quarta-feira, 12 de junho de 2013

Ian McEwan



Amor sem fim (1)


E ai meu Deus, como eu a amava. Por mais que pensasse em Clarissa, na lembrança ou por antecipação, o fato de tê-la outra vez - sua pele, sua voz, a qualidade exata do amor que transitava entre nós, sua simples presença animal - sempre me trazia, juntamente com a familiaridade, um toque de surpresa. Talvez esse tipo de amnésia tenha alguma função: os indivíduos incapazes de afastar seus corações e suas mentes do ente amado estão fadados a fracassar nos embates da vida e não deixam nenhuma herança genética. Bem no centro do meu escritório, plantados sobre o diamante amarelo do tapete bokhara, Clarisse e eu nos beijamos e abraçamos. [...]

Ainda abraçados, fomos do escritório para o quarto. Enquanto Clarissa continuava a me contar mais sobre os problemas conjugais de seu irmão e eu descrevia o artigo que havia escrito, nos preparamos para a viagem noturna rumo ao sexo e ao sono. [...] O trabalho me envolvera num véu de contentamento abstrato, e com sua chegada, apesar da triste história que ela contara, eu tinha me recuperado por completo. Não sentia medo de nada. Ao nos deitarmos, de rostos colados como na noite anterior, faria algum sentido perturbar nossa felicidade com o relato do telefonema de Parry? Diante de tudo que havíamos vivido na noite anterior, poderia eu destruir nossa ternura com as suspeitas angustiantes de ter sido seguido? As luzes haviam sido diminuídas, em breve seriam apagadas.[...] De olhos fechados, tracei na escuridão absoluta os belos lábios de Clarissa. Num gesto carinhoso, ela mordeu com força o nó do meu dedo. Há momentos em que o cansaço é o melhor afrodisíaco, eliminando qualquer outro pensamento, conferindo a membros pesados um movimento sensual em câmera lenta, promovendo a generosidade, a aceitação, o abandono total. Caímos de nosso dias respectivos como insetos sacudidos de uma rede.

Ian McEwan

Amor sem fim (2)

Eles estão de volta ao quarto. Ela se pergunta se foi longe demais. Mas lá está, prematuramente fora da banheira, procurando pelas roupas de baixo, enquanto a dor na parte de baixo da coluna continua a se espalhar. Eles raramente brigam. Ela, em especial, não é boa em matéria de discussão. Nunca foi capaz de aceitar as regras de combate que lhe permitem ou exigem dizer coisas em que não acredita ou que são distorções da verdade, quando não mentiras puras. Não pode escapar à sensação de que cada tirada hostil mais a afasta não apenas do amor de Joe, mas de todo o amor que ela sentiu na vida - fazendo-a pensar que, com isso, vem à tona uma maldade que genuinamente corresponde ao mais profundo de seu ser.

Joe tem outro tipo de problema. Para começar, a raiva nele leva tempo para se manifestar, e, mesmo quando isso acontece, sua inteligencia não o ajuda, ele esquece o que devia dizer e não é capaz de marcar pontos na discussão. E não consegue vencer o hábito de responder uma acusação com uma resposta racional e pormenorizada, em vez de contra-atacar com outra acusação. Não é difícil desnorteá-lo, com uma súbita irrelevância. A irritação bloqueia a compreensão de seu próprio caso, e só depois, quando ele se acalma, é que lhe vem à mente uma defesa bem articulada. Além disso, é especialmente difícil ser duro com Clarissa, porque ela se fere com muita facilidade. Palavras raivosas deixam uma marca imediata em seu rosto.

Ian McEwan

Amor sem fim (3)

"Tenho de me preparar para sair". Partiu às pressas, deixando a conversa inconclusa. [...]

Deixei-me ficar na cozinha, lavando os pratos, terminando o café e recolhendo as folhas da carta. A espontaneidade do nosso relacionamento, preservada sem nenhum tormento durante anos, subitamente me parecia um engenho complexo, um mecanismo finamente balanceado, como um antigo relógio de carruagem. Estávamos perdendo a capacidade de mantê-lo funcionando, ou de fazer isso sem um enorme esforço de concentração. Todas as vezes que eu falara com Clarissa ultimamente, preocupava-me com as consequências de minhas palavras. [...]

