Queda livre
[Na beira da estrada] - Parece que você precisa de carona. [Repara na
nota da caminhoneira: 1,4] – Na verdade, estou bem. – Tem certeza? Vamos! Eu
não mordo. [Já dentro do caminhão] A garrafa azul é café. A vermelha, uísque.
Pode beber. – Estou bem. Obrigada. – Aonde está indo? – O mais próximo que você
puder me deixar de Port Mary. [Checa
no celular o perfil dela] – Está conferindo se sou perigosa nas minhas
avaliações? Uma pessoa com nota 1,4 só pode ser uma maníaca antissocial, não é?
– Você parece... – Normal? –Sim. – Obrigada. Não foi nada fácil. O que houve
com você? Você tem 2,8. Não tem cara de 2,8. – É temporário. Vou virar o jogo.
Vou num casamento. Sou dama de honra! –
Legal! – Quer ouvir meu discurso? – Não. Como ficou com 2,8? – Fui rebaixada
por gritar no aeroporto. E dobraram minhas notas negativas. – Como foi? –
Péssimo. – Perguntei dos gritos. – Não sei. Eu estava brava. Olha onde eu vim
parar... Mas, desde que chegue ao casamento e faça o discurso, vão ignorar o
2,8. Sou amiga da noiva. Todos lá têm nota alta, então a minha sobe logo.
Quando a punição acabar, a minha pontuação vai subir muito e vai dar tudo
certo. – Você é parecida comigo. Não agora. [Discreto sorriso] Eu já tive 4,6. -
4,6? – Eu vivia para isso. Me esforçava tanto... Há oito anos, Tom, o meu
marido, teve câncer. Foi no pâncreas. Muito ruim. Os sintomas apareceram tarde.
- Sinto muito. – Você não me conhece, então não sente muito. Só ficou esquisita
porque puxei o assunto de câncer com você. Eu dava cinco estrelas para todos os
médicos, todos os enfermeiros, todos os especialistas... Dava nota alta.
Agradecia. O câncer estava pouco se fodendo. Continuou crescendo. Alguns meses
depois, ouvimos falar de um tratamento experimental. Era muito caro e muito
exclusivo. Eu fiz tudo o que pude para conseguir uma vaga para ele. O tom tinha
4,3. Deram o lugar para um cara com a nota 4,4. Então, quando ele morreu,
pensei: “Que se foda!”. Passei a dizer o que queria e quando queria. Não estava
nem aí. As pessoas não gostam disso. É incrível como tudo vai por água abaixo
quando se age assim. No fim das contas, muitos de meus amigos não gostavam de
sinceridade. Passaram a me tratar como se eu tivesse cagado na mesa do café da
manhã deles. Mas foi muito bom me livrar daqueles filhos da puta. Foi como
tirar sapatos apertados. Que tal tentar? – Fala sério. – Por que não? – Não posso
simplesmente tirar os sapatos e sair caminhando por aí. – Não vai saber se não
tentar. – É que... Bem, você tinha conquistado coisas na sua vida. Coisas boas,
coisas reais. E acabou perdendo tudo. Sinto muito. Agora, você não tem mais
nada a perder. Eu ainda não tenho o que perder. Ainda estou lutando para
conseguir essa coisa. – E o que é essa coisa? – Sei lá... Algo que me deixe
feliz? Tipo, olhar ao meu redor e pensar que estou bem de vida. Ser capaz de respirar
sem me sentir... Meio que... Enfim,
falta muito para chegar lá. Até chegar lá, tenho que entrar no joguinho dos
números. Todos temos. Estamos atolados nisso. Essa porra desse mundo funciona
assim. Olha, talvez você não se lembre. Talvez seja velha demais para entender.
Eu não quis dizer isso dessa maneira. – Não se preocupe. Não vou te dar uma
nota baixa. [Pela manhã] – Querida? – Que horas são? – A partir daqui eu vou
para o leste, então você vai ter que arrumar outra carona. – Onde estamos? –
Uns 50 quilômetros de Port Mary. Muitos ônibus passam aqui. Você vai ficar bem.
– Obrigada. – Boa sorte com o seu discurso. Botei uma coisa aí para você. –
Botou? – Uma saída de emergência. – Tchau. [Após o caminhão partir, Lacie abre a
mala e encontra a garrafa vermelha.]