segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Peter Zirkuli




III

Lâminas apenas.
Nó, fio, laços
e os ligarmos
de tempos a tempos,
numa pausa.
Desfazem-se mais tarde
e gesticulam, espalham-se
em desordem
os corpos, as coisas.
Somos,
mineral, água, células,
o que nos forma.
Quis uma Outra existência.
Ar imperceptível
que tudo envolve
de uma só matéria em mil partículas.
Agora toda a respiração é vertigem,
espinhas afluindo Ă

garganta.
E a visão enjoa-me,
o panorama granuloso,
a gravura ofegante,
nervura de pedra,
que consolo há nesse abraço,
se é apenas
consolo,
um balouçar em êxtase,
o desejo e as lâminas inchadas
por fim aquietados,
o fremente
rabiscar.

Walt Whitman



[Quem Aprende Minha Lição por Inteiro?]

Quem aprende por inteiro minha lição?
O patrão o diarista o aprendiz? . . . . carola e ateu?
O cretino e o sábio pensador . . . . pais e proles . . . . mercador e funcionário e porteiro
           e o freguês . . . . editor, autor, artista e estudante?

Chegue mais perto e comece.
Não é lição alguma . . . . derruba as barreiras para uma boa lição,
E aquela a outra ainda . . . . e de lição a lição.

As grandes leis são cumpridas e acatadas sem discussão,
Eu sou do mesmo estilo, pois sou íntimo delas,
Eu as amo e ficamos quites . . . . não mando parar nem fico fazendo salamaleques.

Me deito absorto e escuto histórias bonitas sobre as coisas e a razão das coisas,
São tão bonitas que cutuco a mim mesmo pra escutar.

Não ouso dizer a ninguém o que ouço . . . . não consigo dizer nem pra mim . . . . é
          lindo de morrer.

Não é uma coisa à toa, este globo redondo e gostoso, se movendo tão preciso e
            eternamente em sua órbita, sem um vacilo ou inverdade de um só segundo ;
Não acho que tenha sido feito em seis dias, nem em dez mil anos, nem em dez
            decilhões de anos,
Nem que tenha sido planejado e construído  uma coisa após a outra, como um 
             arquiteto desenha e executa uma casa.

Não creio que setenta anos seja a duração da vida de um homem ou uma mulher,
Nem que setenta milhões de anos seja a duração da vida de um homem ou uma mulher,
Nem que os anos vão interromper minha existência ou a de qualquer pessoa.

Não é maravilhoso que eu deva ser imortal? como todos são imortais,
Sei que é maravilhoso . . . . mas ser capaz de ver é maravilhoso também . . . . e o jeito 
             como fui gerado no ventre a minha mãe é maravilhoso também,
E como eu não era palpável antes e agora sou . . . . eu que nasci no último dia de
             maio de 1819 . . . . e que de um bebê no transe rastejante  de três verões e três
             invernos começasse a articular e andar . . . . tudo isso é maravilhoso também.

Ter atingido a altura de um metro e oitenta e três . . . . ter me tornado um homem de
             36 anos em 1855 . . . . e estar aqui agora - isso é maravilhoso também,
E que a minha alma abrace a sua neste instante, e nos apaixonemos um pelo outro sem
             que a gente nunca tenha se visto, e talvez nunca nos vejamos, é tão
             maravilhoso quanto :
E que eu possa pensar estes pensamentos é maravilhoso também,
E que eu possa passá-los a vocês, e vocês possam pensá-los e sabê-los verdadeiros
             também é maravilhoso,
E que a lua gire em volta da terra e avance com a terra também é maravilhoso
E que ambas se equilibrem com o sol e as estrelas também é maravilhoso.

Como gostaria de ouvir você dizer o que existe em você que não seja maravilhoso
              também,
Como gostaria de ouvir o nome de todas as coisas entre a manhã de domingo e o
              sábado à noite que não fossem maravilhosas também.
             

sábado, 15 de janeiro de 2011

Rainer Maria Rilke




Precisos e terrenos é o que, por ora, enquanto estamos aqui e somos aparentados com árvore, flor e solo, devemos continuar a ser no mais puro sentido e o que ainda devemos sempre nos tornar! No que me diz respeito, o que morreu para mim morreu entrando, por assim dizer, em meu próprio coração: a pessoa desaparecida, quando a procuro, recolheu-se de forma tão singular e surpreendente em mim, e foi tão tocante sentir que agora ela existia apenas ali, que meu entusiasmo de servir à sua existência nesse local, de aprofundá-la, glorificá-la impôs-se quase no mesmo instante em que a dor habitualmente teria assaltado e devastado toda a paisagem da alma. Quando me lembro do quanto amava meu pai - amiúde na mais extrema dificuldade de nos entendermos e nos aceitarmos! Na infância meus pensamentos muitas vezes se confundiam, e o coração quase parava com a mera idéia de que ele poderia não mais existir; minha existência parecia tão completamente determinada por ele (minha existência que desde o início teve um desígnio tão diferente!) que sua partida teve para minha natureza mais interna o mesmo significado de meu próprio declínio... mas a morte está tão profundamente cravada na essência do amor (contanto que sejamos apenas cúmplices desse fato sobre a morte, sem nos deixarmos desorientar pelas fealdades e suspeitas atreladas a ela) que não o contradiz em lugar algum: para onde ela poderia deslocar a única coisa que tínhamos levado tão inefavelmente no coração senão para dentro desse coração mesmo, onde estariam a "idéia" desse ser amado, seu efeito incessante (pois como poderia cessar essa influência que, já enquanto vivia a pessoa amada, tinha se tornado cada vez mais independente de sua presença tangível)... onde esse efeito sempre secreto estaria mais seguro senão dentro de nós? Onde poderíamos nos aproximar dele, onde celebrá-lo com mais pureza, quando obedecer-lhe melhor senão quando ocorre em uníssono com nossas próprias vozes, como se nosso coração tivesse aprendido uma nova língua, uma nova música, uma nova força!

