terça-feira, 6 de novembro de 2012

Yehuda Amichai



Que pena, éramos uma invenção tão boa

Eles amputaram
As tuas coxas das minhas ancas.
Tanto quanto sei
São todos cirurgiões. Todos eles.

Eles desmantelaram-nos
Um ao outro
Tanto quanto sei
São todos engenheiros. Todos eles.

Que pena. Éramos uma invenção
Tão boa e tão amável.
Um aeroplano feito de um homem e de uma mulher.
Com asas e tudo.
Pairávamos ligeiramente por cima da terra.

Até voávamos um pouco.

sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Rainer Maria Rilke




Na minha infância, quando todos sempre me tratavam mal, e eu me sentia infinitamente abandonado, tão completamente perdido no desconhecido, pode ter havido um momento em que desejei muito ir para outro lugar. Mas então, enquanto as pessoas continuavam estranhas a mim, eu me dirigi às coisas e delas soprou uma alegria, uma alegria de ser, que sempre permaneceu uniformemente serena e forte e jamais comportou uma hesitação ou uma dúvida. Na escola militar, após longas e inquietas lutas, abandonei minha intensa piedade de criança católica, livrei-me dela, para ser ainda mais sozinho, ainda mais inconsolavelmente sozinho. Das coisas, porém, e sua maneira de tolerar e durar pacientemente, veio mais tarde para mim um novo amor, maior e mais pio, um tipo de crença que não conhece medo nem limites. A vida também é uma parte dessa crença. que não conhece medo nem limites. A vida também é parte dessa crença. Oh, como creio nela, na vida. Não a vida constituída pelo tempo, mas essa outra vida, a vida das pequenas cosias, a vida dos animais e das grandes planícies. Essa vida que dura através dos milênios, aparentemente sem participação e, contudo, no equilíbrio de suas forças, cheia de movimento e crescimento e calor. Por isso as cidades pesam tanto sobre mim. Por isso amo percorrer longos caminhos descalço, para não perder nenhum grão de areia e dar ao meu corpo inteiro em múltiplas formas como sensação, acontecimento e afinidade. Por isso vivo, quando possível, de verduras, para estar perto da consciência simples da vida, não intensificada por nada de estranho; por isso não bebo vinho, pois quero que apenas meus sucos falem e rumorejem e tenham bem-aventurança, como nas crianças e nos animais, da profundeza de si mesmos! E por isso quero despir de mim toda arrogância, não me alçar acima do mais ínfimo animal e não me considerar mais magnífico do que uma pedra. Mas ser o que eu sou, viver o que me foi destinado viver, querer soar o que ninguém mais pode soar, brotar as flores ditadas ao meu coração: é isso o que quero - e isso decerto  não pode ser arrogância.

sábado, 1 de setembro de 2012

Walt Whitman



O que tem que ser será bom - pois o que é, é bom,
Interessar-se é bom, e não se interessar também é bom.

O céu continua lindo... o prazer dos homens com as mulheres nunca será
saciado .. nem o prazer das mulheres com os homens.. nem o prazer que
provém dos poemas;
As alegrias domésticas, o trabalho ou negócio diário, a construção de casas - eles
não são fantasmas .. possuem peso e forma e local;
As fazendas e os lucros e as safras .. os mercados e salários e o governo .. eles também
não são fantasmas;
A diferença entre pecado e bondade não é aparente;
A terra não é um eco ... o homem e sua vida e todas as coisas de sua vida são bem
consideradas.

Você não está ao léu.. você se reúne com certeza e segurança ao seu redor,
De você mesmo! Você mesmo! Sempre você mesmo!

Não foi pra difundir você que você nasceu de pai e mãe - foi pra identificar você,
Não foi pra que você fosse indeciso, mas que fosse decidido;
Alguma coisa há tempos preparada e informe chegou e se formou em você,
Portanto você está salvo, haja o que houver.


sexta-feira, 25 de maio de 2012

Henry Miller



O mundo do sexo

Se estivéssemos realmente acordados, ficaríamos chocados com o horror da vida cotidiana. Ninguém em posse de suas faculdades mentais seria capaz de fazer as coisas que exigem de nós a todo momento do dia. Somos todos vítimas, quer no topo, como na base, ou no meio. Não há escape, nem imunidade. [...]

De vez em quando, no longo curso da história humana, um indivíduo conseguiu romper as amarras e seguir sua maneira de vida singular. Mas que espetáculo raro! [...] Ainda mais trágico, mais irônico, é o exemplo dos imitadores, que nunca tentaram levar suas próprias vidas, mas, igual a escravos, copiaram os donos. Por mais claros que os poucos grandes exemplos tenham sido, até os espíritos mais audazes deixaram de entender. Seguir, não liderar, esta é a maldição do homem. [...]