A consciência de si próprio acaba com o erotismo. Na cama, apenas uma hora e meia antes, nós de algum modo não havíamos sido convincentes, como se entre nossas mucosas houvesse se introduzido um fino pó, ou seu equivalente mental, porém tão tangível quanto a areia da praia. Sentado à mesa da cozinha depois da partida de Clarissa, desenvolvi uma melancólica sequência causal que ia do psíquico ao somático - maus pensamentos, pouca excitação, lubrificação mínima - e terminava na dor.

Ian McEwan

Amor sem Fim (4)

Juro que não sabia para onde ia ao atravessar a cozinha. Chegando à porta do escritório de Clarissa, imaginei que estava entrando para pegar meu grampeador. Ao cruzar o pequeno aposento, talvez tenha me dito que queria ver se o resto da minha correspondência matinal não estava misturado à dela, como às vezes ocorria. Havia uma barreira moral a ser ultrapassada, e suponho que pra isso servia a autopersuasão que eu atribuíra a ela. 

Chegando à escrivaninha, na verdade agi como se estivesse procurando o grampeador, que encontrei debaixo de um jornal. Soltei até um grunhido de satisfação. Será que havia alguém no aposento, uma presença celestial, que eu esperava convencer? Seriam tais gestos os vestígios - genética ou socialmente programados - de uma fé numa divindade vigilante? Minha encenação, assim como  minha honestidade, minha inocência e meu amor-próprio, desmoronou no momento em que enfiei o grampeador no bolso mas não saí do escritório, continuando, em vez disso, a remexer nos papéis empilhados na escrivaninha.

Claro que não podia mais negar o que estava fazendo. Disse comigo que agia assim para desfazer nós, para trazer luz e compreensão às trevas do não falado. Tratava-se de uma dolorosa necessidade.[...] Se minhas suspeitas estivesses infundadas, mais vital ainda que as descartasse. Abri a gaveta onde ela guardava a correspondência recente. Cada ato sucessivo, cada momento de penetração mais profunda, representava um grau adicional de vileza.  Com o correr dos segundos, eu me importava cada vez menos com o fato de estar me comportando daquele modo. Algo duro e apertado - uma tela, uma carapaça - se formava para me proteger de minha consciência.  Minhas racionalizações se cristalizaram em torno de um conceito parcial de justiça: eu tinha o direito de saber o que distorcia as reações de Clarissa em relação a Parry. O que a impedia de tomar meu partido? Algum estudantezinho barbudo de pós-graduação metido a fodedor? Peguei um envelope posto no correio três dias antes. O endereço havia sido escrito em itálico, letras pequenas e artisticamente irregulares. Tirei dali uma única folha. A saudação por si só me deu um aperto no coração. Querida Clarissa. Mas não era nada. Uma velha amiga do ginásio dando notícias da família. Escolhi outra: seu padrinho, o eminente professor Kale, nos convidando para almoçar no dia do aniversário dela. Já sabia disso. Olhei de relance para uma terceira carta, de Luke, e depois para uma quarta, uma quinta, e a inocência cumulativa de toda a correspondência começou a me dar náuseas. Passei a vista por outras três. Eis aqui uma vida, elas sugeriam, a vida da mulher que você diz amar, ativa, inteligente, bondosa, complexa. Que está fazendo aqui? Tentando nos manchar com seu veneno! Saia! Comecei a abrir a última carta, porém mudei de ideia. Estava me sentindo tão asqueroso que, ao deixar o escritório, apalpei o bolso para confirmar - ou dar a impressão de estar confirmando - a presença do grampeador. [...]

Minha invasão no escritório tinha sido um marco em nosso declínio e no insidioso avanço de Parry. Clarissa voltou à noite irradiando calor e até alegria, mas eu estava envergonhado demais para relaxar. Mais consciência de si próprio. Agora eu realmente tinha algo para esconder dela. Eu havia cruzado a fronteira de minha inocência. 

Ian McEwan

Amor sem fim (5)

Não havia brigas e nem mesmo escaramuças, como se soubéssemos que qualquer confrontação nos separaria pra sempre. Mantínhamos um nível mínimo de interlocução, conversinhas fiadas sobre coisas do trabalho, compras, o que comer, reparos na casa. [...]

