quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Antônio Damásio




A estranha ordem das coisas

Observando a consciência
O estado consciente da mente tem várias características importantes. É acordado, em vez de adormecido. É alerta e concentrado, em vez de sonolento, confuso ou distraído. É orientado para o momento e o lugar. As imagens da mente – sons, imagens visuais, sentimentos, etc. – são formadas de modo apropriado, exibidas com clareza e examináveis. Não o seriam se você estivesse sob a ação de moléculas “psicoativas”, como o álcool e drogas psicodélicas. No teatro de sua mente (o seu teatro cartesiano, por que não?), a cortina está aberta, os atores no palco, falando e movendo-se, as luzes acesas, os efeitos sonoros ligados e – eis a parte crucial da montagem – há uma plateia: VOCÊ. Não preciso que você veja a si mesmo; você simplesmente percebe ou sente que, defronte ao que se passa no palco, está sentado um VOCÊ, o sujeito-plateia do espetáculo, habitando um espaço de frente para a indelével quarta parede do palco. Sinto dizer, mas coisas ainda mais esquisitas aguardam, pois, às vezes, você pode até sentir que outra parte de você está assistindo a VOCÊ enquanto você assiste ao espetáculo.

A essa altura, alguns leitores devem achar que estou caindo em todo tipo de armadilha ao sugerir essa torrente de metáforas, dizendo que existe um local real no cérebro que poderia fazer as vezes de teatro e ser um foro para a experiência mental. Fiquem tranquilos, pois não é nada disso. E também não penso que existe um minúsculo eu ou você dentro dos respectivos cérebros, passando pela experiência. Não há homúnculo, nem a regressão infinita da lenda filosófica. O fato inegável, porém, é que tudo isso acontece como se existisse um teatro ou uma enorme tela de cinema, e como se existisse um eu ou um você na plateia. É perfeitamente aceitável chamar isso de ilusão, desde que reconheçamos que existem firmes processos biológicos por trás disso e que podemos usá-los para esboçar uma explicação para o fenômeno. Não podemos meramente desconsiderá-la, como se ilusões não tivessem importância. Nosso organismo, especificamente nosso sistema nervoso e o corpo que interagem com ele, não requer teatros ou expectadores de verdade. Serve-se de outros truques da parceria corpo-cérebro para produzir os mesmos resultados.

O que mais você observa como sujeito da sua mente consciente? Talvez o fato de ela não ser um monólito, por exemplo. Ela é composta. Possui partes – bem integradas, por sinal, tanto é que algumas depende de outras, mas ainda assim são partes. Algumas podem destacar-se mais do que outras, dependendo de como você faz a observação. A parte da sua mente consciente que se destaca mais e tende a dominar os procedimentos está relacionada a imagens de muitos tipos sensitivos: visuais, auditivas, táteis, gustativas e olfatórias. A maioria dessas imagens corresponde a objetos e eventos do mundo à sua volta. São mais ou menos integradas em conjuntos, e sua respectiva abundância tem relação com as atividades que ocupam você no momento. Se estiver ouvindo música, provavelmente dominarão imagens sonoras. Se estiver almoçando, imagens gustativas e olfatórias serão especialmente destacadas. Algumas das imagens formam narrativas, ou partes de narrativas. Entremeadas às imagens relacionadas à percepção corrente, pode haver imagens do passado sendo reconstruídas, convocadas no momento porque são pertinentes aos procedimentos correntes. Elas são partes de memórias de objetos, ações ou eventos, embutidas em narrativas antigas ou armazenadas como itens isolados. Sua mente consciente também inclui esquemas que ligam imagens, ou abstrações ensejadas por elas. Dependendo do estilo mental do indivíduo, ele pode perceber esses esquemas e abstrações com mais ou menos clareza, e com isso quero dizer, por exemplo, que ele pode construir, como em um espelho, e de maneira confusa, imagens secundárias de movimentos de coisas no espaço, ou relações espaciais entre objetos.

Símbolos passam por esse superfilme no cérebro, e alguns deles compõe uma trilha verbal que traduz objetos e ações em palavras e sentenças. Para a maioria dos mortais, a trilha verbal é em grande parte auditiva e não precisa ser totalmente abrangente – nem tudo é traduzido, a nossa mente não gera legendas para cada linha do diálogo ou descrições para cada cena. É uma trilha verbal para a demanda do momento, que traduz imagens vindas não só de fora, mas também, necessariamente, do interior, como já vimos.

