quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Esther Perel





Lojinha de horrores: alguns casos provocam mais dor do que outros?

Coisa estranha que tais palavras, “umas duas ou três vezes”, nada mais que palavras, palavras pronunciadas no ar, à distância, possam assim dilacerar o coração como se o tocassem de verdade, possam fazer adoecer, como um veneno que se ingerisse.
Marcel Proust, No caminho de Swann

Alguns casos são piores que outros? Alguns tipos de infidelidade magoam menos e se mostram mais fáceis no tocante à recuperação?

É quase irresistível tentar organizar uma hierarquia da violação, no entanto, por mais convidativo que seja criar uma gradação de traições, não é de grande valia medir a legitimidade da reação pela magnitude da afronta. [...] O impacto do caso não é necessariamente proporcional à sua duração ou seriedade.

Na intrincada história da infidelidade, todas as nuances interessam. A pesquisadora Brené Brown explica que, depois de um acontecimento chocante ou traumático, “nossas emoções fazem a primeira tentativa de entender a dor”. Certas coisas despertam o sofrimento (“Ele fez o quê?”) e outras se tornam marcadores de alívio (“pelo menos não fez isso”). Algumas são amplificadores – elementos específicos que aumentam o sofrimento – e outras são amortecedores – blindagens protetoras contra a mágoa.

Como a infidelidade vai lhe cair e como você vai reagir tem tanto a ver com suas próprias expectativas, sensibilidades e histórico, como com a notoriedade da conduta do parceiro.  Gênero, cultura, classe, raça e orientação sexual: tudo isso emoldura a experiência da infidelidade e dá forma à dor.

Nossa história familiar é o principal amplificador – casos e outras quebras de confiança com que somos criados ou que sofremos em relações passadas podem nos deixar mais suscetíveis. A infidelidade sempre ocorre dentro de uma rede de conexões, e a história começou muito antes da ofensa crítica. Para alguns, confirma um medo arraigado: “Não é que ele não me ame, é que eu não me sinto amável”. E, para outros, estraçalham a imagem que tinham do parceiro: “Escolhi você porque tinha certeza que não era desse tipo”.

Um dos amortecedores é a forte rede de amigos e familiares, que são pacientes e oferecem um porto seguro para a complexidade da situação. Um senso de identidade bem desenvolvido ou um espiritual ou religiosa também podem mitigar o impacto. A própria qualidade da relação, anterior à crise, sempre tem um grande papel. E, se alguém sente ter alternativas – imóveis, poupança, perspectivas de trabalho, perspectivas de namoro –, isso não só diminui sua vulnerabilidade como também fornece certa margem de manobra, por dentro e por fora. Analisar os pontos dolorosos da traição ajuda a identificar oportunidades para fortalecer esses amortecedores protetivos.

“Por que logo ele?”

Algumas pessoas conseguem exprimir seus sentimentos no mesmo instante. A capacidade de entender as próprias emoções lhes permite reconhecer, nomear, e assumir as especificidades do seu sofrimento. Porém, também encontro pessoas que se fecharam sem jamais identificar seus pontos nevrálgicos emocionais. Elas vivem assombradas por sentimentos sem nome, que não se tornam menos potentes por causa do anonimato.

“Como foi que não percebi?”

É da natureza humana nos agarrarmos ao nosso senso de realidade, resistir ao seu possível abalo mesmo diante de provas irrefutáveis. Eu lhe garanto que “não fazer ideia” não é algo de que deva se envergonhar. Esse tipo de escape não é um ato de idiotismo, mas de autopreservação. Na verdade, é um sofisticado mecanismo de autoproteção conhecido como negação do trauma – uma espécie de autoilusão que utilizamos quando há muita coisa em jogo e temos muito a perder. A mente precisa de coerência, portanto renega as inconsistências que ameaçam a estrutura de nossas vidas. Isso se torna mais marcante quando somos traídos pelas pessoas que nos são mais próximas e das quais mais dependemos – uma prova do esforço que somos capazes de fazer para manter nossas relações, por mais turbulentas que possam ser.

