sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Daniel Kahneman

Atenção e esforço

O sistema 2 é um personagem secundário que acredita ser o herói. O traço definidor do Sistema 2 é que suas operações são trabalhosas, e uma de suas principais características é a preguiça, uma relutância em investir mais esforço do que o estritamente necessário. Como consequência, os pensamentos e ações que o Sistema 2 acredita ter escolhido são muitas vezes orientados pela figura no centro da história, o Sistema 1. Entretanto, há tarefas vitais que apenas o Sistema 2 pode realizar, pois elas exigem o esforço e ações de autocontrole em que as intuições e impulsos do Sistema 1 são subjugados. 

Pupila, uma janela para alma; uma indicação visível do esforço mental

O tamanho da pupila varia de acordo com as alterações de exigência das tarefas mentais: sequências mais longas invariavelmente causam dilatações maiores, o pico de tamanho da pupila coincide com o máximo esforço mental. A pupila dilata cerca de 50% de sua área original e a pulsação aumenta em cerca de sete batimentos por minuto. Isso é o mais duro que alguém pode dar. 

A conversação mundana exige pouco ou nenhum esforço. A vida mental é normalmente conduzida ao ritmo de uma caminhada confortável, às vezes interrompida por episódios de corrida leve e em raras ocasiões um tiro frenético. [...] As pessoas, quando ocupadas num tiro mental, podem ficar efetivamente cegas. 

A reação à sobrecarga mental é seletiva e precisa: o Sistema 2 protege a atividade mais importante, de modo que ela recebe a atenção de que precisa; a “capacidade reserva” é alocada segundo a segundo para outras tarefas. 

A sofisticada alocação da atenção tem sido aperfeiçoada por uma longa história evolucionária. Orientação e reação rápidas ante as ameaças mais sérias ou as oportunidades mais promissoras melhoravam a chance de sobrevivência, e essa capacidade certamente não se restringe aos seres humanos. Mesmo nos humanos modernos, o Sistema 1 assume o controle nas emergências e designa prioridade total a ações de autoproteção. Imagine-se no volante de um carro que inesperadamente derrapa numa enorme mancha de óleo. Você vai ver que reagiu à ameaça antes de ficar inteiramente consciente dela. 

À medida que você se especializa numa tarefa, a demanda de energia diminui. Estudos do cérebro revelam que o padrão da atividade associado com uma ação muda à medida que a habilidade aumenta, com menos regiões do cérebro envolvidas. O talento tem efeitos semelhantes. Indivíduos muito inteligentes necessitam menos esforço para resolver os mesmos problemas, como indicado tanto pelo tamanho da pupila, quanto pela atividade cerebral. Uma “lei do menor esforço” se aplica tanto ao esforço cognitivo quanto físico. Essa lei determina que se há vários modos de atingir o mesmo objetivo, as pessoas acabaram por tender ao curso de ação menos exigente. Na economia da ação, esforço é um custo, e a aquisição de habilidade é impulsionada pelo equilíbrio de benefícios e custos. A preguiça é algo profundamente arraigado em nossa natureza. 

O que torna algumas operações cognitivas mais exigentes e trabalhosas que outras? Que resultados devemos adquirir na moeda da atenção? O que o Sistema 2 faz que o Sistema 1 não consegue? 

O esforço é exigido para manter simultaneamente na memória diversas ideias que exigem ações separadas ou que precisam ser combinadas de acordo com uma regra.  – repassar mentalmente a lista de compras quando você entra no supermercado, escolher entre peixe e vitela no restaurante, combinar um resultado surpreendente obtido após um estudo com a informação de que a amostra era pequena, por exemplo. O Sistema 2 é o único que pode seguir regras, comparar objetos com base em diversos atributos e fazer escolhas deliberadas a partir de opções. O automático Sistema 1 não dispõe dessas capacidades. O Sistema 1 detecta relações simples (“eles são todos parecidos”, “o filho é bem mais alto que o pai”) e se sobressai em integrar informação  sobre uma coisa, mas ele não lida com tópicos distintos e múltiplos de uma vez, tampouco é proficiente ao usar informação puramente estatística. O Sistema 1 vai detectar que uma pessoa descrita como “dócil e organizada, com necessidade de ordem e estrutura, e uma paixão pelo detalhe” se assemelha de uma caricatura de bibliotecário, mas combinar essa intuição com o conhecimento sobre o pequeno número de bibliotecários é tarefa que apenas o Sistema 2 consegue realizar – se o Sistema 2 souber como fazer tal coisa, o que é verdadeiro para poucas pessoas.  