Não ir até o fundo, este é o erro fatal do homem. Como diz Jean Guéhenno: A verdadeira traição é seguir o mundo do jeito como ele anda e empregar o espírito para justificá-lo. 

Somente quando fixamos nosso olhar nestas figuras vulcânicas podemos começar a estimar a pressão das forças aparentadas à morte que nos detêm em suas garras. Só então nos damos conta do que é necessário de coragem e imaginação, de ousadia e humildade, para cortar a trama estranguladora de desespero e derrota que nos envolve.  


Schopenhauer



Sobre o ofício de escritor

Obscuridade e indistinção na expressão é, em toda parte e sempre, um sinal muito grave. Pois, de cem casos, em noventa e nove elas derivam da falta de clareza do pensamento, que por sua vez procede quase sempre de sua desproporção original, da sua inconsistência e, por tanto, de sua inexatidão. Quando um pensamento correto eleva-se à mente sua meta é alcançar sua expressão adequada. O que um homem é capaz de pensar também pode ser expresso sempre em palavras claras, compreensíveis e inequívocas. [...]

Nua, a verdade é belíssima, e a impressão que causa é tanto mais profunda quanto mais simples é sua expressão; em parte porque, nesse caso, ela ocupa sem dificuldades toda a alma do ouvinte, que não é distraído por nenhum pensamento secundário; em parte, porque ele sente que não foi corrompido ou iludido por nenhum artifício retórico, e que o efeito inteiro advém do assunto em si. [...]

A ausência de espírito assume todas as formas para se esconder: encobre-se com o estilo empolado, com o bombástico, com o tom de superioridade e de fidalguia e com centenas de outras formas; somente pela ingenuidade  não se deixa atrair, pois, nesse caso, ficaria imediatamente despida e não poderia oferecer ao mercado nada além de uma mera simploriedade. Mesmo à boa cabeça não é permitido ser ingênuo, já que pareceria seca e magra. Eis a razão de a ingenuidade continuar a ser a veste de honra do gênio, assim como a nudez é a da beleza.


Rainer Maria Rilke



Cartas

O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A dificuldade dele reside no complicado. A vida mesma, porém, é difícil pela simplicidade. Tem apenas algumas coisas de um tamanho que nos não é adequado. O santo, rejeitando o destino, escolhe estas coisas, em face de Deus. Mas que a mulher, conforme à sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, é o que evoca a fatalidade de todas as relações de amor: resoluta e sem destino como uma eterna, ergue-se ela ao lado dele, dele que se transforma. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. O dom de si mesma quer ser desmedido: é esta a sua ventura. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: que se exija dela que limite este dom de si mesma.


quinta-feira, 24 de maio de 2012

Jón Bong-gón




Lirismo

Chovia
Até o vento preso na árvore
se dilacerava encharcado

Agarrado ao meu braço - você
Chovia também nessa ruela
onde caía a noite

E na escuridão que se intumescia de chuva
duas mãos envolveram-me o rosto
a perguntar

Na voz mais suave
Na voz mais quente

terça-feira, 22 de maio de 2012

Henry Miller



O mundo do sexo

Hoje parecemos movidos quase exclusivamente pelo medo. Tememos até aquilo que é bom, que é saudável, que é alegre. E o que é um herói? Em princípio, alguém que conquistou seus medos. Podemos ser um herói em qualquer domínio; nunca deixamos de o reconhecer quando ele aparece. Sua virtude singular é que ele se unificou com a vida, se unificou consigo mesmo. Tendo deixado de duvidar e questionar, ele acelera o fluxo e o ritmo da vida. O covarde, par contre, procura obstruí-los. Não obstrui nada, é claro, a não ser a si mesmo. A vida continua, quer atuemos como covardes ou heróis. A vida não tem outra disciplina a impor, se apenas percebêssemos isso, em vez de aceitar a vida sem questionar. Tudo aquilo de que fugimos, tudo aquilo que negamos, denegrimos ou desprezamos, serve para nos derrotar no final. O que prece desagradável, doloroso, maligno, pode se tornar uma fonte de beleza, alegria e força, se encarado com a mente aberta. Cada momento é uma mina de ouro para aquele que tem a visão de reconhecer isso. A vida é agora, cada momento, não importa que o mundo esteja cheio de morte. A morte só triunfa a serviço da vida.


terça-feira, 15 de maio de 2012

Vinícius de Moraes



Separação

Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.

Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.

Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.

Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias – um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.

De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde…

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Milan Kundera



À procura do presente perdido

Tentem reconstruir um diálogo de sua própria vida. O diálogo de uma briga ou o diálogo de um amor. As situações mais caras, as mais importantes, ficam perdidas para sempre.  O que sobra delas é seu sentido abstrato (defendi esse ponto de vista, ele um outro, fui agressivo, ele defensivo), um ou dois detalhes, mas o concreto acústico-visual da situação em toda a sua continuidade fica perdido. 

