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quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Esther Perel




Ciúme – A faísca de Eros

O monstro de olhos verdes causa muita desgraça, mas a ausência dessa serpente horrorosa indica a presença de um cadáver cujo o nome é Eros.
Minna Antrim

P: Qual o segredo das relações duradouras?
R: A infidelidade. Não o ato em si, mas sua ameaça. Segundo Proust, uma injeção de ciúmes é a única coisa capaz de resgatar uma relação arruinada pelo hábito.
Allain de Botton. Como Proust pode mudar sua vida

Eurípedis, Ovídio, Shakespeare, Tolstói, Proust, Flaubert, Stendhal, D.H. Lawrence, Austen, as irmãs Bronte, Atwood – inúmeros gigantes da literatura mergulharam no tema da infidelidade. No cerne de muitas dessas narrativas está uma das emoções mais complexas, o ciúme – “aquela mistura nauseante de possessividade, desconfiança, raiva e humilhação que pode tragar sua mente e ameaçar sua essência enquanto você mede o rival”, como descreve a antropóloga evolutiva Helen Fisher.

Scheinkman e Werneck se interessam especificamente pelas diferenças culturais na interpretação do ciúme. Segundo elas, “reconhecido no mundo todo como motivação para crimes passionais, o ciúme é definido em certas culturas como uma força destrutiva que precisa ser contida, enquanto em outras é concebido como um companheiro do amor e guardião da monogamia, essencial para proteger a união do casal”.

O ciúme é, nas palavras da historiadora e filósofa italiana Guilia Sissa, uma “fúria erótica”.  [...] Podemos tentar esconder o nosso ciúmes, mas quem o inspira sempre sabe – e às vezes até curte atiçar as brasas para transforma-las em camas enlouquecedoras.  

O ciúme não foi sempre renegado. O sociólogo Gordon Clanton pesquisou matérias sobre o tema em revistas americanas populares durante um período de 45 anos. Até a década de 1970, ele era visto como um sentimento natural, intrínseco ao amor. Não é surpresa que os conselhos sobre o tema fosse dirigidos exclusivamente às mulheres, incentivadas à controlar o ciúme (nelas mesmas) e evitar provocá-lo nos maridos. Depois de 1970, o ciúme caiu em desgraça e passou a ser visto cada vez mais como um vestígio inadequado de um modelo antigo de casamento em que a posse era central (para homens) e a dependência inevitável (para mulheres). Na nova era da livre escolha e igualdade, o ciúme perdeu a legitimidade e virou motivo de vergonha. “Se por livre e espontânea vontade escolhi você como a pessoa certa, abrindo mão de todas as outras, e você me acolheu por livre e espontânea vontade, eu não deveria sentir necessidade de ser possessivo”.

Como Sissa destaca em seu revigorante livro acerca do tema, o ciúme carrega em si um paradoxoprecisamos amar a fim de ter ciúme, mas, se amamos, não deveríamos tê-lo. No entanto, temos mesmo assim. Todo mundo fala mal do ciúmes. Portanto, o vivenciamos como uma paixão inadmissível. Não só somos proibidos de assumir que temos ciúme, como não nos é permitido sentir ciúme. Hoje em dia, Sissa nos adverte, o ciúme é politicamente incorreto.

Embora nosso reequilíbrio social em torno do ciúme tenha sido parte de uma mudança importante para além do privilégio patriarcal, talvez ele tenha ido longe demais. Nossos ideais culturais às vezes são impacientes demais com nossas inseguranças humanas. Podem não conseguir dar conta da vulnerabilidade inerente ao amor e da necessidade que o coração tem de se defender. Quando botamos todas as nossas esperanças em uma pessoa, nossa dependência aumenta. Todo casal vive à sombra do terceiro.