Da desconfiança à certeza

A certeza é cáustica, mas a desconfiança persistente é uma agonia. Quando começamos a desconfiar que nosso amado está nos enganando, viramos escavadores implacáveis, farejando roupas e pistas jogadas com desleixo pelo desejo. Especialistas em sistemas sofisticados de vigilância, monitoramos as menores mudanças no rosto, a indiferença na voz, o cheiro estranho na camisa, o beijo sem graça. Somamos as mínimas incongruências. [...] Mais cedo ou mais tarde, o desejo de saber supera o medo de saber, e começamos a sondar e interrogar.  [...] Às vezes, o tormento corrosivo representado pela desconfiança da fidelidade do parceiro é piorada pela prática cruel do gaslighting. [...] Quando a desconfiança vira certeza, por um instante pode haver alívio, mas logo em seguida vem um novo golpe. O momento de revelação deixa uma cicatriz indelével.   

Segredos, fofocas e conselhos ruins

As pessoas não só descobrem os segredos dos parceiros como, em prol dos filhos, às vezes se tornam partícipes relutantes de engodos.  

Quando o segredo é revelado, é comum a agonia ser reforçada pelo castigo da piedade e da condenação social. “Como é que ela não sabia?”, sussurram. A voz condenatória coletiva vai da crítica suave à responsabilização total da vítima – por “deixar” que acontecesse, por não fazer o suficiente para prevenir, por não perceber o que estava acontecendo, por deixar que a situação se arrastasse por tanto tempo e, é claro, por continuar casada depois do ocorrido. A fofoca sibila por todos os lados.

Um caso pode não só destruir um casamento: ele tem o poder de descosturar toda uma malha social. [...] Para os que são traídos, as feridas específicas são a vergonha e o isolamento. A revelação de um caso pode deixar o parceiro que foi pego de surpresa em um aperto: na hora em que mais precisam dos outros para obter consolo e confirmação, menos capazes se sentem de pedir ajuda. Sem poder recorrer ao apoio de amigos, sentem-se duplamente sós.

“Por que agora?”

Os casos já doem bastante, às vezes o momento é a gota d’água. [...]Quando o momento tem alta significância pessoal, a ênfase é no “como ele(a) foi capaz de fazer isso comigo naquele momento?”. O momento quase se sobrepõe ao o quê.

“Você não pensou em mim?”

Em certas circunstâncias é a premeditação da vida dupla que fere – o grau de planejamento necessário para levar a cabo a sequência calculada de dissimulações. A intencionalidade implica que o parceiro infiel pesou seus desejos e suas consequências e resolveu ir em frente mesmo assim. Além do mais, o investimento substancial de tempo, energia, dinheiro e criatividade indica a motivação consciente de levar adiante as motivações egoístas à custa do companheiro ou da família. [...] Cada passo de premeditação em torno do amante significa um descaso ativo pela pessoa amada.

Casos cuidadosamente premeditados doem, mas a situação oposta também pode doer igualmente. Nessas circunstâncias, trata-se da indiferença da traição ocorrida por acaso. “Você está dizendo isso para eu me sentir melhor? Que você é capaz de me magoar tanto assim por uma coisa sem nenhuma importância?”.

“Será que eu estava só esquentando o lugar do amor da vida dele?”

Uma reviravolta na narrativa da infidelidade que é particularmente sofrida é a reativação de uma paixão antiga. “Por que ela?  Por que a ex? Ela o fez sofrer demais. Seria de se imaginar que ele não quisesse nada com ela. Será que ele me amou de verdade? Apesar dos filhos e de tudo que construímos, será que já fui mesmo o amor da vida dele? Ou será que era ela? Vai ver que eu estava esquentando o lugar do amor da vida dele”.  Ser substituído é sempre duro, mas quando o ex retorna e o novo na verdade é velho, o toque especial é a sensação de que talvez estejamos competindo com o destino.