E não apenas fica perdido, mas nem ao menos ficamos espantados com essa perda. Ficamos resignados com a perda do concreto no tempo presente. Transformamos de imediato o tempo presente em sua abstração. Basta contar um episódio que vivemos a poucas horas: o diálogo se encolhe num breve resumo, o ambiente em alguns dados gerais. Isto é válido até mesmo para as lembranças mais fortes que, como um traumatismo, se impõe ao espírito: ficamos de tal modo fascinados por sua força que não nos damos conta a que ponto seu conteúdo é esquemático e pobre.

Se estudamos, discutimos, analisamos uma realidade, a analisamos tal qual ela aparece em  nosso espírito, em nossa memória. Só conhecemos a realidade do tempo passado. Não a conhecemos tal qual ela é no momento presente, no momento em que acontece, em que é. Ora, o momento presente não se parece com sua lembrança. A lembrança não é a negação do esquecimento, A lembrança é uma forma de esquecimento.

Podemos manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos. Um dia, relendo as notas, compreendemos que elas não são capazes de evocar uma só imagem concreta. E, pior ainda: que a imaginação não é capaz de socorrer nossa memória e de reconstruir o esquecido. Pois o presente, o concreto do presente, como fenômeno a ser examinado, como estrutura, é para nós um planeta desconhecido; não sabemos portanto nem como retê-lo em nossa memória nem com reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber que vivemos.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Isaiah Berlin



O sentido de realidade

Quando dizemos que conhecemos bem o caráter de alguém, que uma determinada ação não poderia ter sido realizada pelo homem em questão; ou, alternativamente, que vemos tal ou qual coisa como totalmente característica dele, precisamente o tipo de coisa que ele e somente ele pode fazer - uma percepção que ao mesmo tempo depende de nosso conhecimento quanto a seu estilo de vida e à sua índole ou coração e aumenta a compreensão que temos deles -, que tipo de conhecimento estamos afirmando? 

Se fôssemos pressionados a enunciar as leis psicológicas gerais a partir das quais teríamos feito tais deduções, as coisas sobre as quais essas generalizações estariam construídas, daríamos com os burros n'água imediatamente. Se poderíamos ou não, teoricamente, chegar à nossa compreensão íntima da personalidade única de nosso amigo (ou inimigo) através de tais meios científicos, eu não sei - mas parece evidente que até hoje ninguém jamais chegou a este tipo de conhecimento através de nenhum desses métodos. [...]

O que torna um homem tolo ou sagaz, sensível ou cego, em oposição a instruído ou culto ou bem informado, é a percepção dessas nuances únicas de cada situação como tal, em suas diferenças específicas - daquilo nela que a diferencia de todas as outras situações, isto é, daqueles aspectos que a tornam insuscetível de tratamento científico, pois há nela aquele elemento que nenhuma generalização, porque ela já é uma generalização, pode cobrir. [...]

O que estou tentando descrever, em resumo, é um auto-ajustamento sensível àquilo que absolutamente não pode ser medido, pesado ou plenamente descrito - aquela capacidade chamada de insight imaginativo, no mais alto grau de gênio - que historiadores, romancistas, dramaturgos e pessoas comuns dotadas  de compreensão da vida (ao seu nível normal chamado de senso comum) exibem igualmente. [...]

Tentar analisar e descrever o que acontece quando assim compreendemos [alguém] é impossível...[...] Há um elemento de improvisação, um tocar de ouvido, de ser capaz de captar a situação, de saber quando saltar e quando ficar quieto, para o qual nenhuma fórmula, nenhuma panacéia, nenhuma receita genérica, nenhuma habilidade de identificar situações específicas como instâncias de leis gerais pode ser substituído. [...] Não há substituto para um sentido de realidade. [...]

O que o homem faz e suporta, como e por que?

A noção de que resposta a estas questões podem ser fornecidas pela formulação de leis gerais, a partir das quais o passado e o futuro de indivíduos e sociedades podem ser previstos com sucesso, é que levou a concepções equivocadas tanto na teoria quanto na prática: a histórias e teorias pseudocientíficas e fantasiosas do comportamento humano, abstratas e formais a expensas dos fatos, e a revoluções e guerras e campanhas ideológicas conduzidas na base de certezas dogmáticas sobre seu produto - enormes equívocos, que custaram a vida, a liberdade e a felicidade de muitíssimos seres humanos inocentes.