A pessoa ciumenta sabe que não é um personagem simpático e que seu tormento provavelmente atrairá mais críticas que compaixão. Como resultado, o que Proust chamou de “o demônio não pode ser exorcizado” simplesmente saiu à caça de um vocabulário socialmente aceitável. “Trauma”, “pensamentos intrusivos”, “flashbacks”, “obsessão”, “vigilância” e “problemas de apego” são o vocabulário moderno do amor traído. Esse arcabouço do transtorno de estresse pós-traumático legitima nosso sofrimento romântico, mas também o despe da essência romântica.

Reconhecer o ciúme é admitir amor, competição e comparação – todos sentimentos que demonstram vulnerabilidade. E mais ainda quando se expõe a quem magoou.

O monstro de olhos verdes nos insulta quando estamos mais indefesos e nos põe em contato direto com nossas inseguranças, nosso medo da perda e nossa falta de autoestima. Não é nosso ciúme iludido ou patológico, em que a desconfiança infundada é alimentada mais pelo trauma de infância que por alguma causa atual. É o tipo de ciúme que é intrínseco ao amor e portanto à infidelidade. Estão contido nessa simples palavra um monte de sentimentos e reações intensos, que podem ir do lamento, insegurança e humilhação a possessividade e rivalidade, excitação e encanto, desejo de vingança e desforra, chegando até a violência.

Cá estamos no dilema da possessividade. O desejo de ter e controlar é ao mesmo tempo parte intrínseca da fome do amor e também uma perversão do amor. Por um lado, queremos instigar o parceiro a voltar para nós. Mas não queremos que volte só por obrigação: queremos nos sentir escolhidos. E sabemos que o amor que é privado de liberdade e capitulação voluntária não é amor. Porém, é assustador criar espaço para essa liberdade.   



Fotografia: Nan Goldin

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Esther Perel





Lojinha de horrores: alguns casos provocam mais dor do que outros?

Coisa estranha que tais palavras, “umas duas ou três vezes”, nada mais que palavras, palavras pronunciadas no ar, à distância, possam assim dilacerar o coração como se o tocassem de verdade, possam fazer adoecer, como um veneno que se ingerisse.
Marcel Proust, No caminho de Swann

Alguns casos são piores que outros? Alguns tipos de infidelidade magoam menos e se mostram mais fáceis no tocante à recuperação?

É quase irresistível tentar organizar uma hierarquia da violação, no entanto, por mais convidativo que seja criar uma gradação de traições, não é de grande valia medir a legitimidade da reação pela magnitude da afronta. [...] O impacto do caso não é necessariamente proporcional à sua duração ou seriedade.

Na intrincada história da infidelidade, todas as nuances interessam. A pesquisadora Brené Brown explica que, depois de um acontecimento chocante ou traumático, “nossas emoções fazem a primeira tentativa de entender a dor”. Certas coisas despertam o sofrimento (“Ele fez o quê?”) e outras se tornam marcadores de alívio (“pelo menos não fez isso”). Algumas são amplificadores – elementos específicos que aumentam o sofrimento – e outras são amortecedores – blindagens protetoras contra a mágoa.

Como a infidelidade vai lhe cair e como você vai reagir tem tanto a ver com suas próprias expectativas, sensibilidades e histórico, como com a notoriedade da conduta do parceiro.  Gênero, cultura, classe, raça e orientação sexual: tudo isso emoldura a experiência da infidelidade e dá forma à dor.

Nossa história familiar é o principal amplificador – casos e outras quebras de confiança com que somos criados ou que sofremos em relações passadas podem nos deixar mais suscetíveis. A infidelidade sempre ocorre dentro de uma rede de conexões, e a história começou muito antes da ofensa crítica. Para alguns, confirma um medo arraigado: “Não é que ele não me ame, é que eu não me sinto amável”. E, para outros, estraçalham a imagem que tinham do parceiro: “Escolhi você porque tinha certeza que não era desse tipo”.

