quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Arnold Hauser




 Culturas urbanas do Oriente antigo: O naturalismo da era e Akhenaton


Amenhotep IV, a cujo o nome está vinculada a grande revolução cultural, é não só o fundador de uma religião, o descobridor da ideia de monoteísmo, como geralmente é conhecido, não só o “primeiro profeta” e o “primeiro individualista” na história do mundo, como tem sido chamado, mas também o primeiro inovador consciente no campo da arte: o primeiro homem a converter o naturalismo num programa e, opondo-o ao estilo arcaico, numa realização recém-conquistada. [...] O que a arte e os artistas lhe devem é obviamente uma nova forma de amor à verdade, uma nova sensibilidade e sensitividade que leva a uma espécie de impressionismo na arte egípcia. A superação do estilo acadêmico e rígido por seus artistas está em harmonia com sua própria luta contra as tradições pedantescas, vazias e desprovidas de significado da religião. Sob sua influência, o formalismo do Médio Império dá lugar, tanto na religião quanto na arte, a um enfoque dinâmico, naturalista, que encoraja o homem a deleitar-se na realização de novas descobertas. São escolhidos novos temas, procuram-se novos símbolos, a descrição de situações novas e incomuns é favorecida e tenta-se não só retratar a vida espiritual individual e íntima mas ainda mais do que isso, insuflar tensão intelectual, uma sensibilidade exarcebada e uma vivacidade nervosa quase anormal nos retratos. Os rudimentos. De perspectiva no desenho, tentativas de composição de grupo mais coerente, um interesse mais vivo na paisagem, predileção por representações de cenas e acontecimentos cotidianos e, como resultado da aversão pelo antigo estilo monumental, um acentuado prazer nas formas delicadas e graciosas das artes menores - tudo isso começa agora a mostrar-se. 

A única característica surpreendente é como essa nova arte permanece inteiramente palaciana, cerimonial e formal, apesar de todas as inovações. [...] Vemos Amenhotep IV em seu círculo familiar, em cenas e situações da vida cotidiana, numa intimidade humana que excede todas as concepções prévias, e contudo ele ainda se movimenta em planos retangulares, o peito todo voltado para o observador, e exibe uma estatura que é duas vezes superior à dos mortais comuns; a pintura ainda é produto de uma arte senhorial, destinada a servir como memorial para o rei. É verdade que o governante deixou de ser retratado como um deus, completamente livre de todas as limitações terrenas, mas permanece sujeito à etiqueta da corte. 

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Os meios de expressão empregados pelo naturalismo no período do Novo Império são tão ricos e sutis, que dever ter tido um longo passado, um extenso período de preparação e aperfeiçoamento. Onde se originaram eles? Em que forma se conservaram vivos, até emergirem ao reinado de Akhenaton? O que os salvou da destruição durante o período rigorosamente formal do Médio Império? A resposta é simples: o naturalismo sempre esteve latente como uma corrente subterrânea na arte egípcia e deixou inconfundíveis traços de sua influência, paralelamente ao estilo oficial, pelo menos nos ramos não-oficiais da arte

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Existe uma justificativa muito mais sólida para se falar da existência de uma arte provinciana a par da arte palaciana, do que de uma parte popular paralela à da corte. As realizações artísticas importantes originam-se repetidamente, e de um modo cada vez mais exclusivo, à medida que o progresso avança, na corte real ou nos recintos sob alçada direta da corte - primeiro em Mênfis, depois em Tebas e finalmente em El Amarana. O que acontece nas províncias, longe da capital e dos grandes templos, é comparativamente pouco importante e caminha lenta e penosamente no encalço do desenvolvimento geral. Representa uma cultura que foi filtrada da classe alta, e em nenhuma acepção é possível considerá-la uma cultura que tenha brotado das profundezas da vida do povo. Essa arte provinciana, impossível de ser avaliada como a continuação da velha arte camponesa, também se destina a aristocracia rural e latifundiária, e deve sua própria existência à separação da nobreza feudal da corte, um processo que vinha ocorrendo desde a sexta dinastia. A nova nobreza provinciana, com sua cultura regional e retrógrada e sua arte provinciana derivativa é formada a partir desses elementos que haviam abandonado a capital.       


Trecho de História social da Arte e da literatura


terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Arnold Hauser

 

“O escriba”


