terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Wislawa Szymborska




Torturas

Nada mudou.
O corpo é sensível à dor,
precisa comer, respirar, dormir,
por baixo da pele fina corre sangue,
tem a provisão adequada de dentes e unhas,
ossos quebráveis e articulações extensíveis.
Nas torturas tudo isto é tomado em conta.

Nada mudou.
O corpo treme como tremia
antes e depois da fundação de Roma,
no século vinte antes e depois de Cristo,
torturas sempre as houve e haverá, só a terra ficou pequena
e o que quer que aconteça, é como se fosse aqui do lado.

Nada mudou.
Apenas há mais gente,
juntaram-se novas às velhas culpas,
reais, insinuadas, instantâneas, nenhumas,
mas o grito, com o qual o corpo por elas paga,
foi, é, e será o grito da inocência,
segundo o registro da escala secular.

Nada mudou.
Talvez apenas as maneiras, as cerimônias, as danças.
O gesto das mãos para proteger a cabeça
continua a ser o mesmo.
O corpo contorce-se, debate-se, tenta escapar,
cai redondamente, encolhe os joelhos,
torna-se roxo, incha, saliva e sangra.

Nada mudou. 
Exceto o curso dos rios,
a linha das florestas, dos desertos e glaciares.
É nestas paragens que vagueia a alma,
parte, volta, vai e vem,
alheia a si mesma, intangível,
ora certa, ora incerta da sua existência.
Mas o corpo está e está e está, sem ter outra saída.

Um comentário:

  1. Instante

    Sou quem sou.
    Um acaso inconcebível
    como todos os acasos.

    Outros antepassados
    poderiam, afinal, ser os meus,
    e então de outro ninho
    sairia voando,
    de debaixo de outro tronco
    rastejaria, coberta de escamas.

    No guarda roupa da Natureza
    há trajes de sobra:
    o traje da aranha, da gaivota, do rato do campo.
    Cada um assenta de imediato que nem uma luva
    e usa-se obedientemente
    até se gastar por completo.

    Eu tampouco tive alternativa,
    mas não me queixo.
    Poderia ser alguém muito menos individual.
    Alguém do cardume, do formigueiro, do enxame zuninte,
    uma partícula da paisagem agitada pelo vento.

    Alguém muito menos feliz,
    criado par dar a pele,
    para a mesa festiva,
    ou algo que nadasse sob a lente.

    Uma árvore presa à terra,
    da qual o fogo se aproximasse.

    Um mero cisco esmagado
    pela marcha dos acontecimentos inconcebíveis.

    Um indivíduo nascido sob uma estrela ruim
    que para outros seria boa.

    E o que seria se despertasse nas pessoas medo?
    Ou só aversão?
    ou só piedade?

    Se não tivesse nascido
    na tribo certa
    e todos os caminhos se me fechassem?

    Até agora, a sorte
    mostrou-se-me favorável.

    Poderia não ter-me sido dada
    a recordação dos bons instantes.

    Poderia ter-me sido negada
    a tendência para comparar.

    Poderia até ser eu própria
    mas sem o dom da admiração,
    quer dizer - alguém completamente diferente.

    Wislawa Szimborska

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