Um dos amortecedores é a forte rede de amigos e familiares, que são pacientes e oferecem um porto seguro para a complexidade da situação. Um senso de identidade bem desenvolvido ou um espiritual ou religiosa também podem mitigar o impacto. A própria qualidade da relação, anterior à crise, sempre tem um grande papel. E, se alguém sente ter alternativas – imóveis, poupança, perspectivas de trabalho, perspectivas de namoro –, isso não só diminui sua vulnerabilidade como também fornece certa margem de manobra, por dentro e por fora. Analisar os pontos dolorosos da traição ajuda a identificar oportunidades para fortalecer esses amortecedores protetivos.

“Por que logo ele?”

Algumas pessoas conseguem exprimir seus sentimentos no mesmo instante. A capacidade de entender as próprias emoções lhes permite reconhecer, nomear, e assumir as especificidades do seu sofrimento. Porém, também encontro pessoas que se fecharam sem jamais identificar seus pontos nevrálgicos emocionais. Elas vivem assombradas por sentimentos sem nome, que não se tornam menos potentes por causa do anonimato.

“Como foi que não percebi?”

É da natureza humana nos agarrarmos ao nosso senso de realidade, resistir ao seu possível abalo mesmo diante de provas irrefutáveis. Eu lhe garanto que “não fazer ideia” não é algo de que deva se envergonhar. Esse tipo de escape não é um ato de idiotismo, mas de autopreservação. Na verdade, é um sofisticado mecanismo de autoproteção conhecido como negação do trauma – uma espécie de autoilusão que utilizamos quando há muita coisa em jogo e temos muito a perder. A mente precisa de coerência, portanto renega as inconsistências que ameaçam a estrutura de nossas vidas. Isso se torna mais marcante quando somos traídos pelas pessoas que nos são mais próximas e das quais mais dependemos – uma prova do esforço que somos capazes de fazer para manter nossas relações, por mais turbulentas que possam ser.

Da desconfiança à certeza

A certeza é cáustica, mas a desconfiança persistente é uma agonia. Quando começamos a desconfiar que nosso amado está nos enganando, viramos escavadores implacáveis, farejando roupas e pistas jogadas com desleixo pelo desejo. Especialistas em sistemas sofisticados de vigilância, monitoramos as menores mudanças no rosto, a indiferença na voz, o cheiro estranho na camisa, o beijo sem graça. Somamos as mínimas incongruências. [...] Mais cedo ou mais tarde, o desejo de saber supera o medo de saber, e começamos a sondar e interrogar.  [...] Às vezes, o tormento corrosivo representado pela desconfiança da fidelidade do parceiro é piorada pela prática cruel do gaslighting. [...] Quando a desconfiança vira certeza, por um instante pode haver alívio, mas logo em seguida vem um novo golpe. O momento de revelação deixa uma cicatriz indelével.   

Segredos, fofocas e conselhos ruins

As pessoas não só descobrem os segredos dos parceiros como, em prol dos filhos, às vezes se tornam partícipes relutantes de engodos.  

Quando o segredo é revelado, é comum a agonia ser reforçada pelo castigo da piedade e da condenação social. “Como é que ela não sabia?”, sussurram. A voz condenatória coletiva vai da crítica suave à responsabilização total da vítima – por “deixar” que acontecesse, por não fazer o suficiente para prevenir, por não perceber o que estava acontecendo, por deixar que a situação se arrastasse por tanto tempo e, é claro, por continuar casada depois do ocorrido. A fofoca sibila por todos os lados.

Um caso pode não só destruir um casamento: ele tem o poder de descosturar toda uma malha social. [...] Para os que são traídos, as feridas específicas são a vergonha e o isolamento. A revelação de um caso pode deixar o parceiro que foi pego de surpresa em um aperto: na hora em que mais precisam dos outros para obter consolo e confirmação, menos capazes se sentem de pedir ajuda. Sem poder recorrer ao apoio de amigos, sentem-se duplamente sós.

“Por que agora?”

Os casos já doem bastante, às vezes o momento é a gota d’água. [...]Quando o momento tem alta significância pessoal, a ênfase é no “como ele(a) foi capaz de fazer isso comigo naquele momento?”. O momento quase se sobrepõe ao o quê.

“Você não pensou em mim?”

Em certas circunstâncias é a premeditação da vida dupla que fere – o grau de planejamento necessário para levar a cabo a sequência calculada de dissimulações. A intencionalidade implica que o parceiro infiel pesou seus desejos e suas consequências e resolveu ir em frente mesmo assim. Além do mais, o investimento substancial de tempo, energia, dinheiro e criatividade indica a motivação consciente de levar adiante as motivações egoístas à custa do companheiro ou da família. [...] Cada passo de premeditação em torno do amante significa um descaso ativo pela pessoa amada.

Casos cuidadosamente premeditados doem, mas a situação oposta também pode doer igualmente. Nessas circunstâncias, trata-se da indiferença da traição ocorrida por acaso. “Você está dizendo isso para eu me sentir melhor? Que você é capaz de me magoar tanto assim por uma coisa sem nenhuma importância?”.

“Será que eu estava só esquentando o lugar do amor da vida dele?”

Uma reviravolta na narrativa da infidelidade que é particularmente sofrida é a reativação de uma paixão antiga. “Por que ela?  Por que a ex? Ela o fez sofrer demais. Seria de se imaginar que ele não quisesse nada com ela. Será que ele me amou de verdade? Apesar dos filhos e de tudo que construímos, será que já fui mesmo o amor da vida dele? Ou será que era ela? Vai ver que eu estava esquentando o lugar do amor da vida dele”.  Ser substituído é sempre duro, mas quando o ex retorna e o novo na verdade é velho, o toque especial é a sensação de que talvez estejamos competindo com o destino.

Dinheiro. Bebês. DSTs. Premeditação. Descuido. Vergonha. Insegurança. Fofoca. Críticas. A pessoa, gênero, tempo, lugar, contexto social específicos. Se esse breve compêndio das histórias de horror do amor nos mostra alguma coisa é que, embora todos os atos de traição tenham características em comum, toda vivência da traição é única. Não fazemos bem a ninguém ao reduzir casos a sexo e mentiras, ignorando os vários outros elementos constitutivos que criam as nuances do suplício e influenciam o caminho que leva à cura.

sábado, 1 de setembro de 2018

Esther Perel



Por que a traição dói tanto?
Sangrando por milhares de cortes

Pensava saber quem eu era, quem era ele: e de repente, não nos reconheço mais nem a mim nem a ele. [...] Minha vida, atrás de mim, desmoronou, como nesses terremotos em que a terra devora a si mesma: ela se esboroa às nossas costas à medida que fugimos. Não há mais retorno.
Simone de Beauvoir, A mulher desiludida.

O adultério sempre doeu. Mas, para os acólitos do amor moderno, parece doer mais do que nunca. Na verdade, o turbilhão de emoções desencadeado na esteira de um caso é tão avassalador que muitos psicólogos contemporâneos fazem empréstimos da área do trauma para explicar os sintomas: a ruminação obsessiva, a hipervigilância, o torpor e a dissociação, acesso de fúria inexplicáveis e pânico descontrolado.

As emoções não se distribuem perfeitamente em um fluxograma de adequação. Na verdade, muitos declaram ir e voltar em uma rápida sucessão de emoções contraditórias. “Eu te amo! Te odeio! Me abraça! Não encosta em mim! Pega suas porcarias e cai fora! Não me abandona! Canalha! Você ainda me ama? Vai se foder! Vem me foder!” Esse bombardeio de reações é normal e o provável é que dure um tempo.

A revelação é um momento fundamental na história de um caso e de um casamento. O choque da descoberta estimula o cérebro reptiliano, desencadeado uma reação primitiva: lutar, fugir ou gelar. Algumas pessoas ficam paradas, atônitas, outras desaparecem em um piscar de olhos – na esperança de escapar do cataclismo e retomar a sensação de controle sobre a própria vida. Quando o sistema límbico é acionado, a sobrevivência a curto prazo supera as decisões bem pensadas. Nesses momentos, é muito comum que seus impulsos, apesar de terem como objetivo a proteção, possam em um instante destruir anos de capital conjugal positivo.

