Lojinha de horrores: alguns
casos provocam mais dor do que outros?
Coisa estranha que tais palavras, “umas duas ou
três vezes”, nada mais que palavras, palavras pronunciadas no ar, à distância,
possam assim dilacerar o coração como se o tocassem de verdade, possam fazer
adoecer, como um veneno que se ingerisse.
Marcel Proust, No caminho de Swann
Alguns casos são piores que outros? Alguns tipos de infidelidade magoam
menos e se mostram mais fáceis no tocante à recuperação?
É quase irresistível tentar organizar uma hierarquia da violação, no entanto, por mais convidativo que seja
criar uma gradação de traições, não é de grande valia medir a legitimidade da reação pela magnitude
da afronta. [...] O impacto do caso não é necessariamente proporcional à sua
duração ou seriedade.
Na intrincada história da infidelidade, todas as nuances interessam. A
pesquisadora Brené Brown explica que, depois de um acontecimento chocante ou
traumático, “nossas emoções fazem a primeira tentativa de entender a dor”. Certas coisas despertam o sofrimento (“Ele fez o
quê?”) e outras se tornam marcadores de
alívio (“pelo menos não fez isso”). Algumas são amplificadores – elementos
específicos que aumentam o sofrimento – e outras são amortecedores – blindagens
protetoras contra a mágoa.
Como a infidelidade vai lhe cair e como você vai reagir tem tanto a ver
com suas próprias expectativas, sensibilidades e histórico, como com a
notoriedade da conduta do parceiro.
Gênero, cultura, classe, raça e orientação sexual: tudo isso emoldura a
experiência da infidelidade e dá forma à dor.
Nossa história familiar é o
principal amplificador – casos e
outras quebras de confiança com que somos criados ou que sofremos em relações
passadas podem nos deixar mais suscetíveis. A infidelidade sempre ocorre dentro
de uma rede de conexões, e a história começou muito antes da ofensa crítica.
Para alguns, confirma um medo arraigado:
“Não é que ele não me ame, é que eu não
me sinto amável”. E, para outros, estraçalham a imagem que tinham do
parceiro: “Escolhi você porque tinha certeza que não era desse tipo”.
Um dos amortecedores é a
forte rede de amigos e familiares, que são pacientes e oferecem um porto seguro
para a complexidade da situação. Um senso
de identidade bem desenvolvido ou um fé
espiritual ou religiosa também podem mitigar o impacto. A própria qualidade da relação, anterior à crise,
sempre tem um grande papel. E, se alguém sente ter alternativas – imóveis, poupança, perspectivas de trabalho,
perspectivas de namoro –, isso não só diminui sua vulnerabilidade como também fornece certa margem de manobra, por
dentro e por fora. Analisar os pontos dolorosos da traição ajuda a identificar
oportunidades para fortalecer esses amortecedores protetivos.
“Por que logo ele?”
Algumas pessoas conseguem exprimir
seus sentimentos no mesmo instante. A capacidade de entender as próprias
emoções lhes permite reconhecer, nomear, e assumir as especificidades do seu
sofrimento. Porém, também encontro pessoas que se fecharam sem jamais
identificar seus pontos nevrálgicos
emocionais. Elas vivem assombradas por sentimentos
sem nome, que não se tornam menos potentes por causa do anonimato.
“Como foi que não percebi?”
É da natureza humana nos agarrarmos ao nosso senso de realidade,
resistir ao seu possível abalo mesmo diante de provas irrefutáveis. Eu lhe
garanto que “não fazer ideia” não é algo de que deva se envergonhar. Esse tipo
de escape não é um ato de idiotismo,
mas de autopreservação. Na verdade,
é um sofisticado mecanismo de autoproteção
conhecido como negação do trauma – uma espécie de autoilusão que utilizamos quando há muita coisa em jogo e
temos muito a perder. A mente precisa de coerência,
portanto renega as inconsistências
que ameaçam a estrutura de nossas vidas. Isso se torna mais marcante quando
somos traídos pelas pessoas que nos são mais próximas e das quais mais
dependemos – uma prova do esforço que somos capazes de fazer para manter nossas
relações, por mais turbulentas que possam ser.
Da desconfiança à certeza
A certeza é cáustica, mas a desconfiança persistente é uma agonia.
