Por que ler Tchekhov?
Turgenev,
Tchekhov e Hemingway têm um componente comum, um aparente distanciamento que,
examinado atentamente, demostra ser algo peculiar. Afinidade com a paisagem e
com a figura humana é central nos três autores.
Até
mesmo os primeiros contos escritos por Tchekhov exibem delicadeza formal e a sombria reflexão que o tornam o artista
imprescindível da “vida não vivida”.
Tchekhov
dizia ser preciso escrever de modo que o leitor não precisasse das explicações
do autor. As atitudes, os diálogos e as
reflexões dos personagens haviam de bastar.
A
esperança e a alegria, por mais irracionais que sejam, são mais
fortes do que o desespero, embora, ao final, mais perniciosas. Leio “O beijo” e
repito comigo mesmo conhecerás a verdade
e a verdade te levará ao desespero. O problema é que esse gênio sombrio
insiste em ser alegre.
Em Reminiscências, de Gorki, que assinala:
“Parece-me que na presença de Tchekhov todos sentiam um desejo inconsciente de
serem menos afetados, mais verdadeiros, mais eles mesmos”. [...] A meu ver, esse desejo é um fenômeno de
ordem estética, não moral, pois Tchekhov tem a sabedoria dos grandes
escritores, e ensina, implicitamente, que a literatura é uma forma de fazer o
bem. Shakespeare e Beckett oferecem-me o mesmo ensinamento.
“O
estudante” é, ao mesmo tempo, de extrema
simplicidade e belíssima concepção. [...] De súbito, o estudante sente
grande alegria por acreditar que verdade e beleza sobrevivem nessa corrente que
une passado e presente. [...] O leitor é levado a refletir sobre a sutil transição observada na alegria do
estudante, que vai da constatação do elo existe entre verdade e beleza, no
passado e no presente, à expectativa de que um jovem de vinte e dois anos,
quanto à possibilidade de realização pessoal. [...] Tchekhov, o
dramaturgo-psicólogo mais perspicaz depois de Shakespeare, escreve aqui um
sombrio conto lírico, versado sobre sofrimento e transformação. Tudo em “O
estudante”, exceto o que se passa na mente do protagonista, é absolutamente pequeno. Talvez a transformação
irracional de uma alegria impessoal e de esperança pessoal, em meio ao frio e à
necessidade, e, ainda, as lágrimas da traição tenham comovido Tchekhov.
“A dama
e o cachorrinho”. O conto reverbera durante muito tempo. Gurov e Ana transformam-se ao longo do relato, mas
a mudança não é, necessariamente, para melhor.
Nada que um possa fazer pelo outro trará qualquer redenção; o que, então, resgata a história dos dois da rotina
entediante? Até que ponto a história dos dois difere de outras tantas
malfadadas histórias de adultério?
Não
seria devido ao interesse que os dois personagens suscitam, como poderá
constatar qualquer leitor; Gurov e Ana não
têm nada de extraordinário. Ele é como qualquer homem mulherengo, ela, como
qualquer mulher chorosa. A arte de
Tchekhov jamais é tão enigmática
quanto nesse conto, em que seu talento é, simultaneamente, visível e
indefinível. Não resta dúvida, Ana está apaixonada, embora Gurov não seja
digno de amor. Jamais sabemos como
avaliar a melancólica Ana. O que se passa entre os amantes é apresentado por
Tchekhov com tamanho distanciamento que,
embora não nos falte informação, falta-nos
capacidade de discernir e julgar. O conto é de um universalismo estranho e lacônico.
Em Trigorin,
na peça, A gaivota, Tchekhov parodia a si mesmo apaixonado; a meu
ver, Gurov, é autoparódia ainda mais ousada. Não simpatizamos com Gurov, e bem
gostaríamos de ver Ana parar de chorar, mas não temos como descartar a história
dos dois, pois é a nossa também.
Referindo-se
a Tchekhov, Gorki afirma: “Ele era capaz
de revelar o humor trágico inerente à banalidade”. A asserção pode parecer
ingênua, mas o grande poder de Tchekhov
é causar, no leitor, a impressão de estar, finalmente, diante da verdade sobre
a constante mescla de sofrimento banal e humor trágico que
caracteriza a existência humana. Shakespeare foi, para Tchekhov (e para
todos nós), a autoridade máxima em humor trágico, mas o banal inexiste em
Shakespeare, mesmo quando compõe paródia ou farsa.
Fotografia: Henri Cartier-Bresson
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