Fala tanto ao isolamento do matrimônio moderno quanto ao estigma da infidelidade o fato de que muitas vezes o terapeuta é a única pessoa que sabe o que está acontecendo nessa primeira etapa – ele passa ser a base estável que escora o desmoronamento de ambos.
Há tantas peças pendentes – duas pessoas brigando com o fato de que andaram vivendo em realidades diferentes e só uma delas sabia disso.

Nesse contexto de crise, alguns casais costumam ter algumas das conversas mais profundas e francas, adentrando à madrugada. A história deles é desnudada, expectativas frustradas, raiva, amor e tudo o que há entre um ponto e outro. Eles se escutam. Nesse momento crítico, choram, discutem e fazem amor – muito. (É estranho como o medo da perda consegue reavivar o desejo.) Estão de novo, frente a frente – assim como ficamos logo que nos apaixonamos, antes de nos acomodarmos na posição lado a lado do cotidiano de um casal.

O casamento se tornou um castelo mítico, projetado para ser tudo o que poderíamos querer. Os casos o levam ao desmoronamento, nos deixando com a sensação de que não temos onde nos segurar. Talvez isso nos ajude em parte a explicar por que a infidelidade moderna é mais que dolorosa. É traumática.

A infidelidade é um ataque direto a uma de nossas estruturas psíquicas mais importantes: nossa memória do passado. Ela não apenas sequestra as esperanças e planos de um casal, mas também põe um ponto de interrogação na história que tiveram. Se não podemos olhar para trás com nenhuma certeza e não podemos saber o que vai acontecer amanhã, o que nos resta? O parceiro traído fica rigidamente empacado no presente, esmagado pela sucessão inexorável de fatos perturbadores acerca do caso.

Estamos dispostos a admitir que o futuro é imprevisível, mas esperamos que o passado seja confiável. Traídos pelo amado, sofremos a perda de uma narrativa coerente – a “estrutura interna que nos ajuda a prever e regular atos e emoções futuros [criando] um senso de identidade estável”, conforme a definição da psiquiatra Anna Fels: “talvez roubar de alguém a sua história seja a maior das traições”.

No ímpeto obsessivo de erradicar todas as facetas de um caso mora a necessidade existencial de costurar de novo a tapeçaria da vida. Somos criaturas produtoras de sentido e nos fiamos na coerência. As interrogações, os flashbacks, as ruminações circulares e a hipervigilância são manifestações de uma narrativa de vida dispersa tentando se reagrupar com as peças encaixadas. [...] As pessoas reveem constantemente a vida de que se recordam em um lado e a versão recém-descoberta no outro. Um senso de alienação as invade. Não é só do companheiro mentiroso que elas se sentem distantes, mas também de si mesmas.

A infidelidade não é apenas uma perda de amor: é uma perda de identidade. [...] Quando o amor se torna plural, o feitiço da unidade é rompido. Para certas pessoas, essa dissolução ultrapassa o que o casamento é capaz de suportar.

Do ponto de vista histórico, a maioria das pessoas sempre ancorou sua autoestima na obediência aos valores e expectativas da religião e da hierarquia familiar. Mas, na ausência de instituições antigas, cada um é incumbido de criar e manter a própria identidade, e o fardo individualmente nunca foi tão pesado. Por isso estamos sempre negociando nossa autoestima. A socióloga Eva Illouz destaca astutamente que “o único lugar onde você espera parar com essa avaliação é no amor. No amor você se torna o vencedor do concurso, o primeiro e o único.” Não surpreende que infidelidade nos atire em um fosso de insegurança e confusão existencial.

