Por que a traição dói tanto?
Sangrando por milhares de cortes
Pensava saber quem eu era, quem era ele: e de repente,
não nos reconheço mais nem a mim nem a ele. [...] Minha vida, atrás de mim,
desmoronou, como nesses terremotos em que a terra devora a si mesma: ela se esboroa
às nossas costas à medida que fugimos. Não há mais retorno.
Simone de Beauvoir, A mulher desiludida.
O adultério sempre doeu. Mas, para os acólitos do amor moderno, parece
doer mais do que nunca. Na verdade, o turbilhão de emoções desencadeado na
esteira de um caso é tão avassalador que muitos psicólogos contemporâneos fazem
empréstimos da área do trauma para explicar os sintomas: a ruminação obsessiva,
a hipervigilância, o torpor e a dissociação, acesso de fúria inexplicáveis e
pânico descontrolado.
As emoções não se distribuem perfeitamente em um fluxograma de
adequação. Na verdade, muitos declaram ir e voltar em uma rápida sucessão de emoções contraditórias. “Eu te
amo! Te odeio! Me abraça! Não encosta em mim! Pega suas porcarias e cai fora!
Não me abandona! Canalha! Você ainda me ama? Vai se foder! Vem me foder!” Esse
bombardeio de reações é normal e o provável é que dure um tempo.
A revelação é um momento
fundamental na história de um caso e de um casamento. O choque da descoberta
estimula o cérebro reptiliano, desencadeado uma reação primitiva: lutar, fugir ou gelar. Algumas pessoas
ficam paradas, atônitas, outras desaparecem em um piscar de olhos – na esperança
de escapar do cataclismo e retomar a sensação de controle sobre a própria vida.
Quando o sistema límbico é acionado, a sobrevivência a curto prazo supera as decisões
bem pensadas. Nesses momentos, é muito comum que seus impulsos, apesar de terem
como objetivo a proteção, possam em um instante destruir anos de capital
conjugal positivo.
Fala tanto ao isolamento do matrimônio moderno quanto ao estigma da
infidelidade o fato de que muitas vezes o terapeuta é a única pessoa que sabe o
que está acontecendo nessa primeira etapa – ele passa ser a base estável que
escora o desmoronamento de ambos.
Há tantas peças pendentes – duas pessoas brigando com o fato de que andaram
vivendo em realidades diferentes e só uma delas sabia disso.
Nesse contexto de crise, alguns casais costumam ter algumas das
conversas mais profundas e francas, adentrando à madrugada. A história deles é
desnudada, expectativas frustradas, raiva, amor e tudo o que há entre um ponto
e outro. Eles se escutam. Nesse momento crítico, choram, discutem e fazem amor –
muito. (É estranho como o medo da perda consegue reavivar o desejo.) Estão de
novo, frente a frente – assim como ficamos logo que nos apaixonamos, antes de
nos acomodarmos na posição lado a lado do cotidiano de um casal.
O casamento se tornou um castelo mítico, projetado para ser tudo o que
poderíamos querer. Os casos o levam ao desmoronamento, nos deixando com a
sensação de que não temos onde nos segurar. Talvez isso nos ajude em parte a
explicar por que a infidelidade moderna é mais que dolorosa. É traumática.
A infidelidade é um ataque direto a uma de nossas estruturas psíquicas
mais importantes: nossa memória do passado. Ela não apenas sequestra as
esperanças e planos de um casal, mas também põe um ponto de interrogação na história que tiveram. Se não podemos
olhar para trás com nenhuma certeza e não podemos saber o que vai acontecer
amanhã, o que nos resta? O parceiro traído fica rigidamente empacado no
presente, esmagado pela sucessão inexorável de fatos perturbadores acerca do
caso.
Estamos dispostos a admitir que o futuro é imprevisível, mas esperamos
que o passado seja confiável. Traídos pelo amado, sofremos a perda de uma narrativa coerente – a “estrutura interna que nos ajuda a prever e
regular atos e emoções futuros [criando] um senso de identidade estável”,
conforme a definição da psiquiatra Anna Fels: “talvez roubar de alguém a sua
história seja a maior das traições”.
No ímpeto obsessivo de erradicar todas as facetas de um caso mora a
necessidade existencial de costurar de novo a tapeçaria da vida. Somos criaturas
produtoras de sentido e nos fiamos na coerência. As interrogações, os flashbacks,
as ruminações circulares e a hipervigilância são manifestações de uma narrativa
de vida dispersa tentando se reagrupar com as peças encaixadas. [...] As pessoas
reveem constantemente a vida de que se recordam em um lado e a versão
recém-descoberta no outro. Um senso de alienação as invade. Não é só do
companheiro mentiroso que elas se sentem distantes, mas também de si mesmas.
A infidelidade não é apenas uma perda de amor: é uma perda de
identidade. [...] Quando o amor se torna plural, o feitiço da unidade é
rompido. Para certas pessoas, essa dissolução ultrapassa o que o casamento é
capaz de suportar.
Do ponto de vista histórico, a maioria das pessoas sempre ancorou sua
autoestima na obediência aos valores e expectativas da religião e da hierarquia
familiar. Mas, na ausência de instituições antigas, cada um é incumbido de
criar e manter a própria identidade, e o fardo individualmente nunca foi tão
pesado. Por isso estamos sempre negociando nossa autoestima. A socióloga Eva
Illouz destaca astutamente que “o único lugar onde você espera parar com essa avaliação
é no amor. No amor você se torna o vencedor do concurso, o primeiro e o único.”
Não surpreende que infidelidade nos atire em um fosso de insegurança e confusão
existencial.
E a crise de identidade não está reservada somente ao parceiro traído.
Quando o véu de um segredo se levanta, o choque não é apenas de quem descobriu
o caso, mas também de que o teve. Observando a própria conduta através dos
olhos recém-abertos do prejudicado, o protagonista do caso encara uma
autoimagem quase irreconhecível. [...] Ele tem de considerar a discrepância
entre sua autoimagem e seus atos. [...] Sua política identitária gerou um ponto
cego. Só agora, sob a luz forte dos copiosos indícios, ele percebe como forçou
a barra nas racionalizações.
Fotografia: Nan Goldin
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