Culturas urbanas do Oriente antigo: O estereótipo artístico no médio império 


“O conservantismo e o convencionalismo são atípicos das características raciais do povo egípcio, as quais são antes um fenômeno historicamente condicionado que se modifica à medida que evolui a situação como um todo. Nos relevos da última época pré-dinástica e da primeira época dinástica, prevalece uma liberdade de forma e composição que se perde mais tarde e somente voltará a ser readquirida na esteira de uma vasta revolução cultural.  [...] Talvez nunca mais tenha existido tanta liberdade e espontaneidade na arte egípcia quanto nesse estágio inicial de desenvolvimento. As condições especiais de vida na nova civilização urbana, as relações sociais diferenciadas, a especialização dos ofícios manuais e a emancipação do comércio contribuíram mais diretamente para a propagação do individualismo do que ocorreria mais tarde, quando essa influência foi obstruída e, com frequência, frustrada pelas forças que lutavam pela manutenção de sua própria autoridade. Só com o início do Médio império, quando a aristocracia feudal guinou-se ao primeiro plano, com sua consciência de classe fortemente acentuada, é que se desenvolveram as rígidas convenções da arte religiosa e palaciana, as quais suprimiram o surgimento posterior de quaisquer formas espontâneas de expressão. O estilo estereotipado das representações ligadas ao culto era bem conhecido desde os tempos neolíticos, mas as rígidas formas cerimoniais da arte palaciana são absolutamente novas e aí ganharam proeminência pela primeira vez na história da cultura humana. Refletem  o domínio de uma ordem social superior, supra-individual, de um mundo que deve sua grandeza e esplendo aos favores do rei. São formas antiindividualistas, estáticas, convencionais, porque expressam uma concepção de vida para a qual a descendência, a classe ou o vínculo a um clã ou grupo representa um grau de realidade mais elevado do que o caráter pessoal de um indivíduo; e por isso as regras abstratas de conduta e o código moral estão em evidência muito mais direta do que tudo aquilo que os indivíduos possam sentir, pensar ou querer. Todas as boas coisas e encontros da vida estão ligados, para os membros privilegiados dessa sociedade, à sua separação das outras classes, e todas as máximas a que eles obedecem assumem mais ou menos o caráter de regras de decoro e etiqueta.


Trecho de História social da Arte e da literatura

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Arnold Hauser



 Culturas urbanas do oriente antigo - O status do artista e a formalização da produção 


O primeiro acúmulo de terras caiu nas mãos de guerreiros e salteadores, conquistadores e opressores, chefes militares e príncipes; a primeira propriedade racionalmente administrada pode muito bem ter sido construída pelos domínios do templo, isto é, a propriedade dos deuses fundada pelos príncipes e gerida pelos sacerdotes. Por conseguinte, é sumamente provável que os sacerdotes tenha sido os primeiros empregadores regulares de artistas, os primeiros a dar-lhes encomendas; os reis limitaram-se a seguir-lhes o exemplo. [...] As criações consistiam, na maior parte, em oferendas vomitivas aos deuses e em monumentos comemorativos das façanhas régias, nos requisitos ou do culto dos deuses ou do soberano, em instrumentos de propaganda destinados a servir à fama dos imortais ou à fama póstuma de seus representantes na terra. O sacerdócio e a casa real constituíam parte integrante do mesmo sistema hierático, e as tarefas de que incumbiam os artistas, de garantir-lhes a salvação espiritual e a fama perpétua, estavam unidas nos alicerces de toda a religião primitiva, consubstanciada no culto dos mortos. [...] Os sacerdotes transigiam com que os reis fossem considerados deuses, de modo a atraí-los para sua própria esfera de autoridade, e os reis permitiam a edificação de templos para os deuses e sacerdotes como forma de aumentar sua própria glória.  [...] Em tais circunstâncias, estava fora de questão a existência de uma arte autônoma. [...] As grandes obras de artes, de cultura monumental e pintura mural, não foram criadas com um fim em si mesmas e por sua beleza intrínseca. 

A demanda por representações pictóricas, sobretudo de obras de arte sepulcral, foi tão grande no Egito, desde o começo, que não se pode deixar de supor que a profissão do artista tenha se tornado distinta e auto-suficiente. [...] Porém, de modo geral, o artista permanceram como artífice anônimo, parecido quando muito nessa condição e não como personalidade em si. [...] No Oriente antigo, a dependência do status social da concepção primitiva de prestígio, de acordo com a qual o trabalho manual era considerado desonroso, terá sido ainda maior que entre os gregos e romanos. Em todo caso, o apreço pelo artista cresceu à medida que se desenrolava o progresso geral. 

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As oficinas do tempo e do palácio real eram as maiores e mais importantes, mas não as únicas; tais estabelecimentos eram igualmente encontrados nos grande s domínios senhoriais e nos bazares das maiores cidades. [...] O sistema de bazar, com sua sepraração entre a rotina de oficina e o trabalho doméstico, significa uma inovação revolucionária: contém o germe da indústria independente, produzindo bens sistematicamente - já não mais restritos a encomendas ocasionais - e mantendo-se, por um lado, como atividade profissional exclusiva, e por outro, como atividade fabricando artigos para o mercado livre. Esse sistema não só converte o produtor primário num trabalhador manual, mas retira-o dos limites fechados do trabalho doméstico. [...] O princípio da economia doméstica, na qual a produção está limitada às necessidades imediatas internas, é deste modo quebrado. 

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É usual considerar as oficinas, sobretudo as ligadas aos templos, os mais importantes centros transmissores de tradição. [...] Diga-se de passagem que tanto na oficina do templo quanto na do palácio real toda a prática de arte possuía o mesmo caráter acadêmico e formalista. O fato de existirem desde o começo regras universalmente vinculatórias, modelos universalmente válidos e métodos uniformes de trabalho indica a existência de um sistema dirigido a partir de um reduzido número de centros. A tradição acadêmica, algo rígida e pedantesca, levou, por um lado, a um excesso de produtos medíocres, mas, por outro, assegurou aquele nível médio comparativamente elevado que é tão típico da arte egípcia. 