E a crise de identidade não está reservada somente ao parceiro traído. Quando o véu de um segredo se levanta, o choque não é apenas de quem descobriu o caso, mas também de que o teve. Observando a própria conduta através dos olhos recém-abertos do prejudicado, o protagonista do caso encara uma autoimagem quase irreconhecível. [...] Ele tem de considerar a discrepância entre sua autoimagem e seus atos. [...] Sua política identitária gerou um ponto cego. Só agora, sob a luz forte dos copiosos indícios, ele percebe como forçou a barra nas racionalizações.  


Fotografia: Nan Goldin

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Esther Perel



Uma aliança para governar o mundo

Nunca nossas expectativas acerca do casamento haviam tomado proporções tão épicas. Ainda queremos tudo o que a família tradicional deveria – segurança, filhos, bens imóveis e respeitabilidade – só que agora também queremos que nosso parceiro nos ame, nos deseje e permaneça interessado em nós. Devemos ser melhores amigos, confidentes e amantes fervorosos. A imaginação humana suscitou um novo Olimpo: que o amor permaneça incondicional, a intimidade fascinante e o sexo fantástico, a longo prazo, com a mesma pessoa. E o longo prazo não para de aumentar.

O pequeno círculo da aliança de casamento contém ideais extremamente contraditórios. Queremos que nosso escolhido ofereça estabilidade, segurança, previsibilidade e confiabilidade – todas as experiências que nos servem de âncora. E queremos que a mesmíssima pessoa nos ofereça estupefação, mistério, aventura e risco. Me dê conforto e me dê exagero. Me dê familiaridade e me dê novidade. Me dê continuidade e me dê surpresa. Os amantes de hoje procuram ter sob um único teto desejos que desde sempre tiveram lugares separados.

Na nossa sociedade secularizada, o amor romântico se tornou, nas palavras do analista junguiano Robert Johnson, “o maior sistema energético da psique ocidental”. Na nossa cultura, ele suplantou a religião como a arena em que homens e mulheres procuram sentido, transcendências, completude e arrebatamento”. Em busca da “alma gêmea”, combinamos o espiritual e o relacional como se fosse uma só coisa. A perfeição que almejamos experimentar no amor terreno antes era procurada apenas no santuário do divino. Quando atribuímos ao nosso parceiro características divinas e esperamos que ele ou ela nos eleve do mundano ao sublime, criamos, segundo Johnson, uma “confusão profana de dois amores sagrados” que inevitavelmente causa frustração.

Não só temos exigências intermináveis como, ainda por cima, queremos ser felizes. Antigamente, a felicidade era reservada para a vida póstuma. Trouxemos o céu para a terra, ao alcance de todos, e agora ela não é mais apenas uma busca, mas uma ordem.   Esperamos que uma pessoa nos dê o que outrora nos era proporcionado por um vilarejo inteiro, e vivemos o dobro de tempo. É uma tarefa de vulto para duas pessoas.

Levamos para o nosso conceito de casamento tudo que antigamente procurávamos fora dele – o olhar admirado do amor romântico, o desembaraço mútuo do sexo desenfreado, o equilíbrio perfeito entre liberdade e compromisso. Em uma parceria tão jubilosa, por que pularíamos a cerca? A evolução das relações comprometias nos levou a um lugar em que acreditamos que a infidelidade não deveria acontecer, já que todas as motivações foram eliminadas.

E, no entanto, ela acontece. Por mais que nós, românticos incorrigíveis, detestemos admitir, casamentos baseados em atração e amor em geral são mais frágeis do que os casamentos baseados em motivos materiais. Mas isso não quer dizer que os casamentos antigos, estáveis, eram mais felizes. Eles nos deixam mais vulneráveis aos caprichos do coração humano e às sombras da traição.

Os homens e mulheres com os quais trabalho investem mais do que nunca no amor e na felicidade, mas em uma reviravolta cruel do destino, a sensação de merecimento resultante justamente é o que está por trás do aumento exponencial da infidelidade e do divórcio hoje em dia. Antes traíamos porque não era papel do casamento oferecer amor e paixão. Hoje traímos porque o casamento não consegue suprir o amor, a paixão e a atenção total que são prometidos.