Dinheiro. Bebês. DSTs. Premeditação. Descuido. Vergonha. Insegurança. Fofoca. Críticas. A pessoa, gênero, tempo, lugar, contexto social específicos. Se esse breve compêndio das histórias de horror do amor nos mostra alguma coisa é que, embora todos os atos de traição tenham características em comum, toda vivência da traição é única. Não fazemos bem a ninguém ao reduzir casos a sexo e mentiras, ignorando os vários outros elementos constitutivos que criam as nuances do suplício e influenciam o caminho que leva à cura.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

Robert L. Leahy


Detecte o perigo, transforme o perigo em catástrofe, controle a situação, evite ou escape.

Uma maneira muito comum de se tentar evitar a ansiedade talvez seja evitar a situação como um todo. A crença subjacente é a de que os riscos podem ser eliminados pela recusa de enfrenta-los. A segurança reside da manutenção da ilusão de segurança. [...] Uma consequência dessa regra é a paralisia. Temos medo de andar de avião, por isso nunca fazemos aquela visita importante a alguns familiares. Temos medo de não sermos aceitos para o trabalho que desejamos, por isso nunca nos candidatamos a ele. Alguém com quem não nos damos bem mora em uma rua próxima e, por isso, sempre evitamos passar por ela, mesmo que tenhamos que fazer um caminho mais longo. Quando nossa convicção subjacente é a de que não podemos lidar com qualquer desconforto, nossa vida fica cercada por todas as espécies de limitações, que nos mantém imóveis, passivos e escondidos.

Uma manifestação comum da paralisia que nos acomete é a indecisão. Com frequência, nos recusamos a agir até que tenhamos o que consideramos ser informações suficientes – que, de alguma forma, nunca conseguimos obter. O medo de tomar a decisão “errada” (que em circunstâncias primitivas poderiam significar a morte súbita e violenta) nos impede de tomar qualquer decisão. Quando estamos ansiosos, tentamos evitar completamente os riscos. Acreditamos que o mundo é perigoso, que não seremos capazes de enfrentar as consequências e precisamos de certeza absoluta. E quando estamos ansiosos, acreditamos que se algo não for bem nos arrependeremos para sempre. Imaginamos que nos arrependeremos dos resultados e diremos a nós mesmos: “Bem que eu te avisei!”.

Nossa ansiedade leva a procrastinação. Nosso cérebro primitivo nos diz que não devemos fazer nada até que saibamos que é seguro, até que não mais tenhamos medo. A mensagem persiste, e por isso acreditamos que é importante não agir até que estejamos prontos. Enquanto nos sentirmos ansiosos em relação a uma situação, a adiaremos – seja tal situação declarar o imposto de renda, trabalhar em um projeto que não temos certeza de que controlaremos, ter um conversa sobre um assunto delicado com alguém ou ir ao dentista.  Subjacente a isso está a crença de que as penosas consequências da ação decisiva são maiores do que não fazer nada; de que o caminho “mais seguro” é o de esperar até que a ansiedade vá embora. De todas as nossas ilusões, essa é a que aparece com maior frequência.

E se for tarde demais para evitar uma situação? E se já estivermos imersos nela? Obviamente, a estratégia é a de escapar o mais cedo possível. Novamente, a ligação com as urgências primitivas é clara: retirar-se rapidamente da situação quase sempre foi uma questão de sobrevivência. Nos dias de hoje buscamos uma saída. Atravessamos a rua para escapar de um bando de estranhos. Ligamos para nosso trabalho avisando que estamos doentes no dia de um exame importante. Não enfrentar uma fonte de perigo é um instinto tão profundo e poderoso que muitas vezes supera todas as outras considerações. É claro que quando obedecemos à urgência deixamos de aprender uma lição importante, que é a de que nós de fato temos capacidade de aprender a lidar com as dificuldades. Quando buscamos escapar de tais situações, contudo, jamais levamos esse fator em consideração.