Milan Kundera



Os testamentos traídos

Suspender o julgamento moral não é a imoralidade do romance, é a sua moral. A moral que se opõe à irremovível prática humana de julgar imediatamente, sem parar, a todos, de julgar antecipadamente e sem compreender. Esta fervorosa disponibilidade para julgar é, do ponto de vista da sabedoria do romance, a asneira mais detestável, o mal mais pernicioso. [...]
A criação do campo imaginário em que o julgamento moral fica suspenso foi uma proeza de imenso valor: somente aí podem desabrochar os personagens romanescos, ou seja, os indivíduos concebidos não em função de uma verdade preexistente, como exemplos do bem ou do mal, ou como representações de leis objetivas que se confrontam, mas como seres autônomos fundamentados em sua própria moral, em suas próprias leis.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Marcel Proust



No caminho de Swann

Muitos anos fazia que, de Combray, tudo quanto não fosse o teatro e o drama do meu deitar não mais existia para mim, quando, por um dia de inverno, ao voltar para casa, vendo minha mãe que eu tinha frio, ofereceu-me chá, coisa que era contra os meus hábitos. A princípio recusei, mas, não sei por quê, terminei aceitando. Ela mandou buscar um desses bolinhos pequenos e cheios chamados madalenas e que parecem moldados na valva estriada de uma concha de S. Tiago. Em breve,  maquinalmente, acabrunhado com aquele triste dia e a perspectiva de mais um dia tão sombrio como o primeiro, levei aos lábios uma colherada de chá onde deixara amolecer um pedaço de madalena. Mas no mesmo instante em que aquele gole, de envolta com as migalhas do bolo, tocou meu paladar, estremeci, atento ao que se passava de extraordinário em mim. Invadira-me um prazer delicioso, isolado, sem noção da sua causa. Esse prazer logo me tornara indiferentes às vicissitudes da vida, inofensivos os seus desastres, ilusória a sua brevidade, tal como o faz o amor, enchendo-me de uma preciosa essência: ou antes, essa essência não estava em mim; era eu mesmo.  Cessava de me sentir medíocre, contingente, mortal.  De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e não devia ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo um segundo gole em que não encontro nada de mais que no primeiro, um terceiro que me traz um pouco menos que o segundo. é tempo de parar, parece que está diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que eu procuro não está nela, mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não sei interpretar e que quero tornar a solicitar-lhe daqui a um instante e encontrar intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e volto-me para meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Grave incerteza todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo, quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? não apenas explorar; criar. Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar realidade e fazer entrar  na sua luz.

Walt Whitman



Quando ouvi pelo fim do dia

Quando ouvi, pelo fim do dia, como o meu nome havia sido
recebido com aplausos no Capitólio, ainda assim não foi
feliz para mim, a noite que se seguiu;
E, quando festejei, ou, quando os meus planos foram atingidos,
assim mesmo não me senti feliz;
Mas, no dia em que cedo me levantei, de perfeita saúde,
renovado, cantando, inalando o maduro fôlego outonal,
Quando vi a lua cheia, a oeste, ficando pálida e a desaparecer
na luz da manhã,
Quando vaguei sozinho sobre a praia e, despindo-me, me banhei,
rindo com as águas frias, e vi o sol nascer,
E quando pensei em como o meu querido amigo, o meu amante, estava a
caminho, Oh, então senti-me feliz;
Então, cada fôlego me foi mais doce – e todo o dia, meu alimento
me nutriu mais – e o belo dia passou bem,
E o seguinte chegou com igual alegria – e com o próximo, pelo fim da tarde,
chegou o meu amigo;
Naquela noite, quanto tudo estava calmo, ouvi as águas rolar
continuamente, lentas sobre as margens,
Ouvi o assobio sussurrado do líquido e das areias, como que dirigindo-se a
mim, cochichando, felicitando-me,
Porque aquele que amo dormia comigo sob a mesma coberta
na noite fria,
No sossego, nos outonais raios de luar, seu rosto inclinado
sobre mim,
Seu braço em redor do meu peito, suavemente – e naquela noite
fui feliz.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Viktor Chkloviski




Uma teoria da prosa

Se estudarmos com relativa atenção as leis da percepção, não tardaremos a perceber que os atos habituais tendem a se tornar automáticos. Todos os nossos hábitos provêm da esfera do inconsciente e do automatismo. Para se dar conta disso, basta lembrar a sensação experimentada ao segurar uma caneta pela primeira vez, ou quando se começa a falar uma língua estrangeira, e compará-la à que acompanha o mesmo ato na sua milésima repetição. As leis da linguagem cotidiana, com suas frases incompletas e suas palavras pronunciadas apenas pela metade, se explicam precisamente a partir do automatismo de certos processos. [...] a vida passa, se anula. A automatização engole tudo: as coisas, roupas, móveis, a mulher e o medo da guerra.

Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar sensíveis as coisas, para fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma sensação que deve ser a visão e não apenas o reconhecimento. Para obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o estranhamento das coisas e a complicação da forma, com a qual tende a tornar mais difícil a percepção e prolongar sua duração. Na arte, o processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa; para ela, o que foi não tem a menor importância.