Uma capacidade crucial do Sistema 2 é a adoção de “ajustes de tarefa” (“task sets”): ele pode programar a memória para obedecer a uma instrução que passa por cima de reações habituais. [...] Os psicólogos de “controle executivo” para descrever a adoção e o término dos ajustes de tarefa, e os cientistas identificam as principais regiões do cérebro que agem na função executiva. Uma dessas regiões está envolvida sempre que um conflito precisa ser resolvido. Outra é a área pré-frontal do cérebro, uma região que é substancialmente mais desenvolvida em humanos do que em outros primatas, e está envolvida em operações que associamos com a inteligência. 

A capacidade de controlar a atenção não é simplesmente uma questão de inteligência; medidas de eficácia no controle da atenção. 

A pressão do tempo é outra motriz do esforço. [...] Qualquer tarefa exigindo que você mantenha em mente diversas ideias ao mesmo tempo apresenta esse mesmo caráter urgente. A menos que você tenha a boa sorte de possuir uma memória de trabalho de grande capacidade, talvez você seja forcado a dar duro desconfortavelmente. As formas mais laboriosas de trabalho lento são as que exigem que você pense rápido. 

Normalmente evitamos a sobrecarga mental dividindo nossas tarefas em múltiplos passos fáceis, relegando os resultados intermediários à memória de longo prazo ou ao papel, em vez de relegá-los à memória de trabalho, que fica facilmente sobrecarregada. Cobrimos longas distâncias dando tempo ao tempo e conduzindo nossa vida mental pela lei do menor esforço. 

quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Daniel Kahneman


Rápido e devagar – duas formas de pensar 

Sinopse da trama 

Vou fazer referência a dois sistemas na mente, o Sistema 1 e o Sistema 2. O Sistema 1 opera automática e rapidamente, com pouco ou nenhum esforço e nenhuma percepção de controle voluntário. O Sistema 2 aloca atenção às atividades mentais laboriosas que o requisitam, incluindo cálculos complexos. Operações do Sistema 2 são muitas vezes associadas com a experiência subjetiva de atividade, escolha e concentração. 

Na história que vou contar, os Sistemas 1 e 2 estão ambos ativos sempre que estamos despertos. O Sistema 1 funciona automaticamente e o Sistema 2 está normalmente em um confortável modo de pouco esforço, em que apenas uma fração de sua capacidade está envolvida. O Sistema 1 gera continuamente sugestões para o Sistema 2: impressões, intuições, intenções e sentimentos. Se endossadas pelo Sistema 2, impressões, e intuições se tornam crenças, e impulsos se tornam ações voluntárias. Quando tudo funciona suavemente, o que acontece na maior parte do tempo, o Sistema 2 adota as sugestões do Sistema 1 com pouca ou nenhuma modificação. Você realmente acredita em suas impressões e age segundo seus desejos, e tudo bem – normalmente.