Ao codificar essas “regras” de ansiedade, obviamente simplifiquei muito. Na prática, há muitas sobreposições entre elas, isso para não mencionar muitas situações que elas se misturam com impulsos do senso comum. Contudo, conhecemos todas essas regras, sejamos classificados como pessoas que sofrem de ansiedade ou não. Isso ocorre porque os padrões de pensamento e comportamento que elas representam foram inextricavelmente implantados em nossa psicologia, como espécie. Nossos instintos de proteção – a verdadeira origem dessas regras – não são diferentes do que eram há milhões de anos: Detecte o perigo, transforme o perigo em catástrofe, controle a situação, evite ou escape. A julgar por nosso sucesso como espécie, essas regras provaram ser eficazes durante milhões de anos de pré-história. Todavia, se nós ainda as seguimos cegamente nos dias de hoje – em que os animais selvagens, as tribos hostis, as doenças e a desnutrição não são mais as principais ameaças –, não estamos mais levando em conta nossa sobrevivência. Estamos fazendo exatamente o contrário: tornando-nos confusos, disfuncionais, paralisados e incapazes de um pensamento ou de uma ação eficaz. Estamos usando as regras certas no momento errado. Na verdade, obedecer a essas regras hoje talvez seja a melhor maneira de desenvolver o que a sociedade chama de transtorno de ansiedade. 

Fotografia: James Nachtwey

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Antônio Damásio




A estranha ordem das coisas

Observando a consciência
O estado consciente da mente tem várias características importantes. É acordado, em vez de adormecido. É alerta e concentrado, em vez de sonolento, confuso ou distraído. É orientado para o momento e o lugar. As imagens da mente – sons, imagens visuais, sentimentos, etc. – são formadas de modo apropriado, exibidas com clareza e examináveis. Não o seriam se você estivesse sob a ação de moléculas “psicoativas”, como o álcool e drogas psicodélicas. No teatro de sua mente (o seu teatro cartesiano, por que não?), a cortina está aberta, os atores no palco, falando e movendo-se, as luzes acesas, os efeitos sonoros ligados e – eis a parte crucial da montagem – há uma plateia: VOCÊ. Não preciso que você veja a si mesmo; você simplesmente percebe ou sente que, defronte ao que se passa no palco, está sentado um VOCÊ, o sujeito-plateia do espetáculo, habitando um espaço de frente para a indelével quarta parede do palco. Sinto dizer, mas coisas ainda mais esquisitas aguardam, pois, às vezes, você pode até sentir que outra parte de você está assistindo a VOCÊ enquanto você assiste ao espetáculo.

A essa altura, alguns leitores devem achar que estou caindo em todo tipo de armadilha ao sugerir essa torrente de metáforas, dizendo que existe um local real no cérebro que poderia fazer as vezes de teatro e ser um foro para a experiência mental. Fiquem tranquilos, pois não é nada disso. E também não penso que existe um minúsculo eu ou você dentro dos respectivos cérebros, passando pela experiência. Não há homúnculo, nem a regressão infinita da lenda filosófica. O fato inegável, porém, é que tudo isso acontece como se existisse um teatro ou uma enorme tela de cinema, e como se existisse um eu ou um você na plateia. É perfeitamente aceitável chamar isso de ilusão, desde que reconheçamos que existem firmes processos biológicos por trás disso e que podemos usá-los para esboçar uma explicação para o fenômeno. Não podemos meramente desconsiderá-la, como se ilusões não tivessem importância. Nosso organismo, especificamente nosso sistema nervoso e o corpo que interagem com ele, não requer teatros ou expectadores de verdade. Serve-se de outros truques da parceria corpo-cérebro para produzir os mesmos resultados.

O que mais você observa como sujeito da sua mente consciente? Talvez o fato de ela não ser um monólito, por exemplo. Ela é composta. Possui partes – bem integradas, por sinal, tanto é que algumas depende de outras, mas ainda assim são partes. Algumas podem destacar-se mais do que outras, dependendo de como você faz a observação. A parte da sua mente consciente que se destaca mais e tende a dominar os procedimentos está relacionada a imagens de muitos tipos sensitivos: visuais, auditivas, táteis, gustativas e olfatórias. A maioria dessas imagens corresponde a objetos e eventos do mundo à sua volta. São mais ou menos integradas em conjuntos, e sua respectiva abundância tem relação com as atividades que ocupam você no momento. Se estiver ouvindo música, provavelmente dominarão imagens sonoras. Se estiver almoçando, imagens gustativas e olfatórias serão especialmente destacadas. Algumas das imagens formam narrativas, ou partes de narrativas. Entremeadas às imagens relacionadas à percepção corrente, pode haver imagens do passado sendo reconstruídas, convocadas no momento porque são pertinentes aos procedimentos correntes. Elas são partes de memórias de objetos, ações ou eventos, embutidas em narrativas antigas ou armazenadas como itens isolados. Sua mente consciente também inclui esquemas que ligam imagens, ou abstrações ensejadas por elas. Dependendo do estilo mental do indivíduo, ele pode perceber esses esquemas e abstrações com mais ou menos clareza, e com isso quero dizer, por exemplo, que ele pode construir, como em um espelho, e de maneira confusa, imagens secundárias de movimentos de coisas no espaço, ou relações espaciais entre objetos.

Símbolos passam por esse superfilme no cérebro, e alguns deles compõe uma trilha verbal que traduz objetos e ações em palavras e sentenças. Para a maioria dos mortais, a trilha verbal é em grande parte auditiva e não precisa ser totalmente abrangente – nem tudo é traduzido, a nossa mente não gera legendas para cada linha do diálogo ou descrições para cada cena. É uma trilha verbal para a demanda do momento, que traduz imagens vindas não só de fora, mas também, necessariamente, do interior, como já vimos.

A presença dessa trila verbal é uma das justificativas remanescentes, e agora incontestável, para uma certa excepcionalidade humana. Os seres não humanos, por mais respeitáveis que sejam, não traduzem suas imagens em palavras, mesmo quando suas mentes fazem uma porção de coisas engenhosas que a nossa pode ou não fazer.

A trilha verbal é corresponsável pela característica narradora da mente humana e pode muito bem ser, para a maioria de nós, sua principal organizadora. De modos não verbais, quase cinemáticos, porém sem palavras, contamos incessantemente histórias a nós mesmos, em particular, e a outros. Chegamos até a novos significados, superiores aos dos componentes separados da história, em virtude de tanta narração.

E quanto aos outros componentes da mente consciente? Ora, eles são imagens do próprio organismo. Um conjunto é composto de imagens do mundo interno antigo, o mundo da química e das vísceras, que sustenta os sentimentos, as imagens dotadas de valência que são tão distintivas em qualquer mente. Os sentimentos, que se originam no estado homeostático básico e em tantas respostas emotivas geradas pelas próprias imagens do mundo externo, são grandes contribuintes da nossa mente consciente. Fornecem o elemento do qualia que é parte das discussões tradicionais sobre o problema da consciência. Finalmente, existem imagens do mundo interno novo, o mundo da estrutura musculoesquelética e seus portais sensitivos. As imagens da estrutura esquelética formam um fantasma do corpo no qual todas as imagens podem ser situadas e afixadas. O resultado de todos esses processos imagiadores coordenados não é simplesmente uma grande peça, sinfonia ou filme. É um espetáculo multimídia épico.

Quantos desses componentes da mente dominam nossa vida mental, isto é, comandam a atenção, depende de numerosos fatores: idade, temperamento, cultura, ocasião, estilo mental. Mas todos nós tendemos a dar mais ou menos rédeas aos aspectos do mundo externo ou ao mundo do afeto.

Em circunstâncias normais, a intensidade da função subjetividade varia, assim como varia o grau da integração de imagens. Quando mergulhamos arrebatados em uma narrativa, ou mesmo quando a criamos de uma forma diferente, a função subjetividade pode ser extremamente sutil. Ela ainda está lá, prontamente disponível, presente para assumir de imediato seu papel central.

Quando nos absorvemos no que está acontecendo com os personagens de um filme, por exemplo, não necessariamente estamos pensando em nós mesmos e relacionando nosso prazer com a presença do sujeito. Para que alocar esforço adicional de processamento ao “eu”? A presença estável de um “eu” de referência já basta. No entanto, repare que se, em dado momento, uma palavra ou acontecimento no filme associa-se à sua experiência passada específica e provoca uma reação – um pensamento, uma resposta emotiva e um sentimento específico –, nosso “sujeito” ganha destaque; momentaneamente, coexperienciamos o material visto na tela e a nossa própria presença, agora mais proeminente na mente consciente. Ainda é mais provável que isso ocorra quando temos o total controle do tempo necessário para adquirir o material. É isso que acontece quando lemos um romance ou até um texto de não ficção absorvente. Podemos dar o ritmo que quisermos à aquisição e tradução mental. Algo que não ocorre na experiência de um filme, a menos que abandonemos nossa postura de espectador e nos distraiamos do que a tela mostra. A experiência clássica de um filme, como nos casos da música e da realidade, impõe seu tempo de aquisição. Se quiser ser livre de verdade, escolha a literatura.

Finalmente, preciso salientar que as imagens do interior cumprem um duplo dever. De um lado, elas contribuem para o show multimídia da consciência: podem ser observadas como parte do espetáculo da consciência; de outro, para a construção de sentimentos, e com isso, ajudam na geração da própria subjetividade, a propriedade da consciência que nos permite ser espectadores. Isso pode parecer confuso, e até paradoxal de início, mas não é. Os processos são encaixados. Sentimentos fornecem o elemento dos qualia incluído na subjetividade. Por sua vez, a subjetividade permite que os sentimentos sejam examinados como objetos específicos na experiência consciente. O aparente paradoxo sublinha o fato de que não podemos discutir a fisiologia da consciência sem fazer referência a sentimentos e vice-versa.


sábado, 1 de setembro de 2018

Esther Perel



Por que a traição dói tanto?
Sangrando por milhares de cortes

Pensava saber quem eu era, quem era ele: e de repente, não nos reconheço mais nem a mim nem a ele. [...] Minha vida, atrás de mim, desmoronou, como nesses terremotos em que a terra devora a si mesma: ela se esboroa às nossas costas à medida que fugimos. Não há mais retorno.
Simone de Beauvoir, A mulher desiludida.

O adultério sempre doeu. Mas, para os acólitos do amor moderno, parece doer mais do que nunca. Na verdade, o turbilhão de emoções desencadeado na esteira de um caso é tão avassalador que muitos psicólogos contemporâneos fazem empréstimos da área do trauma para explicar os sintomas: a ruminação obsessiva, a hipervigilância, o torpor e a dissociação, acesso de fúria inexplicáveis e pânico descontrolado.

As emoções não se distribuem perfeitamente em um fluxograma de adequação. Na verdade, muitos declaram ir e voltar em uma rápida sucessão de emoções contraditórias. “Eu te amo! Te odeio! Me abraça! Não encosta em mim! Pega suas porcarias e cai fora! Não me abandona! Canalha! Você ainda me ama? Vai se foder! Vem me foder!” Esse bombardeio de reações é normal e o provável é que dure um tempo.

A revelação é um momento fundamental na história de um caso e de um casamento. O choque da descoberta estimula o cérebro reptiliano, desencadeado uma reação primitiva: lutar, fugir ou gelar. Algumas pessoas ficam paradas, atônitas, outras desaparecem em um piscar de olhos – na esperança de escapar do cataclismo e retomar a sensação de controle sobre a própria vida. Quando o sistema límbico é acionado, a sobrevivência a curto prazo supera as decisões bem pensadas. Nesses momentos, é muito comum que seus impulsos, apesar de terem como objetivo a proteção, possam em um instante destruir anos de capital conjugal positivo.

Fala tanto ao isolamento do matrimônio moderno quanto ao estigma da infidelidade o fato de que muitas vezes o terapeuta é a única pessoa que sabe o que está acontecendo nessa primeira etapa – ele passa ser a base estável que escora o desmoronamento de ambos.
Há tantas peças pendentes – duas pessoas brigando com o fato de que andaram vivendo em realidades diferentes e só uma delas sabia disso.

Nesse contexto de crise, alguns casais costumam ter algumas das conversas mais profundas e francas, adentrando à madrugada. A história deles é desnudada, expectativas frustradas, raiva, amor e tudo o que há entre um ponto e outro. Eles se escutam. Nesse momento crítico, choram, discutem e fazem amor – muito. (É estranho como o medo da perda consegue reavivar o desejo.) Estão de novo, frente a frente – assim como ficamos logo que nos apaixonamos, antes de nos acomodarmos na posição lado a lado do cotidiano de um casal.

O casamento se tornou um castelo mítico, projetado para ser tudo o que poderíamos querer. Os casos o levam ao desmoronamento, nos deixando com a sensação de que não temos onde nos segurar. Talvez isso nos ajude em parte a explicar por que a infidelidade moderna é mais que dolorosa. É traumática.

A infidelidade é um ataque direto a uma de nossas estruturas psíquicas mais importantes: nossa memória do passado. Ela não apenas sequestra as esperanças e planos de um casal, mas também põe um ponto de interrogação na história que tiveram. Se não podemos olhar para trás com nenhuma certeza e não podemos saber o que vai acontecer amanhã, o que nos resta? O parceiro traído fica rigidamente empacado no presente, esmagado pela sucessão inexorável de fatos perturbadores acerca do caso.

Estamos dispostos a admitir que o futuro é imprevisível, mas esperamos que o passado seja confiável. Traídos pelo amado, sofremos a perda de uma narrativa coerente – a “estrutura interna que nos ajuda a prever e regular atos e emoções futuros [criando] um senso de identidade estável”, conforme a definição da psiquiatra Anna Fels: “talvez roubar de alguém a sua história seja a maior das traições”.

No ímpeto obsessivo de erradicar todas as facetas de um caso mora a necessidade existencial de costurar de novo a tapeçaria da vida. Somos criaturas produtoras de sentido e nos fiamos na coerência. As interrogações, os flashbacks, as ruminações circulares e a hipervigilância são manifestações de uma narrativa de vida dispersa tentando se reagrupar com as peças encaixadas. [...] As pessoas reveem constantemente a vida de que se recordam em um lado e a versão recém-descoberta no outro. Um senso de alienação as invade. Não é só do companheiro mentiroso que elas se sentem distantes, mas também de si mesmas.

A infidelidade não é apenas uma perda de amor: é uma perda de identidade. [...] Quando o amor se torna plural, o feitiço da unidade é rompido. Para certas pessoas, essa dissolução ultrapassa o que o casamento é capaz de suportar.

Do ponto de vista histórico, a maioria das pessoas sempre ancorou sua autoestima na obediência aos valores e expectativas da religião e da hierarquia familiar. Mas, na ausência de instituições antigas, cada um é incumbido de criar e manter a própria identidade, e o fardo individualmente nunca foi tão pesado. Por isso estamos sempre negociando nossa autoestima. A socióloga Eva Illouz destaca astutamente que “o único lugar onde você espera parar com essa avaliação é no amor. No amor você se torna o vencedor do concurso, o primeiro e o único.” Não surpreende que infidelidade nos atire em um fosso de insegurança e confusão existencial.

E a crise de identidade não está reservada somente ao parceiro traído. Quando o véu de um segredo se levanta, o choque não é apenas de quem descobriu o caso, mas também de que o teve. Observando a própria conduta através dos olhos recém-abertos do prejudicado, o protagonista do caso encara uma autoimagem quase irreconhecível. [...] Ele tem de considerar a discrepância entre sua autoimagem e seus atos. [...] Sua política identitária gerou um ponto cego. Só agora, sob a luz forte dos copiosos indícios, ele percebe como forçou a barra nas racionalizações.  


Fotografia: Nan Goldin