, um efeito revolucionário em todos os setores da vida cultural e contribuiu par ou estilo mais dinâmico e mais individualista na arte, mais livre da influência das formas e tipos tradicionais do que o geometrismo do período neolítico. 


Trecho de História social da Arte e da literatura

sábado, 26 de dezembro de 2020

Wolf Singer




 O processo de tomada de decisão


Para um neurobiologista, é evidente que todos os atos de uma pessoa são preparados com antecedência pelos processos neuronais que ocorrem no cérebro. Até onde se sabe, esses processos obedecem às leis da natureza, inclusive ao princípio de causalidade. Se não for assim, nenhum organismo vivo seria capaz de estabelecer relações coerentes entre suas condições ambientais e suas respostas comportamentais. Se os organismos respondessem de uma maneira aleatória aos desafios apresentados pelo mundo, não conseguiríamos sobreviver

[...]

A neurobiologia pressupõe que os processos mentais são o resultado de processos neuronais, não sua causa. Portanto, nesse contexto é inconcebível que uma entidade mental imaterial controle a atividade de redes neuronais a fim de desencadear uma ação. A neurobiologia afirma categoricamente, e defendo com firmeza essa posição, que todos os fenômenos mentias que penetram em nossa consciência são consequência da atividade neuronal que tem lugar nos inúmeros centros do cérebro, os quais devem cooperar a fim de produzir os estados mentais específicos que experimentamos, sejam percepções, sejam decisões, sentimentos, opiniões ou vontades. Desse ponto de vista, todos os fenômenos mentais são, portanto, a consequência, e não a causa, de processos neuronais. 

[...]

No caso da decisão pessoal, as informações que a sustentam têm origens neuronais diferentes, como a recordação de determinadas experiências, os valores morais incutidos, as disposições emocionais específicas do indivíduo e a percepção do contexto

[...]

Tudo indica que os nossos conhecimentos dependem de processos construtivistas. Os conhecimentos a priori, isto é, anteriores à experiência, e as interpretações indispensáveis à elaboração de experiências encontram-se nas estruturas específicas do cérebro dos seres humanos. Dado que essa estrutura resulta de um processo de adaptação genética e epigenética à dimensão do mundo acessível aos nossos sentidos, temos o direito de pensar que as percepções e as formas de interferência são subjetivas e, portanto, não generalizáveis. É verdade que estamos presos dentro de um raciocínio epistemológico circular. Nosso cérebro e, portanto, nossos conhecimentos se adaptaram ao pequeno nicho que é o mundo no qual a vida se desenvolveu e evoluiu. E nesse nicho, minúsculo em relação ao resto do universo, somente essas variáveis, isto é, nosso cérebro e nossos conhecimentos empíricos, conduziram os processos de adaptação dos nossos sistemas cognitivos, que se manifestam por meio da organização de nossos órgãos sensoriais. Esses órgãos são, eles mesmos, altamente seletivos e sensíveis apenas a um leque muito limitado de sinais físico-químicos. 

Utilizamos, portanto, um instrumento cognitivo que foi ajustado para apreender um segmento muito restrito do mundo, com o objetivo de “compreender”a totalidade desse mundo. É a partir das dimensões do universo ao qual estamos adaptados que extrapolamos as dimensões dos universos aos quais não estamos adaptados.  Pior, a evolução não aperfeiçoou nossos instrumentos cognitivos para que pudéssemos analisar a suposta “verdadeira natureza”que estaria oculta por trás dos fenômenos, mas com o único objetivo de que pudéssemos interpretar as informações necessárias à nossa sobrevivência e a reprodução dos organismos. De fato, a sobrevivência e a reprodução requerem métodos heurísticos muito diferentes das estratégias indispensáveis à descoberta da verdadeira natureza das coisas. 

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O registro da atividade neuronal revela que os processos neuronais que servem de base e preparam essa decisão começaram muito antes da tomada de consciência da decisão. Temos indícios complementares com estudos experimentais ao longo dos quais os sujeitos executam ações em resposta a instruções dadas de tal maneira que elas não podem percebê-las conscientemente. Em outras palavras, constatamos que os sujeitos respondem a essas instruções sem ter consciência de ter obedecido a elas. [...] Uma possibilidade é desviar a atenção do sujeito, uma técnica utilizada com bastante frequência por mágicos par que seus gestos permaneçam imperceptíveis aos olhos do público. No momento em que os sujeitos respondem às instruções que eles não perceberam conscientemente, é evidente que, então, eles se tornam conscientes de suas ações, que interpretam como resultado de sua própria intenção. Se perguntamos a esses sujeitos: “Por que você fez isso?”, eles dão uma resposta do tipo intencional: “Fiz porque quis”. Em seguida, eles inventam um motivo, convencidos de que foi sua intenção que desencadeou a ação. Temos aí um exemplo perfeito do fato de que a pessoa se atribui, de maneira ilusória e subjetiva, a plena responsabilidade pela totalidade de um processo decisório. 