Quando o Sistema 1 funciona com dificuldade, ele recorre ao Sistema 2 para fornecer um processamento mais detalhado e específico que talvez solucione o problema do momento. O Sistema 2 é mobilizado quando surge uma questão para a qual o Sistema 1 não oferece uma resposta, como provavelmente acontece quando você se vê diante do problema de multiplicação 17 x 24. Você pode sentir uma sobrecarga de atenção consciente sempre que fica surpreso. O Sistema 2 é ativado quando se detecta um evento que viola o modelo do mundo mantido pelo Sistema 1. Nesse mundo, abajures não pulam, gatos não latem e gorilas não atravessam quadras de basquete. A surpresa desse modo, ativa e orienta sua atenção: você fixa o olhar, e busca em sua memória uma história que dê sentindo ao evento surpreendente.  Ao Sistema 2 também é atribuído o contínuo monitoramento de seu próprio comportamento – o controle que o mantém sendo educado quando está furioso, e alerta quando está dirigindo à noite. O Sistema 2 é mobilizado para aumentar o esforço quando detecta um erro prestes a ser cometido. Lembre-se de uma ocasião em que você quase deixou escapar um comentário ofensivo e observe como se esforçou para recobrar o controle. Em resumo, a maior parte do que você (seu Sistema 2) pensa e faz origina-se de seu Sistema 1, mas o Sistema 2 assume o controle quando as coisas ficam difíceis e normalmente eles tem a última palavra. 

A divisão do trabalho entre o Sistema 1 e o Sistema 2 é altamente eficiente: isso minimiza o esforço e otimiza o desempenho. O arranjo funciona bem na maior parte do tempo porque o Sistema 1 geralmente é muito bom no que faz: seus modelos de situações familiares são preciosos, suas previsões de curto prazo são igualmente preciosas e suas reações iniciais a desafios são rápidas e normalmente apropriadas. O Sistema 1 tem vieses, porém, erros sistemáticos que ele tende a cometer em circunstâncias específicas: ele responde a perguntas mais fáceis do que essa que foi feita, e exibe pouco entendimento de lógica e estatísticas. Uma limitação adicional do Sistema 1 é que ele não pode ser desligado. Se alguém lhe mostra numa tela uma palavra numa língua que você conhece, você a lê – a menos que a sua atenção esteja totalmente concentrada em outro lugar. 

Conflito

O conflito entre uma reação automática e uma intenção de controlá-la é comum em nossa vidas.  Qualquer um está familiarizado com a experiência de tentar não encarar o casal vestido de maneira excêntrica na mesa ao lado em um restaurante. Também sabemos como  é forçar nossa atenção em um livro chato, no qual nos pegamos constantemente voltando ao ponto em que a leitura parou de fazer sentido. Em lugares onde os invernos são muito rigorosos, é comum os motoristas terem a lembrança de seu carro derrapando sem controle no gelo e da luta para seguir instruções bem ensaiadas que exigem o contrário do que você normalmente faria: “Gire o volante no sentido da derrapagem e, haja o que houver, não toque no freio!”E todo ser humano já passou pela experiência de não mandar alguém para o inferno. Uma das tarefas do Sistema 2 é dominar os impulsos do Sistema 1. Em outras palavras, o Sistema 2 é o encarregado do autocontrole. 

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

Esther Perel




Ciúme – A faísca de Eros

O monstro de olhos verdes causa muita desgraça, mas a ausência dessa serpente horrorosa indica a presença de um cadáver cujo o nome é Eros.
Minna Antrim

P: Qual o segredo das relações duradouras?
R: A infidelidade. Não o ato em si, mas sua ameaça. Segundo Proust, uma injeção de ciúmes é a única coisa capaz de resgatar uma relação arruinada pelo hábito.
Allain de Botton. Como Proust pode mudar sua vida

Eurípedis, Ovídio, Shakespeare, Tolstói, Proust, Flaubert, Stendhal, D.H. Lawrence, Austen, as irmãs Bronte, Atwood – inúmeros gigantes da literatura mergulharam no tema da infidelidade. No cerne de muitas dessas narrativas está uma das emoções mais complexas, o ciúme – “aquela mistura nauseante de possessividade, desconfiança, raiva e humilhação que pode tragar sua mente e ameaçar sua essência enquanto você mede o rival”, como descreve a antropóloga evolutiva Helen Fisher.

Scheinkman e Werneck se interessam especificamente pelas diferenças culturais na interpretação do ciúme. Segundo elas, “reconhecido no mundo todo como motivação para crimes passionais, o ciúme é definido em certas culturas como uma força destrutiva que precisa ser contida, enquanto em outras é concebido como um companheiro do amor e guardião da monogamia, essencial para proteger a união do casal”.