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A organização do trabalho artístico, a captação e o emprego variado de ajudantes, a especialização e a combinação de realizações individuais atingiram um desenvolvimento tão elevado no Egito, que recordam, de certo modo, os métodos empregados nas oficinas das catedrais medievais e, sob alguns aspectos, deixam na sombra toda a atividade artística anterior organizada em moldes individualistas. Desde o começo, toda a evolução encaminhou-se no sentido de uma padronização da produção, e essa tendência esteve sempre de acordo com a rotina da oficina. Sobretudo, a racionalização gradual dos processos artesanais exerceu uma influência niveladora sobre os métodos artísticos. Com a crescente demanda, consolidou-se o hábito de trabalhar de acordo com esboços preliminares, modelos e padrões uniformes, e desenvolveu-se uma técnica quase mecanicamente estereotipada de produção, permitindo  que objetos diferentes fossem construídos à partir de componentes uniformes produzidos separadamente. A aplicação de tais métodos racionalistas à produção artística só foi possível, é claro, porque era usual determinar a cada artista a execução repetida da mesma tarefa um sem-número de vezes, encomendando-lhe as mesmas oferendas volitivas, os mesmos ídolos, os mesmos monumentos sepulcrais, o mesmo tipo de imagens régias e de retratos particulares. e como a originalidade do tema nunca foi muito apreciado no Egito, sendo na verdade geralmente proibida, toda a ambição do artista concentrava-se na meticulosidade e perfeição da execução, à qual é tão notória, mesmo em obras de menor importância, que compensa a falta de interesse e vivacidade na invenção. A exigência de um acabamento polido e impecável também explica por que a produção das oficinas egípcias era comparativamente pequena, apesar da organização racionalista aí empregada. A predileção dos escultores por trabalhos em pedra, nos quais apenas o desbaste grosseiro do bloco era confiado aos aprendizes, enquanto o trabalho mais refinado dos detalhes e o acabamento final eram reservados ao mestre, desde o início impôs limites muito estreitos à produção.   


Trecho de História social da Arte e da literatura

domingo, 27 de dezembro de 2020

Arnold Hauser

 


O jardim de Nebamun, 1400a.C.




Elementos estáticos e dinâmicos na arte do oriente antigo 


A ruptura [que distingue o paleolítico do neolítico] tinha sido caracterizada pela transição do mero consumo para a produção, do primitivo individualismo para a cooperação, e agora [na transição entre do neolítico para o Oriente antigo] era marcada pelos alvores do comércio e das manufaturas independentes, pela ascensão de cidades e mercados, e pela aglomeração e diferenciação de populações. [...] Na maioria das instituições e costumes do Oriente Antigo, as formas autocráticas de governo, a manutenção parcial de uma economia natural, a impregnação da vida cotidiana por cultos religiosos e a tendência rigorosamente formalista da arte, os costumes e  tradições neolíticos persistiram lado a lado com o novo modo de vida urbano. 

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A mudança decisiva no novo modo de vida é expressa, sobretudo, no fato de que a produção primária deixou de ser a ocupação principal e, historicamente, a mais progressiva, ingressando agora no serviço do comércio e da manufatura. O aumento da riqueza, o acúmulo de solos aráveis e de suprimentos alimentares livremente disponíveis em um número de mãos comparativamente reduzido, criou novas, mais intensivas e mais variadas necessidades de trocas  de produtos e redundou em nova divisão do trabalho. O criador de imagens de espíritos, de deuses e de homens, de utensílios decorativos e de jóias, emerge do meio fechado do lar e torna-se um especialista que faz dessa profissão seu modo de subsistência. Já deixou de ser o inspirado mágico ou o membro expedito do lar para tornar-se artífice que cinzela esculturas, faz pinturas ou modela vasos, tal como outros fabricam machados e sapatos, e não é tido em muito mais alto apreço que o ferreiro ou o sapateiro. A perfeição do trabalho manual, o controle seguro de materiais difíceis e o esmero da execução impecável, que é especialmente notável no Egito, em contraste com a genialidade ou a despreocupação diletante da arte anterior, é resultado da especialização profissional do artista, da vida urbana com a crescente competição entre formação rivais e do treinamento de uma elite experimentado e exigente de conhecedores nos centros culturais da cidade, nos recintos e dos templos e no palácio real. 

A cidade, com a sua concentração de população e os estímulos intelectuais produzidos pelo estreito contato entre os diferentes níveis da sociedade, seu mercado flutuantes e seu espírito antitradicionalista, condicionado pela natureza peculiar do mercado, seu comércio externo e a familiaridade dos mercados com terras e povos estranhos, sua economia monetária, por muito rudimentar que tenha inicialmente sido, e os deslocamentos de riqueza promovidos pela natureza da moeda, teve, inevitavelmente, um efeito revolucionário em todos os setores da vida cultural e contribuiu par ou estilo mais dinâmico e mais individualista na arte, mais livre da influência das formas e tipos tradicionais do que o geometrismo do período neolítico. 


Trecho de História social da Arte e da literatura

sábado, 26 de dezembro de 2020

Wolf Singer




 O processo de tomada de decisão


Para um neurobiologista, é evidente que todos os atos de uma pessoa são preparados com antecedência pelos processos neuronais que ocorrem no cérebro. Até onde se sabe, esses processos obedecem às leis da natureza, inclusive ao princípio de causalidade. Se não for assim, nenhum organismo vivo seria capaz de estabelecer relações coerentes entre suas condições ambientais e suas respostas comportamentais. Se os organismos respondessem de uma maneira aleatória aos desafios apresentados pelo mundo, não conseguiríamos sobreviver

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A neurobiologia pressupõe que os processos mentais são o resultado de processos neuronais, não sua causa. Portanto, nesse contexto é inconcebível que uma entidade mental imaterial controle a atividade de redes neuronais a fim de desencadear uma ação. A neurobiologia afirma categoricamente, e defendo com firmeza essa posição, que todos os fenômenos mentias que penetram em nossa consciência são consequência da atividade neuronal que tem lugar nos inúmeros centros do cérebro, os quais devem cooperar a fim de produzir os estados mentais específicos que experimentamos, sejam percepções, sejam decisões, sentimentos, opiniões ou vontades. Desse ponto de vista, todos os fenômenos mentais são, portanto, a consequência, e não a causa, de processos neuronais. 

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No caso da decisão pessoal, as informações que a sustentam têm origens neuronais diferentes, como a recordação de determinadas experiências, os valores morais incutidos, as disposições emocionais específicas do indivíduo e a percepção do contexto

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Tudo indica que os nossos conhecimentos dependem de processos construtivistas. Os conhecimentos a priori, isto é, anteriores à experiência, e as interpretações indispensáveis à elaboração de experiências encontram-se nas estruturas específicas do cérebro dos seres humanos. Dado que essa estrutura resulta de um processo de adaptação genética e epigenética à dimensão do mundo acessível aos nossos sentidos, temos o direito de pensar que as percepções e as formas de interferência são subjetivas e, portanto, não generalizáveis. É verdade que estamos presos dentro de um raciocínio epistemológico circular. Nosso cérebro e, portanto, nossos conhecimentos se adaptaram ao pequeno nicho que é o mundo no qual a vida se desenvolveu e evoluiu. E nesse nicho, minúsculo em relação ao resto do universo, somente essas variáveis, isto é, nosso cérebro e nossos conhecimentos empíricos, conduziram os processos de adaptação dos nossos sistemas cognitivos, que se manifestam por meio da organização de nossos órgãos sensoriais. Esses órgãos são, eles mesmos, altamente seletivos e sensíveis apenas a um leque muito limitado de sinais físico-químicos. 

Utilizamos, portanto, um instrumento cognitivo que foi ajustado para apreender um segmento muito restrito do mundo, com o objetivo de “compreender”a totalidade desse mundo. É a partir das dimensões do universo ao qual estamos adaptados que extrapolamos as dimensões dos universos aos quais não estamos adaptados.  Pior, a evolução não aperfeiçoou nossos instrumentos cognitivos para que pudéssemos analisar a suposta “verdadeira natureza”que estaria oculta por trás dos fenômenos, mas com o único objetivo de que pudéssemos interpretar as informações necessárias à nossa sobrevivência e a reprodução dos organismos. De fato, a sobrevivência e a reprodução requerem métodos heurísticos muito diferentes das estratégias indispensáveis à descoberta da verdadeira natureza das coisas. 

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O registro da atividade neuronal revela que os processos neuronais que servem de base e preparam essa decisão começaram muito antes da tomada de consciência da decisão. Temos indícios complementares com estudos experimentais ao longo dos quais os sujeitos executam ações em resposta a instruções dadas de tal maneira que elas não podem percebê-las conscientemente. Em outras palavras, constatamos que os sujeitos respondem a essas instruções sem ter consciência de ter obedecido a elas. [...] Uma possibilidade é desviar a atenção do sujeito, uma técnica utilizada com bastante frequência por mágicos par que seus gestos permaneçam imperceptíveis aos olhos do público. No momento em que os sujeitos respondem às instruções que eles não perceberam conscientemente, é evidente que, então, eles se tornam conscientes de suas ações, que interpretam como resultado de sua própria intenção. Se perguntamos a esses sujeitos: “Por que você fez isso?”, eles dão uma resposta do tipo intencional: “Fiz porque quis”. Em seguida, eles inventam um motivo, convencidos de que foi sua intenção que desencadeou a ação. Temos aí um exemplo perfeito do fato de que a pessoa se atribui, de maneira ilusória e subjetiva, a plena responsabilidade pela totalidade de um processo decisório. 

Sentimos necessidade de encontrar razões para tudo que fazemos. Quando, porém, não temos acesso ao verdadeiro motivo pelo qual realizamos uma ação - porque a motivação é inconsciente ou porque nossa atenção foi desviada -, inventamos um, no qual passamos a acreditar, sem perceber que ele é fruto de nossa imaginação. 

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É interessante constatar que discutimos o problema do livre-arbítrio e da livre decisão pressupondo que as decisões são o resultado de deliberações conscientes e do raciocínio. Essas discussões podem tratar de argumentos morais que foram gravados na memória e que voltam à consciência, das consequências benéficas ou prejudiciais de um ato, ou de ideias sobre as quais ouvimos falar recentemente. Se tivermos tempo suficiente para avaliar essas argumentações segundo as regras do diálogo e dos sistemas de valores aceitos numa determinada sociedade - e se a consciência não for perturbada por um evento qualquer - , pensaremos, então, que o indivíduo é inteiramente livre para escolher diversas opções futuras, inclusive a opção de escolher evitar qualquer decisão. 

No entanto, “o agente que delibera”é uma rede neuronal, e o resultado da deliberação, isto é, a decisão, é a consequência de um processo neuronal que, por sua vez, é determinado pela sequência de processos que o precedem imediatamente. Portanto, o resultado desse processo depende de todas as variáveis que moldaram a estrutura funcional do cérebro no passado: predisposições genéticas, efeitos epigenéticos das impressões da primeira infância, a soma das expectativas passadas e o conjunto de estímulos presentes. Resumindo: uma decisão iminente é influenciada por todas as variáveis que determinam a programação específica do cérebro, bem como por todas as influências que atuam no cérebro no memento da tomada de decisão. 

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A especialista em neuroética, Katahinka Evers, ressalta que mesmo se as decisões conscientes são precedidas imediatamente de uma preparação neurológica inconsciente, isso não significa que a consciência está ausente: as experiências acumuladas ao longo da via não param de influenciar o conteúdo dos processos inconscientes. Isso significa que temos, de fato, um certo controle dos processos inconsciente, por meio dos conteúdos consciente que os precederam. Somos responsáveis, em certa medida, pelos conteúdos do nosso inconsciente, já que os fenômenos conscientes e inconscientes não param de se moldar reciprocamente numa rede complexa de causalidade mútua. [...] Portanto, mesmo se durante os décimos de segundo que parecem uma decisão existem processos inconscientes em ação no cérebro, a decisão final é, antes de mais nada, o ponto culminante da experiencia de toda uma vida. 

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Nosso modo de decidir, a maneira como nossos mecanismos neuronais convergem para que cheguemos a uma decisão, depende de todas as variáveis que influenciam o estado dinâmico do cérebro no próprio momento da decisão. Essas variáveis são fatores que moldaram a estrutura funcional do cérebro (genes, processos de desenvolvimento, educação, experiências), mas também as influências decorrentes do passado recente (conceitos, contexto, disposições emocionais e inúmeros outros elementos). Em princípio, qualquer experiência passada de que temos consciência pode ser levada em conta por ocasião das deliberações conscientes. No entanto, como um grande número de experiências não chega ao nível da consciência, elas não podem ser levadas em conta como argumentos que intervêm nas deliberações conscientes Porém, apesar disso essas experiências inconscientes vão influenciar o resultado das decisões, como motivações inconscientes e heurísticas. Na verdade, como ressaltamos, apenas uma pequena parte das inúmeras variáveis que intervêm nas decisões entra em jogo nas deliberações conscientes: nós temos recordações conscientes e extremamente limitadas, e talvez não tenhamos nenhuma lembrança dos fatores genéticos e epigenéticos que moldaram nossas estruturas cerebrais e, consequentemente, dos fatores que presidiram a elaboração de nossas tendências comportamentais individuais.  


Trecho retirado de Cérebro e Meditação - Diálogo entre budismo e neurociência 

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Arnold Hauser




Os tempos pré-históricos - O artista como mágico e sacerdote; a arte como profissão e ofício doméstico 


Os criadores dos desenhos paleolíticos de animais eram, ao que tudo leva a crer, caçadores "profissionais" - pode-se presumir isso com certeza quase absoluta a partir do seu conhecimento íntimo dos animais - e é improvável que, como "artistas" (ou como quer que fossem chamados), estivessem isentos da obrigação de prover alimentos. Entretanto, certos indícios indicam definitivamente que já tinha ocorrido alguma diferenciação vocacional - embora talvez apenas nesse campo particular. [...] O artista-mago, portanto, parece ter sido o primeiro representante da especialização e da divisão de trabalho. 

[...]

Com a separação da arte em sagrada e profana, a atividade artística do período neolítico passou para as mãos de dois diferentes grupos. As tarefas da arte sepulcral e da escultura de ídolos, assim como a execução de danças rituais tornaram-se agora a arte dominante na era do animismo, eram atribuídas, com toda probabilidade, exclusivamente a homens, sobretudo mágicos e sacerdotes. Por outro lado, a arte profana, agora restrita à categoria de ofício e destinada a solucionar problemas meramente decorativos, talvez tenha ficado nas mãos das mulheres e pode ter formado parte de sua atividade doméstica. 

[...]

A absorção parcial da arte pela indústria doméstica e pelas tarefas domésticas da mulher, ou seja, a fusão da atividade artística com outras atividades, significa um retrocesso do ponto de vista da divisão do trabalho e da diferenciação profissional. Pois a divisão funcional agora ocorre, quando muito, entre sexos, mas não entre classes profissionais. Portanto, embora as civilizações agrárias promovam a especialização de um modo geral, também é verdade que, por algum tempo, põem fim à classe dos artistas profissionais. E essa mudança é tanto mais completa porque, de fato, não apenas aqueles ramos da atividade artística exercida pelas mulheres mas também os praticados pelo homem passaram agora a ser atividades subsidiárias. [...] É difícil dizer se o fim da classe artística independente constitui uma das razões para a simplificação e esquematização de formas artísticas ou se é o resultado disso. Por certo o estilo geométrico, com seus motivos simples e convencionais, não requer nada que se parece com o rigoroso e completo treinamento exigido pelo estilo naturalista; por outro lado, porém, o diletantismo que aquele possibilita contribuiu, provavelmente, para a simplificação das formas artísticas. 

Trecho de História social da arte e da literatura 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Arnold Hauser

 



O período Neolítico: Animismo e geometrismo


A arte paleolítica reproduz as coisas com exatidão e realidade, ao passo que a arte neolítica opõe um supermundo estilizado e idealizado à realidade empírica corrente. Mas isso constitui o começo do processo de intelectualização e racionalização em arte: a substituição das representações e formas concretas por sinais e símbolos, abstrações e abreviações, tipos gerais de signos convencionais; a supressão de fenômenos e experiências diretamente vivenciados por pensamento e interpretação. A obra de arte deixa de ser puramente a representação de um objeto material para tornar-se a de uma ideia, não meramente uma reminiscência, mas também uma visão; por outras palavras, os elementos não sensoriais e conceptuais da imaginação do artista substituem os elementos sensíveis e irracionais. E desse modo a pintura é gradativamente convertida numa linguagem simbólica pictográfica, a profusão pictórica é reduzida a uma espécie de taquigrafia não-pictórica ou quase não-pictórica. 

Em última análise, a mudança neolítica de estilo é determinada por dois fatores: primeiro, pela transição de uma economia parasitária, puramente consumptiva, dos caçadores e coletores, para a economia produtiva e construtiva dos criadores de gado  e cultivadores de terra; segundo, pela substituição da concepção monista, dominada pela magia, por uma filosofia dualista de animismo, ou seja, por uma concepção do mundo que é intrinsecamente dependente do novo tipo de economia. O pintor paleolítico era um caçador e, como tal, tinha de ser um excelente observador, tinha de estar capacitado para reconhecer animais e suas características, seus habitats e migrações, através das mais tênues pegadas e odores, tinha de ter uma visão penetrante para semelhanças e diferenças, um ouvido apurado para sons e ruídos; todos os seus sentidos tinham de estar orientados para a realidade exterior e concreta. A mesma atitude e as mesmas qualidades também são importantes no naturalismo. O camponês neolítico já não precisa dos sentidos aguçados do caçador; sua sensibilidade e dotes de observação declinam; outros talentos - sobretudo o dom da abstração e o pensamento racional - adquirem maior importância tanto em seus métodos de produção quanto em sua arte formalista, estritamente concentrada e estilizadora. A diferença mais fundamental entre essa arte e o naturalismo é que ela representa a realidade como uma confrontação de dois mundos, não como uma representação contínua de completa homogeneidade. Com seu irrefreável anseio formalista, rechaça a aparência normal das coisas; deixa de ser imitadora, para tornar-se a antagonista da natureza, não promove uma continuação da realidade, mas opõe-se-lhe com um modelo autônomo de sua própria criação. 

[...]

A concepção da comunidade parasitária de caçadores, vivendo um dia após o outro, era dinâmica e anárquica, e sua arte destinava-se correspondentemente à expansão, extensão e diferenciação da experiência. Já a perspectiva do campesinato produtivo, empenhado em garantir e preservar os meios de produção,  é estática e tradicionalista, suas formas de vida são impessoais e estacionárias, e as formas artísticas, correspondentemente convencionais e invariáveis. Nada mais natural do que se terem desenvolvido em sociedades camponesas, a par dos métodos de trabalho essencialmente coletivos e tradicionais, formas sólidas, inflexíveis e estáveis em todos os campos da vida cultural. 

[...]

O naturalismo paleolítico está ligado a padrões sociais individualistas e anárquicos, a uma certa ausência de tradição, à falta de convenções estáveis e a uma concepção puramente secular, ao passo que o geometrismo neolítico, por outro lado, está vinculado a uma tendência para a uniformidade de organização, com instuições estáveis e uma concepção de vida amplamente orientada por princípios religiosos; tudo  o que vai além do mero enunciado dessas relações baseia-se fundamentalmente em equívocos.      


Trecho de História social da Arte e da literatura

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Arnold Hauser




 O período paleolítico: magia e naturalismo

É provável que o homem pré-mágico tenha descoberto por acidente a ligação entre a cópia e o original, mas essa descoberta deve ter causado nele um efeito irresistível. Talvez toda a esfera da magia, com seu axioma de dependência mútua de coisas semelhantes, tenha sido fruto dessa experiência. As duas ideias básicas que, como foi enfatizado, constituem as precondições da arte podem ter-se desenvolvido na idade da experimentação e descoberta pré-mágicas, mormente a ideia de semelhança e imitação e a ideia de produzir algo a partir do nada,  que é de fato a própria possibilidade de uma arte criadora. A]s silhuetas de mãos que foram encontradas em muitos lugares perto das pinturas rupestres, e que parecem ser resultantes da impressão de mãos reais, fizeram provavelmente nascer no homem a ideia de criação - de poien - e deram-lhe a consciência da possibilidade de que algo inanimado e artificial poderia ser perfeitamente semelhante ao original vivo e autêntico. Esse mero jogo nada tinha a ver inicialmente, é claro, nem com a arte nem com a magia; teria de converter-se primeiro num instrumento de magia e só então poderia tornar-se uma forma de arte. Com efeito, é tão imenso o hiato existente entre essas impressões de mãos e as mais primitivas representações de animais no paleolítico (e não existe qualquer documento sobre uma possível transição entre ambas), que dificilmente podemos admitir a hipótese de um direto e contínuo desenvolvimento de formas de arte a partir de puras formas lúdicas; deve-se no entanto inferir a existência de um elo de conexão vindo de fora - e com toda a probabilidade esse elo terá sido a função mágica da cópia. Contudo, mesmo essas formas lúdicas, pré-mágicas, apresentavam uma tendência naturalista, ou seja, a imitação da realidade (ainda que mecanicamente), e não podem, de maneira nenhuma, ser consideradas a expressão de um princípio decorativo e antinaturalista. 

Trecho de História Social da Arte e da Literatura 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Ernest Hemingway

 





Colinas como elefantes brancos 


[...]


A brisa quente sacudiu a cortina de bambu por sobre a mesa. 

- A cerveja é boa e está bem gelada - comentou o homem. 

- Está ótima! - Concordou a garota. 

- Será muito simples essa operação, Jig. Nem chega a ser uma operação para valer - disse ele.  

A moça olhou para o chão onde a mesa pousava. 

- Estou certo de que não se preocupa com ela, Jig. É mesmo uma coisa à toa para que o ar possa entrar melhor. 

Ela continuou em silêncio. 

- Vou com você e fico o tempo todo junto com você. Eles apenas vão deixar que o ar entre, e depois tudo volta ao normal. 

-Depois, o que faremos? 

- Depois disso, tudo ficará bem. Do jeito que éramos antes. 

- Por que é que você diz isso? 

- Porque é a única coisa que nos incomoda. A única coisa que nos deixa infelizes. 

A garota examinou distraidamente a cortina e apanhou duas fileiras de contas. 

- Acha mesmo que tudo correrá bem e seremos felizes então? 

- Sim, certeza que seremos! Não há o que temer. Conheço um bocado de gente que já fez operações como essa. 

- Eu também conheço - admitiu a moça.  - E sei que ficaram muito felizes depois. 

- Bem - ponderou o homem o homem -, você não está obrigada a fazê-la. Caso não queira, não se fala mais nisso. Mas que é uma moleza, garanto que é. 

- E você quer mesmo que eu a faça, não é?

- Acho que é a melhor coisa a fazer, Mas só quero que faca se isso for de seu desejo. 

- E, se eu a fizer, você ficará feliz, as coisas voltarão a ser o que eram, e você me amará de novo? 

- Eu a amo agora, como é. Bem sabe que sempre a amei.


[...]


- Poderíamos ter tudo isto - falou ela. - Não há o que não possamos ter, embora o tornemos impossível a cada novo dia... 

- O que é que está dizendo? 

- Disse que poderíamos ter todas as coisas...

- E poderemos tê-las!

- Não, não poderemos. 

- Teremos todo mundo ao nosso alcance!

- Não, não teremos. 

- Não haverá lugar algum aonde não possamos ir!

- Não, não poderemos. O mundo já não nos pertence mais.

- Você está enganada! Ele é nosso!

- Já não é! E, depois que o tiraram de nós, jamais o devolverão. 


[...]


   - Claro! Mas gostaria que você compreendesse...

- Estou compreendendo - atalhou a moça. - Será que não poderíamos parar com esta conversa? 

Sentou-se novamente à mesa e passou a examinar o horizonte, limitado pleas  colinas de um lado e pelo vale seco do outro. O homem olhava ora para ela, ora para a mesa. 

- Quero mais uma vez que você compreenda não estar de modo algum obrigada a fazer o que não quiser. Estou disposto a topar o que der e vier se isso é realmente importante para você. 

- E para você, não é? Poderíamos nos entender muito bem assim mesmo...

- Claro que poderíamos! Você é a única pessoa a quem realmente quero. Mas que a coisa é simplíssima, bem sei que é. 

- Sim, você é quem sabe. 

- Pode brincar com as palavras, mas sei mesmo que é. 

- Você seria capaz de fazer algo por mim neste intestate? 

- Faço qualquer coisa por você!

- Então, por favor, cale essa boca!

  

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

Matthieu Ricard




 O exame do ego


O ego é uma entidade que se localiza no centro do nosso ser ou um centro de controle no cérebro? Mais, é um continuum de experiências que reflete a história da pessoa? [...] O conceito da ego como um regente de orquestra é uma ilusão cômoda para funcionar na vida. Se abandonarmos a crença cega no eu não correremos o risco de nos tornar vulneráveis? Ao contrário, um ego transparente favoreceria a coragem e a confiança interior? 

[...]

Sabemos que o corpo e a mente estão em constante transformação. Deixamos de ser crianças irrequietas e aos poucos envelhecemos. Nossa experiencia se transforma e se enriquece a todo momento. E, no entanto, pensamos que existe algo no meio desse conjunto que nos define agora e que nos definiu durante toda a nossa vida. Nós nos referimos a ele chamando-o de “ego”, “self” ou “eu”. Não contentes em ser um continuum único de experiências, julgamos que no centro desse fluxo mora uma entidade singular e distinta: nosso verdadeiro “ego”, algo que viaja ao longo do rio de nossa experiência. 

Quando acreditamos que existe essa entidade, com a qual nos identificamos, procuramos protegê-la e tememos que ela desapareça. Esse forte apego à ideia de um ego gera as ideias de “posse”: “meu” corpo, “meu” nome, “minha” mente, “meus” amigos etc. 

Não conseguimos deixar de imaginar esse ser como uma entidade distinta e singular e, embora nosso corpo e nossa mente sofram transformações contínuas, teimamos em lhe atribuir características de permanência e singularidade e de autonomia. Paradoxalmente, essa criança tem como resultado o aumento da nossa vulnerabilidade e não o desenvolvimento de uma confiança autêntica. Na verdade, ao presumir que o ego é uma entidade autônoma, diferente e única, entramos numa contradição básica com a realidade. Nossa vida é regida essencialmente por relações de interdependência. Sem dúvida, nossa própria felicidade é importante, mas ela só pode existir por meio e ao lado da felicidade dos outros. Além disso, o ego se torna o alvo permanente do ganho e da perda, do prazer e da dor, do elogio e da crítica etc. Temos a sensação de que é preciso proteger e satisfazer esse ego custe o que custar. Sentimos repulsa com relação a tudo que o ameaça e atração por tudo que lhe é agradável e o fortalece. Esses dois impulsos básicos, de atração e de rejeição, dão origem a uma miríade de emoções conflituosas: raiva, ganância, arrogância, ciúme, que, afinal, geram sempre sofrimento.  


Trecho de Cérebro e Meditação 

Edward O. Wilson


 

A evolução da variação cultural 


Todas as sociedades e cada um dos seus indivíduos disputam jogos de aptidão genética, cujas regras foram moldadas através de incontáveis gerações pela coevolução gene-cultura. Quando uma regra é absoluta, como a destruição por incesto, só existe um jogo possível. Nesse caso, é rotulado de “exogamia”. Quando uma parte do ambiente é imprevisível, convém que a pessoa use uma estratégia mista obtida pela plasticidade. Se um traço ou reação não funcionar, mude para outro dentro do repertório genético. O grau de plasticidade existente dentro de uma categoria de cultura não depende de qualquer julgamento explícito do que ocorrerá no futuro, mas do grau de desafios a que a categoria de traços ou comportamentos precisou reagir nas gerações passadas quando a coevolução gene-cultura vinha ocorrendo. 


Desde a década de 1970, os biólogos têm estado atentos aos processos genéticos pelos quais a evolução da plasticidade é mais provavelmente engendrada. Possivelmente não é por mutações nos genes codificadores de proteínas, que determinam uma mudança básica na composição de aminoácidos e proteínas. É mais provável que se dê por mudanças nos genes reguladores, que determinam a taxa e as condições sob as quais as proteínas são produzidas. Pequenas mudanças nos genes reguladores não parecem grande coisa, mas podem alterar profundamente as proporções das estruturas anatômicas e da atividade fisiológica. Podem também mirar com mais precisão certas partes do corpo e processos fisiológicos específicos. Além disso, podem programar a sensibilidade a selecionar estímulos que afetam o organismo em desenvolvimento, com o resultado de diferentes ambientes evocam a produção das variantes específicas mais adequadas à vida dentro deles. Finalmente, mutações de genes reguladores, por afetarem as interações no processo de desenvolvimento, tendem a ser menos deletérias do que mutações em genes codificadores de proteínas. 

[...] 

A variação cultural entre os humanos é determinada sobretudo por duas propriedades do comportamento social, ambas sujeitas à evolução por seleção natural. A primeira é o  grau do viés da regra epigenética - muito baixa na moda de vestuário, muito alta na aversão ao incesto. A segunda propriedade da variação cultural são as chances de que membros individuais do grupo imitem outros da mesma sociedade que adaptaram o traço (sensibilidade ao padrão de uso).   


Trecho de A conquista social da Terra

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Edward O. Wilson




 Como a cultura evoluiu


Como definida em linhas gerais por antropólogos e biólogos, a cultura é a combinação de traços que distingue um grupo de outro. Um traço cultural é um comportamento inventado dentro de um grupo ou aprendido de outro, depois transmitido entre os membros do grupo. A maioria dos pesquisadores também concorda que o conceito de cultura deveria se aplicado igualmente aos animais e seres humanos, de modo a enfatizar a continuidade dos primeiros para os segundos e, não obstante, a complexidade imensamente maior do comportamento humano. 

[...]

A elaboração da cultura depende da memória de longo prazo, e nessa capacidade os seres humanos estão bem acima dos demais animais. A vasta quantidade armazenada em nossos cérebros anteriores superdimensionados faz de nós exímios contadores de histórias. Evocamos sonhos e relembranças da experiencias de toda uma vida para criar cenários passados e futuros. Vivemos em nossa mente consciente com a consequência de nossas ações, reais ou imaginadas. Exteriorizadas em versões alternativas, nossas histórias interiores permitem que anulemos os desejos imediatos a favor do prazer adiado. Pelo planejamento de longo prazo, derrotamos, ao menos por um tempo, a insistência de nossas emoções. Essa vida interior torna cada pessoa única e preciosa. 

[...]

O cérebro possui uma arquitetura complexa herdada. Em consequência de como se desenvolveu, a mente consciente, um dos produtos da arquitetura, originou-se pela coevolução gene-cultura, uma interação intricada entre evolução genética e cultural. [...] O grande dom do cérebro humano consciente é a capacidade - e com ela o impulso inato irresistível - de desenvolver cenários

[...] 

O que catapultou o Homo sapiens até esse nível?  Os especialistas no assunto concordam que a memória de longo prazo aumentada, especialmente aquela aplicada à memória operacional, e com ela uma capacidade de desenvolver cenários e planejar estratégias em breves períodos, desempenharam um papel-chave na Europa e em outras partes, tanto antes como depois da saída da África. Qual foi a força propulsora que levou ao limiar da cultura complexa? Parece ter sido a seleção de grupo.  Um grupo com membros menos capazes de interpretar intenções e cooperar entre si, enquanto previam as ações de grupos concorrentes, teria uma enorme vantagem em relação a outros menos dotados. Ocorreu sem dúvida competição entre membros do grupo, levando à seleção natural de traços que davam vantagens a um indivíduo em relação à outro. Mas, mais importante para uma espécie adentrando ambientes novos e competido com rivais poderosos, foram a união e a cooperação dentro do grupo. Moralidade, submissão, fervor religioso e capacidade de luta se combinaram a imaginação e memória para produzir o vencedor



Trecho de A conquista social da Terra.