Sentimos necessidade de encontrar razões para tudo que fazemos. Quando, porém, não temos acesso ao verdadeiro motivo pelo qual realizamos uma ação - porque a motivação é inconsciente ou porque nossa atenção foi desviada -, inventamos um, no qual passamos a acreditar, sem perceber que ele é fruto de nossa imaginação. 

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É interessante constatar que discutimos o problema do livre-arbítrio e da livre decisão pressupondo que as decisões são o resultado de deliberações conscientes e do raciocínio. Essas discussões podem tratar de argumentos morais que foram gravados na memória e que voltam à consciência, das consequências benéficas ou prejudiciais de um ato, ou de ideias sobre as quais ouvimos falar recentemente. Se tivermos tempo suficiente para avaliar essas argumentações segundo as regras do diálogo e dos sistemas de valores aceitos numa determinada sociedade - e se a consciência não for perturbada por um evento qualquer - , pensaremos, então, que o indivíduo é inteiramente livre para escolher diversas opções futuras, inclusive a opção de escolher evitar qualquer decisão. 

No entanto, “o agente que delibera”é uma rede neuronal, e o resultado da deliberação, isto é, a decisão, é a consequência de um processo neuronal que, por sua vez, é determinado pela sequência de processos que o precedem imediatamente. Portanto, o resultado desse processo depende de todas as variáveis que moldaram a estrutura funcional do cérebro no passado: predisposições genéticas, efeitos epigenéticos das impressões da primeira infância, a soma das expectativas passadas e o conjunto de estímulos presentes. Resumindo: uma decisão iminente é influenciada por todas as variáveis que determinam a programação específica do cérebro, bem como por todas as influências que atuam no cérebro no memento da tomada de decisão. 

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A especialista em neuroética, Katahinka Evers, ressalta que mesmo se as decisões conscientes são precedidas imediatamente de uma preparação neurológica inconsciente, isso não significa que a consciência está ausente: as experiências acumuladas ao longo da via não param de influenciar o conteúdo dos processos inconscientes. Isso significa que temos, de fato, um certo controle dos processos inconsciente, por meio dos conteúdos consciente que os precederam. Somos responsáveis, em certa medida, pelos conteúdos do nosso inconsciente, já que os fenômenos conscientes e inconscientes não param de se moldar reciprocamente numa rede complexa de causalidade mútua. [...] Portanto, mesmo se durante os décimos de segundo que parecem uma decisão existem processos inconscientes em ação no cérebro, a decisão final é, antes de mais nada, o ponto culminante da experiencia de toda uma vida. 

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Nosso modo de decidir, a maneira como nossos mecanismos neuronais convergem para que cheguemos a uma decisão, depende de todas as variáveis que influenciam o estado dinâmico do cérebro no próprio momento da decisão. Essas variáveis são fatores que moldaram a estrutura funcional do cérebro (genes, processos de desenvolvimento, educação, experiências), mas também as influências decorrentes do passado recente (conceitos, contexto, disposições emocionais e inúmeros outros elementos). Em princípio, qualquer experiência passada de que temos consciência pode ser levada em conta por ocasião das deliberações conscientes. No entanto, como um grande número de experiências não chega ao nível da consciência, elas não podem ser levadas em conta como argumentos que intervêm nas deliberações conscientes Porém, apesar disso essas experiências inconscientes vão influenciar o resultado das decisões, como motivações inconscientes e heurísticas. Na verdade, como ressaltamos, apenas uma pequena parte das inúmeras variáveis que intervêm nas decisões entra em jogo nas deliberações conscientes: nós temos recordações conscientes e extremamente limitadas, e talvez não tenhamos nenhuma lembrança dos fatores genéticos e epigenéticos que moldaram nossas estruturas cerebrais e, consequentemente, dos fatores que presidiram a elaboração de nossas tendências comportamentais individuais.  


Trecho retirado de Cérebro e Meditação - Diálogo entre budismo e neurociência