O ciúme é, nas palavras da historiadora e filósofa italiana Guilia Sissa, uma “fúria erótica”.  [...] Podemos tentar esconder o nosso ciúmes, mas quem o inspira sempre sabe – e às vezes até curte atiçar as brasas para transforma-las em camas enlouquecedoras.  

O ciúme não foi sempre renegado. O sociólogo Gordon Clanton pesquisou matérias sobre o tema em revistas americanas populares durante um período de 45 anos. Até a década de 1970, ele era visto como um sentimento natural, intrínseco ao amor. Não é surpresa que os conselhos sobre o tema fosse dirigidos exclusivamente às mulheres, incentivadas à controlar o ciúme (nelas mesmas) e evitar provocá-lo nos maridos. Depois de 1970, o ciúme caiu em desgraça e passou a ser visto cada vez mais como um vestígio inadequado de um modelo antigo de casamento em que a posse era central (para homens) e a dependência inevitável (para mulheres). Na nova era da livre escolha e igualdade, o ciúme perdeu a legitimidade e virou motivo de vergonha. “Se por livre e espontânea vontade escolhi você como a pessoa certa, abrindo mão de todas as outras, e você me acolheu por livre e espontânea vontade, eu não deveria sentir necessidade de ser possessivo”.

Como Sissa destaca em seu revigorante livro acerca do tema, o ciúme carrega em si um paradoxoprecisamos amar a fim de ter ciúme, mas, se amamos, não deveríamos tê-lo. No entanto, temos mesmo assim. Todo mundo fala mal do ciúmes. Portanto, o vivenciamos como uma paixão inadmissível. Não só somos proibidos de assumir que temos ciúme, como não nos é permitido sentir ciúme. Hoje em dia, Sissa nos adverte, o ciúme é politicamente incorreto.

Embora nosso reequilíbrio social em torno do ciúme tenha sido parte de uma mudança importante para além do privilégio patriarcal, talvez ele tenha ido longe demais. Nossos ideais culturais às vezes são impacientes demais com nossas inseguranças humanas. Podem não conseguir dar conta da vulnerabilidade inerente ao amor e da necessidade que o coração tem de se defender. Quando botamos todas as nossas esperanças em uma pessoa, nossa dependência aumenta. Todo casal vive à sombra do terceiro.

A pessoa ciumenta sabe que não é um personagem simpático e que seu tormento provavelmente atrairá mais críticas que compaixão. Como resultado, o que Proust chamou de “o demônio não pode ser exorcizado” simplesmente saiu à caça de um vocabulário socialmente aceitável. “Trauma”, “pensamentos intrusivos”, “flashbacks”, “obsessão”, “vigilância” e “problemas de apego” são o vocabulário moderno do amor traído. Esse arcabouço do transtorno de estresse pós-traumático legitima nosso sofrimento romântico, mas também o despe da essência romântica.

Reconhecer o ciúme é admitir amor, competição e comparação – todos sentimentos que demonstram vulnerabilidade. E mais ainda quando se expõe a quem magoou.

O monstro de olhos verdes nos insulta quando estamos mais indefesos e nos põe em contato direto com nossas inseguranças, nosso medo da perda e nossa falta de autoestima. Não é nosso ciúme iludido ou patológico, em que a desconfiança infundada é alimentada mais pelo trauma de infância que por alguma causa atual. É o tipo de ciúme que é intrínseco ao amor e portanto à infidelidade. Estão contido nessa simples palavra um monte de sentimentos e reações intensos, que podem ir do lamento, insegurança e humilhação a possessividade e rivalidade, excitação e encanto, desejo de vingança e desforra, chegando até a violência.

Cá estamos no dilema da possessividade. O desejo de ter e controlar é ao mesmo tempo parte intrínseca da fome do amor e também uma perversão do amor. Por um lado, queremos instigar o parceiro a voltar para nós. Mas não queremos que volte só por obrigação: queremos nos sentir escolhidos. E sabemos que o amor que é privado de liberdade e capitulação voluntária não é amor. Porém, é assustador criar espaço para essa liberdade.   



Fotografia: Nan Goldin