Preservávamos nossa rotina cotidiana porque ela era a única coisa totalmente clara. O afeto já se fora, o carinho mútuo evaporara, tínhamos esquecido todos os truques do amor e nem sabíamos como começar a falar sobre isso. Dormíamos na mesma cama, porém não nos abraçávamos. Usávamos o mesmo banheiro, porém já não nos víamos nus. Tratávamo-nos de maneira escrupulosamente informal por saber que qualquer coisa a menos, por exemplo, uma polidez fria, revelaria o jogo e nos conduziria ao conflito que buscávamos evitar. O que antes parecia natural - fazer amor, ter longas conversas ou partilhar o silêncio - dava agora a impressão de ser tão difícil de conceber quanto o Quarto Relógio Marítimo de Harrison, cuja recriação seria impossível e anacrônica. Quando eu a via escovando o cabelo ou se abaixando para pegar um livro no chão, me lembrava de sua beleza como de um fato aprendido em algum manual escolar. Verdadeiro, embora irrelevante no momento. E eu era capaz de me ver pelos olhos dela como um sujeito grandalhão e desajeitado, um aríate programado biologicamente, um pólipo gigantesco de lógica comezinha com que ela havia se associado por engano. Quando lhe falava, minha voz soava monótona e enfadonha dentro de meu crânio, e cada frase, de fato cada palavra, era mentirosa. Eu vivia mergulhado numa raiva muda e num inarredável desprezo por mim mesmo. Quando nossos olhos se encontravam, era como se uma parte ruim de nós, uma presença maligna e insidiosa, erguesse as mão diante de nossos rostos para bloquear qualquer possibilidade de entendimento. Mas nossos olhos se cruzavam muito raramente e, quando isso acontecia, em um ou dois segundos fugiam, medrosos. Aqueles seres que antes se amavam nunca nos entenderiam ou perdoariam, mas a verdade é que o sentimento dominante e não reconhecido em nossa casa era então a vergonha.  

E ali estávamos, entre uma e meia e duas da manhã, deitados na cama, nos olhando fixamente sob a luz débil de um abajur, eu nu, ela numa camisola de algodão, braços e mãos se tocando porém de forma neutra, sem compromisso. Todas as dúvidas pairavam sobre nós e, durante algum tempo, nenhum dos dois ousou falar. Já era muito nos olhar olho no olho.

Ian McEwan

Amor sem fim (6)

Estávamos deitados em silêncio fazia dez minutos. Ela estava apoiada sobre o lado esquerdo e pensei ouvir os iambos arrastados de sua pulsação em meu travesseiro. Talvez fosse meu próprio ritmo. Era lento, e eu estava certo de que se tornava ainda mais lento. Não havia nenhuma tensão naquele silêncio. Olhávamo-nos diretamente nos olhos e depois nossos olhares passeavam por outras feições do rosto, dos olhos para os lábios, de volta aos olhos. Como se fizéssemos uma longa e demorada rememoração; a cada minuto que passava sem nos falarmos, nossa recuperação ganhava força sem sacrifício da tranquilidade. Sem dúvida, o poder inercial do amor, as horas, semanas e anos passados harmoniosamente em conjunto superavam as circunstâncias do presente. Não é verdade que o amor gera suas próprias reservas? A última coisa que deveríamos fazer agora, pensei, seria nos enredarmos numa troca de explicações pacientes. Na popularização da psicologia, foi dada uma importância exagerada aos benefícios de discutir um relacionamento até os últimos detalhes. Os conflitos, como qualquer organismo vivo, têm uma duração natural. O truque está em saber quando os deixar morrer. No momento errado, as palavras podem agir como descargas elétricas de um desfibrilador. A criatura pode ressuscitar numa forma patogênica, regenerada febrilmente por uma nova formulação interessante, ou por um "novo olhar" mórbido dirigido a esse ou aquele pormenor. Movi a mão e aumentei ligeiramente a pressão de meus dedos no seu braço. Os braços se abriram, o descolamento sensual acentuado por um levíssimo som explosivo. Todo o que precisávamos fazer era nos olharmos e lembrarmos. Fazer amor deixando que o resto se resolvesse por conta própria. Os lábios de Clarissa emolduraram meu nome sem que deles escapasse um som ou mesmo um sopro. Eu não conseguia afastar meu olhos de seus lábios. Tão flexíveis, tão lustrosamente ricos em cores naturais. O batom foi inventado para que as mulheres pudessem exibir uma versão piorada de lábios como aqueles. "Joe...", os lábios disseram de novo. [...]
"Joe..." Dessa vez ela sussurrou meu nome por entre os belos lábios entreabertos, e depois, franzindo a testa e respirando fundo, deu a suas palavras um tom grave e vibrante: "Joe, tudo acabou. É melhor admitirmos isso agora. Acho que está tudo terminado entre nós, não é mesmo?"