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Wislawa Szymborska




Torturas

Nada mudou.
O corpo é sensível à dor,
precisa comer, respirar, dormir,
por baixo da pele fina corre sangue,
tem a provisão adequada de dentes e unhas,
ossos quebráveis e articulações extensíveis.
Nas torturas tudo isto é tomado em conta.

Nada mudou.
O corpo treme como tremia
antes e depois da fundação de Roma,
no século vinte antes e depois de Cristo,
torturas sempre as houve e haverá, só a terra ficou pequena
e o que quer que aconteça, é como se fosse aqui do lado.

Nada mudou.
Apenas há mais gente,
juntaram-se novas às velhas culpas,
reais, insinuadas, instantâneas, nenhumas,
mas o grito, com o qual o corpo por elas paga,
foi, é, e será o grito da inocência,
segundo o registro da escala secular.

Nada mudou.
Talvez apenas as maneiras, as cerimônias, as danças.
O gesto das mãos para proteger a cabeça
continua a ser o mesmo.
O corpo contorce-se, debate-se, tenta escapar,
cai redondamente, encolhe os joelhos,
torna-se roxo, incha, saliva e sangra.

Nada mudou. 
Exceto o curso dos rios,
a linha das florestas, dos desertos e glaciares.
É nestas paragens que vagueia a alma,
parte, volta, vai e vem,
alheia a si mesma, intangível,
ora certa, ora incerta da sua existência.
Mas o corpo está e está e está, sem ter outra saída.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Walt Whitman





Folhas de Relva  [Pensar no Tempo]


Pensar em quanto prazer existe!
Você sente prazer quando olha pro céu? Sente prazer com poemas?
Você se diverte na cidade? ou metido em negócios? ou armando uma indicação 
         e eleição? ou com sua mulher e a família?
Ou com sua mãe e irmãs? ou em tarefas femininas? ou nos lindos cuidados maternais?

Tudo isso também flui rumo aos outros ... você e eu fluímos em frente;
Mas no tempo certo você e eu despertaremos menos interesse neles.

Sua fazenda e lucros e safras ... pensar em como você é ocupado; 
Pensar que sempre haverá fazendas e rendimentos e safras .. mas de que valem pra
           você?

O que tem que ser será bom - pois o que é, é bom,
Interessar-se é bom, e não se interessar também é bom.

O céu continua lindo... o prazer dos homens com as mulheres nunca será
          saciado .. nem o prazer das mulheres com os homens.. nem o prazer que
          provém dos poemas;
As alegrias domésticas, o trabalho ou negócio diário, a construção de casas - eles 
          não são fantasmas .. possuem peso e forma e local;
As fazendas e os lucros e as safras .. os mercados e salários e o governo .. eles também
          não são fantasmas;
A diferença entre pecado e bondade não é aparente;
A terra não é um eco ... o homem e sua vida e todas as coisas de sua vida são bem 
          consideradas.

Você não está ao léu.. você se reúne com certeza e segurança ao seu redor,
De você mesmo! Você mesmo! Sempre você mesmo!

Não foi pra difundir você que você nasceu de pai e mãe - foi pra identificar você,
Não foi pra que você fosse indeciso, mas que fosse decidido;
Alguma coisa há tempos preparada e informe chegou e se formou em você,
Portanto você está salvo, haja o que houver.

Cada um dos preparativos compensaram;
A orquestra já afinou os instrumentos o bastante... a batuta já deu o sinal.

O convidado que estava vindo  ...  esperou o bastante por algum motivo ... ele
           agora está acomodado,
Ele é um desses caras bonitos e felizes ... daqueles que só de paquerar  e ficar junto
           é o bastante.
[...]

Você desconfia da morte? Se eu desconfiasse da morte, morreria agora mesmo.
Acha que eu poderia caminhar feliz e bem-vestido rumo à aniquilação?

Feliz e bem vestido vou.
Não sei dizer pra onde, mas sei que é bom,
O universo todo indica que é bom,
Passado e presente indicam que é bom.

Que bonito e perfeitos são os animais! Como minha alma é perfeita!
Como é perfeita a terra, e a coisa mais insignificante sobre ela!
O que é chamado de bem é perfeito, e o que é chamado pecado também;
Os vegetais e os minerais são todos perfeitos ... e os fluidos imponderáveis são
          perfeitos;
Lentamente e com certeza chegaram até aqui, e lentamente e com certeza irão mais 
          além.

Oh, minha alma! Se a percebo me satisfaço,
Animais e vegetais! Se os percebo me satisfaço,
Leis da terra e do ar! Se as percebo me satisfaço.

Não sei definir minha satisfação .. e no entanto a sinto,
Não sei definir minha vida .. e no entanto a sinto.

Juro que agora sei que cada coisa tem uma alma eterna!
As árvores, enraizadas no chão ... as algas marinhas têm ... os animais.

Juro achar que só a imortalidade existe!
E que este estranho esquema é por ela, e a flutuação nebulosa é por ela, e a atração é por ela,
E todo preparativo é por ela.. e a identidade é por ela .. e a vida e a morte, por ela.