Quando começamos a desconfiar que nosso amado está nos enganando, viramos
escavadores implacáveis, farejando roupas e pistas jogadas com desleixo pelo
desejo. Especialistas em sistemas sofisticados de vigilância, monitoramos as
menores mudanças no rosto, a indiferença na voz, o cheiro estranho na camisa, o
beijo sem graça. Somamos as mínimas incongruências. [...] Mais cedo ou mais
tarde, o desejo de saber supera o medo de saber, e começamos a sondar e
interrogar. [...] Às vezes, o tormento
corrosivo representado pela desconfiança da fidelidade do parceiro é piorada
pela prática cruel do gaslighting. [...]
Quando a desconfiança vira certeza, por um instante pode haver alívio, mas logo
em seguida vem um novo golpe. O momento de revelação deixa uma cicatriz indelével.
Segredos, fofocas e conselhos ruins
As pessoas não só descobrem os segredos dos parceiros como, em prol dos
filhos, às vezes se tornam partícipes relutantes de engodos.
Quando o segredo é revelado, é comum a agonia ser reforçada pelo castigo da piedade e da condenação social.
“Como é que ela não sabia?”, sussurram. A voz condenatória coletiva vai da crítica
suave à responsabilização total da vítima – por “deixar” que acontecesse, por
não fazer o suficiente para prevenir, por não perceber o que estava
acontecendo, por deixar que a situação se arrastasse por tanto tempo e, é
claro, por continuar casada depois do ocorrido. A fofoca sibila por todos os
lados.
Um caso pode não só destruir um casamento: ele tem o poder de
descosturar toda uma malha social. [...] Para os que são traídos, as feridas
específicas são a vergonha e o
isolamento. A revelação de um caso pode deixar o parceiro que foi pego de
surpresa em um aperto: na hora em que mais precisam dos outros para obter
consolo e confirmação, menos capazes se sentem de pedir ajuda. Sem poder
recorrer ao apoio de amigos, sentem-se duplamente sós.
“Por que agora?”
Os casos já doem bastante, às vezes o momento é a gota d’água. [...]Quando o momento tem alta
significância pessoal, a ênfase é no “como ele(a) foi capaz de fazer isso
comigo naquele momento?”. O momento
quase se sobrepõe ao o quê.
“Você não pensou em mim?”
Em certas circunstâncias é a premeditação
da vida dupla que fere – o grau de planejamento necessário para levar a cabo a
sequência calculada de dissimulações. A intencionalidade
implica que o parceiro infiel pesou seus desejos e suas consequências e
resolveu ir em frente mesmo assim. Além do mais, o investimento substancial de tempo, energia, dinheiro e criatividade
indica a motivação consciente de
levar adiante as motivações egoístas
à custa do companheiro ou da família. [...] Cada passo de premeditação em torno do amante significa um descaso ativo pela pessoa amada.
Casos cuidadosamente premeditados doem, mas a situação oposta também
pode doer igualmente. Nessas circunstâncias, trata-se da indiferença da traição
ocorrida por acaso. “Você está
dizendo isso para eu me sentir melhor? Que você é capaz de me magoar tanto
assim por uma coisa sem nenhuma importância?”.
“Será que eu estava só esquentando o lugar do amor da vida dele?”
Uma reviravolta na narrativa da infidelidade que é particularmente
sofrida é a reativação de uma paixão
antiga. “Por que ela? Por que a ex?
Ela o fez sofrer demais. Seria de se imaginar que ele não quisesse nada com
ela. Será que ele me amou de verdade? Apesar dos filhos e de tudo que
construímos, será que já fui mesmo o amor da vida dele? Ou será que era ela?
Vai ver que eu estava esquentando o lugar do amor da vida dele”. Ser substituído é sempre duro, mas quando o
ex retorna e o novo na verdade é velho, o toque especial é a sensação de que
talvez estejamos competindo com o
destino.
Dinheiro. Bebês. DSTs. Premeditação. Descuido. Vergonha. Insegurança.
Fofoca. Críticas. A pessoa, gênero, tempo, lugar, contexto social específicos.
Se esse breve compêndio das histórias de horror do amor nos mostra alguma coisa
é que, embora todos os atos de traição tenham características em comum, toda vivência da traição é única. Não fazemos bem a ninguém ao reduzir casos a sexo e mentiras,
ignorando os vários outros elementos constitutivos que criam as nuances do suplício e influenciam o
caminho que leva à cura.