A estranha ordem das coisas
as origens biológicas dos sentimentos e da cultura
Princípio
A medicina não nasceu como um esporte intelectual
destinado a exercitar o raciocínio com um quebra-cabeça diagnóstico ou um
mistério fisiológico. Ela surgiu como uma consequência de sentimentos específicos
de pacientes e dos primeiros médicos: a compaixão gerada
pela empatia. Assim também, a busca do lucro é impulsionada
por diversos anseios – pelo desejo de progredir, de ter prestígio, pela cobiça
–, e tudo isso são sentimentos.
A ideia, em essência, é que a atividade
cultural começa e permanece profundamente alicerçada em sentimentos.
Precisamos reconhecer a interação favorável e desfavorável dos
sentimentos com o raciocínio se quisermos compreender os conflitos e
contradições da condição humana.
Como os seres humanos vieram a ser, ao mesmo tempo,
sofredores, mendigos, celebradores da alegria, filantropos, artistas,
cientistas, santos e criminosos, senhores benevolentes do planeta e monstros
decididos a destruí-lo? A resposta a essa questão certamente demanda
contribuições de historiadores e sociólogos, bem como de artistas, cuja
sensibilidade costuma intuir os padrões ocultos do drama humano; além
disso, requer contribuições de vários ramos da biologia.
A verdadeira ordem do surgimento das faculdades e
estruturas biológicas que descobri é demasiadamente estranha e viola as
expectativas tradicionais.
Quando um organismo vivo age de modo inteligente e
vencedor em um cenário social, supomos que seu comportamento decorre de antevisão,
deliberação e complexidade, contando com a ajuda de um sistema nervoso. Agora,
porém, está claro que comportamentos assim podem surgir com base no singelo
equipamento de uma única célula: uma bactéria, nos primórdios da biosfera.
“Estranha” é uma palavra fraca demais para descrever essa realidade.
Podemos conceber uma explicação que comece a
admitir as descobertas contrárias à intuição. Ela se baseia nos
mecanismos da própria vida e nas condições de sua regulação: uma coleção de
fenômenos geralmente designada pela palavra “homeostase”. Os
sentimentos são expressões mentais da homeostase enquanto esta, atuando sob o
manto dos sentimentos, é a linha funcional que liga as primeiras formas de vida
à extraordinária parceria de corpos e sistemas nervosos. Essa
associação é responsável pelo surgimento de mentes dotadas de consciência e
sentimentos, e essas mentes, por sua vez, são responsáveis por aquilo que é
mais distintivo no ser humano: cultura e civilização. Os
sentimentos são o cerne do livro, mas extraem seu poder da homeostase.
Associar as culturas a sentimentos e homeostase
reforça suas ligações com a natureza e aprofunda a humanização do processo
cultural. Sentimentos e mentes culturais criativas são frutos de um longo
processo no qual a seleção genética guiada pela homeostase teve papel de
destaque. A associação opõe-se à crescente dissociação de ideias, práticas e
objetos culturais dos processos da vida.
Não estou reduzindo fenômenos
culturais às suas raízes biológicas, nem tentando explicar através da ciência
todos os aspectos do processo cultural. [...] Muitas discussões sobre a
formação de culturas engalfinham-se em torno de duas interpretações
conflitantes: uma na qual o comportamento humano resulta de fenômenos culturais
autônomos e outra na qual o comportamento humano é consequência da seleção
natural dirigida por genes. Contudo, não é necessário proferir uma
interpretação à outra. Em grande medida, o comportamento humano resulta de
ambas as influências, em proporções variadas. Curiosamente, descobrir as raízes
de culturas humanas na biologia não humana não diminui nem um pouco a condição
excepcional dos seres humanos. Tal condição deriva da importância
única do sofrimento e da prosperidade no contexto das nossas
lembranças do passado e das memórias que construímos a respeito do futuro.
Os seres humanos, em sua necessidade de lidar com o
coração em conflito, em seu desejo de conciliar as contradições
advindas do sofrimento, do medo e da raiva com a busca de bem-estar,
entregam-se a conjecturas e deslumbramentos, descobrindo, assim, como fazer
música, dança, pintura, literatura. Continuaram seus esforços criando os
épicos; muitos deles, belos, alguns batidos – que atendem por nomes como crença
religiosa, investigação filosófica e governança política. Do berço ao túmulo,
esses foram alguns dos modos pelos quais a mente cultural enfrentou o drama
humano.
Fotografia: James Nachtwey
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