A presença dessa trila verbal é uma das justificativas remanescentes, e agora incontestável, para uma certa excepcionalidade humana. Os seres não humanos, por mais respeitáveis que sejam, não traduzem suas imagens em palavras, mesmo quando suas mentes fazem uma porção de coisas engenhosas que a nossa pode ou não fazer.

A trilha verbal é corresponsável pela característica narradora da mente humana e pode muito bem ser, para a maioria de nós, sua principal organizadora. De modos não verbais, quase cinemáticos, porém sem palavras, contamos incessantemente histórias a nós mesmos, em particular, e a outros. Chegamos até a novos significados, superiores aos dos componentes separados da história, em virtude de tanta narração.

E quanto aos outros componentes da mente consciente? Ora, eles são imagens do próprio organismo. Um conjunto é composto de imagens do mundo interno antigo, o mundo da química e das vísceras, que sustenta os sentimentos, as imagens dotadas de valência que são tão distintivas em qualquer mente. Os sentimentos, que se originam no estado homeostático básico e em tantas respostas emotivas geradas pelas próprias imagens do mundo externo, são grandes contribuintes da nossa mente consciente. Fornecem o elemento do qualia que é parte das discussões tradicionais sobre o problema da consciência. Finalmente, existem imagens do mundo interno novo, o mundo da estrutura musculoesquelética e seus portais sensitivos. As imagens da estrutura esquelética formam um fantasma do corpo no qual todas as imagens podem ser situadas e afixadas. O resultado de todos esses processos imagiadores coordenados não é simplesmente uma grande peça, sinfonia ou filme. É um espetáculo multimídia épico.

Quantos desses componentes da mente dominam nossa vida mental, isto é, comandam a atenção, depende de numerosos fatores: idade, temperamento, cultura, ocasião, estilo mental. Mas todos nós tendemos a dar mais ou menos rédeas aos aspectos do mundo externo ou ao mundo do afeto.

Em circunstâncias normais, a intensidade da função subjetividade varia, assim como varia o grau da integração de imagens. Quando mergulhamos arrebatados em uma narrativa, ou mesmo quando a criamos de uma forma diferente, a função subjetividade pode ser extremamente sutil. Ela ainda está lá, prontamente disponível, presente para assumir de imediato seu papel central.

Quando nos absorvemos no que está acontecendo com os personagens de um filme, por exemplo, não necessariamente estamos pensando em nós mesmos e relacionando nosso prazer com a presença do sujeito. Para que alocar esforço adicional de processamento ao “eu”? A presença estável de um “eu” de referência já basta. No entanto, repare que se, em dado momento, uma palavra ou acontecimento no filme associa-se à sua experiência passada específica e provoca uma reação – um pensamento, uma resposta emotiva e um sentimento específico –, nosso “sujeito” ganha destaque; momentaneamente, coexperienciamos o material visto na tela e a nossa própria presença, agora mais proeminente na mente consciente. Ainda é mais provável que isso ocorra quando temos o total controle do tempo necessário para adquirir o material. É isso que acontece quando lemos um romance ou até um texto de não ficção absorvente. Podemos dar o ritmo que quisermos à aquisição e tradução mental. Algo que não ocorre na experiência de um filme, a menos que abandonemos nossa postura de espectador e nos distraiamos do que a tela mostra. A experiência clássica de um filme, como nos casos da música e da realidade, impõe seu tempo de aquisição. Se quiser ser livre de verdade, escolha a literatura.

Finalmente, preciso salientar que as imagens do interior cumprem um duplo dever. De um lado, elas contribuem para o show multimídia da consciência: podem ser observadas como parte do espetáculo da consciência; de outro, para a construção de sentimentos, e com isso, ajudam na geração da própria subjetividade, a propriedade da consciência que nos permite ser espectadores. Isso pode parecer confuso, e até paradoxal de início, mas não é. Os processos são encaixados. Sentimentos fornecem o elemento dos qualia incluído na subjetividade. Por sua vez, a subjetividade permite que os sentimentos sejam examinados como objetos específicos na experiência consciente. O aparente paradoxo sublinha o fato de que não podemos discutir a fisiologia da consciência sem fazer referência a sentimentos e vice-versa.


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