Ciúme – A faísca de Eros
O monstro de olhos verdes
causa muita desgraça, mas a ausência dessa serpente horrorosa indica a presença
de um cadáver cujo o nome é Eros.
Minna Antrim
P: Qual o segredo das
relações duradouras?
R: A infidelidade. Não o ato
em si, mas sua ameaça. Segundo Proust, uma injeção de ciúmes é a única coisa
capaz de resgatar uma relação arruinada pelo hábito.
Allain de Botton. Como Proust pode mudar sua vida
Eurípedis, Ovídio, Shakespeare, Tolstói, Proust, Flaubert, Stendhal, D.H.
Lawrence, Austen, as irmãs Bronte, Atwood – inúmeros gigantes da literatura
mergulharam no tema da infidelidade. No cerne de muitas dessas narrativas está
uma das emoções mais complexas, o ciúme – “aquela mistura nauseante de
possessividade, desconfiança, raiva e humilhação que pode tragar sua mente e
ameaçar sua essência enquanto você mede o rival”, como descreve a antropóloga
evolutiva Helen Fisher.
Scheinkman e Werneck se interessam especificamente pelas diferenças
culturais na interpretação do ciúme. Segundo elas, “reconhecido no mundo todo
como motivação para crimes passionais, o ciúme é definido em certas culturas
como uma força destrutiva que
precisa ser contida, enquanto em outras é concebido como um companheiro do amor e guardião da
monogamia, essencial para proteger a união do casal”.
O ciúme é, nas palavras da historiadora e filósofa italiana Guilia Sissa,
uma “fúria erótica”. [...] Podemos tentar esconder o nosso ciúmes,
mas quem o inspira sempre sabe – e às vezes até curte atiçar as brasas para
transforma-las em camas enlouquecedoras.
O ciúme não foi sempre renegado. O sociólogo Gordon Clanton pesquisou
matérias sobre o tema em revistas americanas populares durante um período de 45
anos. Até a década de 1970, ele era visto como um sentimento natural, intrínseco ao amor. Não é
surpresa que os conselhos sobre o tema fosse dirigidos exclusivamente às
mulheres, incentivadas à controlar o ciúme (nelas mesmas) e evitar provocá-lo
nos maridos. Depois de 1970, o ciúme caiu em desgraça e passou a ser visto cada
vez mais como um vestígio inadequado
de um modelo antigo de casamento em que a posse
era central (para homens) e a dependência inevitável (para mulheres). Na nova
era da livre escolha e igualdade, o
ciúme perdeu a legitimidade e virou
motivo de vergonha. “Se por livre e espontânea vontade escolhi você como a
pessoa certa, abrindo mão de todas as outras, e você me acolheu por livre e
espontânea vontade, eu não deveria
sentir necessidade de ser possessivo”.
Como Sissa destaca em seu revigorante livro acerca do tema, o ciúme carrega
em si um paradoxo – precisamos amar a fim de ter ciúme, mas, se
amamos, não deveríamos tê-lo. No
entanto, temos mesmo assim. Todo mundo fala mal do ciúmes. Portanto, o
vivenciamos como uma paixão inadmissível.
Não só somos proibidos de assumir que temos ciúme, como não nos é permitido
sentir ciúme. Hoje em dia, Sissa nos adverte, o ciúme é politicamente
incorreto.
Embora nosso reequilíbrio social em torno do ciúme tenha sido parte de
uma mudança importante para além do privilégio patriarcal, talvez ele tenha ido
longe demais. Nossos ideais culturais às
vezes são impacientes demais com nossas inseguranças humanas. Podem não
conseguir dar conta da vulnerabilidade inerente ao amor e da necessidade que o
coração tem de se defender. Quando botamos todas as nossas esperanças em uma
pessoa, nossa dependência aumenta. Todo casal vive à sombra do terceiro.
A pessoa ciumenta sabe que não é um personagem simpático e que seu
tormento provavelmente atrairá mais críticas que compaixão. Como resultado, o que
Proust chamou de “o demônio não pode ser exorcizado” simplesmente saiu à caça
de um vocabulário socialmente aceitável. “Trauma”, “pensamentos intrusivos”, “flashbacks”,
“obsessão”, “vigilância” e “problemas de apego” são o vocabulário moderno do
amor traído. Esse arcabouço do transtorno
de estresse pós-traumático legitima nosso sofrimento romântico, mas também
o despe da essência romântica.
Reconhecer o ciúme é admitir amor, competição e comparação – todos sentimentos
que demonstram vulnerabilidade. E mais ainda quando se expõe a quem magoou.
O monstro de olhos verdes nos insulta quando estamos mais indefesos e
nos põe em contato direto com nossas inseguranças, nosso medo da perda e nossa
falta de autoestima. Não é nosso ciúme iludido ou patológico, em que a
desconfiança infundada é alimentada mais pelo trauma de infância que por alguma
causa atual. É o tipo de ciúme que é intrínseco ao amor e portanto à
infidelidade. Estão contido nessa simples palavra um monte de sentimentos e
reações intensos, que podem ir do lamento, insegurança e humilhação a
possessividade e rivalidade, excitação e encanto, desejo de vingança e
desforra, chegando até a violência.
Cá estamos no dilema da possessividade.
O desejo de ter e controlar é ao mesmo tempo parte intrínseca da fome
do amor e também uma perversão do amor. Por um lado, queremos instigar o
parceiro a voltar para nós. Mas não queremos que volte só por obrigação:
queremos nos sentir escolhidos. E sabemos que o amor que é privado de liberdade
e capitulação voluntária não é amor. Porém, é assustador criar espaço para essa
liberdade.
Fotografia: Nan Goldin
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