segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Czeslaw Miloz




Fé, é quando vemos
A gota de orvalho ou a folhinha pelo rio fluir
E sabemos que existem pois têm de existir.
E ainda que de olhos fechados nos deixemos sonhar
Só haverá no mundo o que havia
E as águas do rio a folhinha vão levar.

Fé, é também quando ferimos
O pé na pedra e sabemos que as pedras
Lá estão para que os pés nos firam.

Vejam quão grande é a sombra das árvores,
Assim como a nossa e a das flores,
O que não tem sombra, não tem força para existir.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Péter Kántor




Do que se necessita para a felicidade?

Posto assim,
não muito:
dois seres,
uma garrafa de vinho,
queijo do país,
sal, pão,
um quarto,
uma janela e uma porta,
lá fora, que chova,
chuva de longos fios,
e claro, cigarros.
Mas, ainda assim, de muitas noites
apenas uma o duas vezes resulta,
como os grandes poemas de grandes poetas.
O mais é preparatório,
ou epílogo,
dor de cabeça,
ou espasmo de riso,
não se pode, mas deve-se,
é demasiado, mas insuficiente.

Edwin Morgan




Quando você partir

Quando você partir,
se você partir,
e eu tiver vontade de morrer,
não há nada que me salvaria
mais do que o tempo
que você adormeceu nos meus braços
com uma confianca tão suave
deixei o quarto escurecendo
beber a noite, até
que o repouso, ou a chuva
levemente despertaram você.
Perguntei se tinha ouvido a chuva no seu sonho
E meio sonhando você disse apenas, eu te amo.

Mia Couto



Solidão 

Aproximo-me da noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo