quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Arnold Hauser

 



O período Neolítico: Animismo e geometrismo


A arte paleolítica reproduz as coisas com exatidão e realidade, ao passo que a arte neolítica opõe um supermundo estilizado e idealizado à realidade empírica corrente. Mas isso constitui o começo do processo de intelectualização e racionalização em arte: a substituição das representações e formas concretas por sinais e símbolos, abstrações e abreviações, tipos gerais de signos convencionais; a supressão de fenômenos e experiências diretamente vivenciados por pensamento e interpretação. A obra de arte deixa de ser puramente a representação de um objeto material para tornar-se a de uma ideia, não meramente uma reminiscência, mas também uma visão; por outras palavras, os elementos não sensoriais e conceptuais da imaginação do artista substituem os elementos sensíveis e irracionais. E desse modo a pintura é gradativamente convertida numa linguagem simbólica pictográfica, a profusão pictórica é reduzida a uma espécie de taquigrafia não-pictórica ou quase não-pictórica. 

Em última análise, a mudança neolítica de estilo é determinada por dois fatores: primeiro, pela transição de uma economia parasitária, puramente consumptiva, dos caçadores e coletores, para a economia produtiva e construtiva dos criadores de gado  e cultivadores de terra; segundo, pela substituição da concepção monista, dominada pela magia, por uma filosofia dualista de animismo, ou seja, por uma concepção do mundo que é intrinsecamente dependente do novo tipo de economia. O pintor paleolítico era um caçador e, como tal, tinha de ser um excelente observador, tinha de estar capacitado para reconhecer animais e suas características, seus habitats e migrações, através das mais tênues pegadas e odores, tinha de ter uma visão penetrante para semelhanças e diferenças, um ouvido apurado para sons e ruídos; todos os seus sentidos tinham de estar orientados para a realidade exterior e concreta. A mesma atitude e as mesmas qualidades também são importantes no naturalismo. O camponês neolítico já não precisa dos sentidos aguçados do caçador; sua sensibilidade e dotes de observação declinam; outros talentos - sobretudo o dom da abstração e o pensamento racional - adquirem maior importância tanto em seus métodos de produção quanto em sua arte formalista, estritamente concentrada e estilizadora. A diferença mais fundamental entre essa arte e o naturalismo é que ela representa a realidade como uma confrontação de dois mundos, não como uma representação contínua de completa homogeneidade. Com seu irrefreável anseio formalista, rechaça a aparência normal das coisas; deixa de ser imitadora, para tornar-se a antagonista da natureza, não promove uma continuação da realidade, mas opõe-se-lhe com um modelo autônomo de sua própria criação. 

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A concepção da comunidade parasitária de caçadores, vivendo um dia após o outro, era dinâmica e anárquica, e sua arte destinava-se correspondentemente à expansão, extensão e diferenciação da experiência. Já a perspectiva do campesinato produtivo, empenhado em garantir e preservar os meios de produção,  é estática e tradicionalista, suas formas de vida são impessoais e estacionárias, e as formas artísticas, correspondentemente convencionais e invariáveis. Nada mais natural do que se terem desenvolvido em sociedades camponesas, a par dos métodos de trabalho essencialmente coletivos e tradicionais, formas sólidas, inflexíveis e estáveis em todos os campos da vida cultural. 

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O naturalismo paleolítico está ligado a padrões sociais individualistas e anárquicos, a uma certa ausência de tradição, à falta de convenções estáveis e a uma concepção puramente secular, ao passo que o geometrismo neolítico, por outro lado, está vinculado a uma tendência para a uniformidade de organização, com instuições estáveis e uma concepção de vida amplamente orientada por princípios religiosos; tudo  o que vai além do mero enunciado dessas relações baseia-se fundamentalmente em equívocos.      


Trecho de História social da Arte e da literatura

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