Todos os dias, no consultório, conheço consumidores da ideologia moderna do casamento. Eles compraram o produto, levaram para casa e descobriram que algumas peças estavam faltando. Então vão a oficina para consertá-lo e deixá-lo parecido com a imagem da caixa. Consideram fato consumado as aspirações que têm para a relação – tanto o que desejam quanto o que merecem ter – e ficam aborrecidos quando o ideal romântico não é comprido na realidade não romântica. Não é surpresa que essa visão utópica esteja deixando para trás uma tropa cada vez maior de desencantados.


Fotografia: Nan Goldin


sábado, 28 de julho de 2018

Esther Perel




Você já foi afetado pela infidelidade

A maioria das histórias de infidelidade é bem mais banal do que aquelas que ganham as manchetes: não existe filho, DST, perseguição ao ex-amante com extorsões de dinheiro. [...] São normalmente inúmeros homens e mulheres comprometidos, que partilham histórias e princípios – princípios que em geral incluem a monogamia –, cujas narrativas se desdobram segundo uma trajetória humana mais singela. A solidão, os anos de apatia sexual, o ressentimento, o arrependimento, o desleixo conjugal, a juventude perdida, a atenção almejada, as bebidas além da conta – coisas assim são a essência da infidelidade cotidiana. Muitas dessas pessoas ficam muito confusas quanto à própria conduta.  

Casos extraconjugais têm muito o que nos ensinar sobre relacionamentos. Eles abrem a porta para um exame mais profundo dos valores da natureza humana e do poder do eros; nos forçam a lidar com algumas questões muito inquietantes: o que instiga alguém a cruzar fronteiras estabelecidas com tanto empenho? Por que a traição sexual magoa tanto? Casos são sempre atos egoístas e covardes ou em certas situações podem ser compreensíveis, aceitáveis, até mesmo um gesto audacioso e corajoso? E, conhecendo ou não esse drama, o que podemos aprender com a empolgação da infidelidade para revigorar nossas relações? 
Um amor secreto tem de ser sempre revelado? A paixão tem prazo de validade? Existem satisfações que um casamento, ainda que bom, jamais consegue saciar? Como atingir o equilíbrio entre nossas carências emocionais e nossos desejos eróticos? Será que a monogamia já deixou para trás sua utilidade? O que é fidelidade? Somos capazes de amar mais de uma pessoa ao mesmo tempo?

Para mim, essas conversas são partes fundamentais de qualquer relação adulta, íntima. Para a maioria dos casais, infelizmente, a crise gerada por um caso marca a primeira vez que tais assuntos são debatidos. A catástrofe acaba nos empurrando para a essência das coisas. Recomendo que não se espere a tempestade, mas que se enfrente essas ideias em um clima mais ameno. Falar do que nos leva além da nossa cerca – do medo da perda que acompanha essa atitude – uma atmosfera de confiança pode de fato fomentar a intimidade e o compromisso. Nossos desejos, até os mais ilícitos, são característicos da nossa humanidade.

Por mais tentador que seja resumir os casos a sexo e mentiras, prefiro usar a infidelidade como um portal para a paisagem complexa das relações e dos limites que fixamos para mantê-las. A infidelidade nos põe cara a cara com as forças opostas e voláteis da paixão: a atração, a luxúria, a urgência, o amor e sua impossibilidade, o alívio, a armadilha, a culpa, a mágoa, o pecado, a vigilância, a loucura da desconfiança, o ímpeto homicida de pagar na mesma moeda, o desfecho trágico. Esteja avisado: tratar dessas questões exige disposição para descambar em um labirinto de forças irracionais. O amor é complicado, a infidelidade mais ainda. Mas também é uma janela, como nenhuma outra, para as frestas do coração humano.  


In: Casos e casos - Repensando a infidelidade 
Fotografia: Mary Ellen Mark