sábado, 21 de maio de 2011

Gyula Krúdy



O companheiro de viagem

Por essa época, eu completei quarenta anos, e às vezes passava dias muito infelizes; ao abrir os olhos de manhã, temia alguma catástofre; a noite era cheia de maus presságios; pensava a toda hora que já não viveria muito...
            (Assim começou sua narrativa o meu companheiro de viagem, de quem eu não sabia mais do que o costumeiro sobre aqueles com quem passamos um longo dia ou uma noite aparentemente interminável num barco a vapor ou num trem. Há muito perdi a vontade de fazer novos conhecidos, porém meu companheiro simpático e calmo, de olhos tristes, cabelos grisalhos, parecia distinto e simples, e não imaginei que pudesse ameaçar meu descanso durante a noite. Viajávamos à luz da lua, as árvores, como saias enfileiradas, nos acompanhavam, as raposas, invisíveis que, como num enigma, desapareciam para sempre ante o olhar dos caçadores, latiam nos campos claros, os gansos selvagens, alçavam voo, içando um tom prateado na distância, podia-se imaginar que na estrada cinzenta, junto aos trilhos caminhavam pessoas infelizes à sombra de copas que se moviam no ritmo de um coração lento, apareciam casebres brancos como cães deitados, um pavio ardia detrás de uma janela com recorte em folha, talvez acabassem de matar alguém ou um velho camponês agonizante balbuciasse as últimas palavras; como a tristeza, a chuva nos alcançou, e da noite escura lançava lágrimas sobre a janela impiedosa. "onde estarão aqueles que amo?", pensei tiritante, como se nunca mais fosse ouvir a fala agradável das bocas queridas, mas apenas as palavras tristes de meu companheiro de viagem, que zumbiam em torno de minha cabeça como se a morte lesse a Bíblia.)

domingo, 8 de maio de 2011

J. W. Goethe





Os sofrimentos do jovem Werther

        Que a vida humana é apenas um sonho já ocorreu a muita gente, e esta ideia também me persegue por toda parte. Quando vejo os limites que aprisionam a capacidade humana de ação e pesquisa; quando vejo que toda a atividade se esgota na satisfação de necessidades cujo único propósito é prolongar a nossa pobre existência e, também, que toda a tranquilidade em relação a certas questões não passa de resignação sonhadora, pois as paredes que nos aprisionam estão cobertas de formas coloridas e perspectivas luminosas... isso tudo, Wilhelm, me deixa estupefato. Volto-me para dentro de mim mesmo e encontro um mundo! Mais de pressentimentos e desejos que de raciocínios e forças vitais. E então, tudo flutua ante meus olhos, sorrio e sonhando penetro ainda mais neste mundo.
     As crianças querem as coisas sem saber por que as querem, nisso todos os mestres-escolas e preceptores estão de acordo; mas adultos também cambaleiam por este mundo feito crianças, sem saber de onde vêm, nem para onde vão, agindo sem objetivos determinados e deixando-se governar igualmente com biscoitos, bolo e vara de marmelo: ninguém acredita, mas me parece que não há verdade mais palpável.
          Confesso a você, pois sei o que vai me dizer a respeito, que os mais felizes são aqueles que como as crianças vivem para o presente, vestindo, despindo e levando as suas bonecas para passear, espreitando com grande respeito a gaveta onde a mamãe guarda o pão doce, e quando finalmente conseguem apanhar o que querem, devoram tudo com avidez e gritam: "Mais!"...Sim, são essas criaturas felizes. Felizes também aqueles que dão às suas ocupações fúteis, ou mesmo mesmo às suas obsessões, títulos pomposos, fazendo-as passar como proezas de gigante, realizadas para salvação e o bem estar da humanidade. - Ditosos sejam aqueles que podem ser assim. Mas quem reconhece humildemente aonde vai dar tudo isso, quem então vê com que delicadeza o ditoso burguês sabe cuidar de seu jardim, fazendo dele um paraíso, e com que perseverança o infeliz  também carrega ofegante o seu fardo, todos igualmente interessados em ver um minuto a mais a luz de sol.... sim, esse é tranquilo e forma o seu mundo a partir de si mesmo e também é feliz por ser um homem. E depois, por mais limitado que seja, mantém sempre viva no coração a doce sensação de liberdade, sabendo que pode sair deste cárcere quando quiser.

domingo, 1 de maio de 2011

Anton Tchékhov







A dama do cachorrinho

Olhando-a agora, Gugov pensou:"Quantos encontros diferentes acontecem na vida!". O passado deixara-lhe a lembrança de mulheres despreocupadas, benevolentes, alegres de amor, e que lhe eram agradecidas pela felicidade, embora muito breve, que lhes proporcionava; de outras, como, por exemplo, sua mulher, que amavam sem sinceridade, com palavras supérfluas, afetadamente, com histeria, com uma expressão que parecia significar não ser aquilo amor, nem paixão, mas algo mais significativo; e ainda de outras duas ou três, muito bonitas, frias, em cujo rosto aparecia, de repente, uma expressão rapace, um desejo insistente de tirar, arrancar da vida mais do que esta pode dar, e eram mulheres que não estavam mais na primeira juventude, birrentas, voluntariosas, pouco inteligentes; quando Gurov tornava-se indiferente a elas, sua beleza passava a despertar nele ódio e julgava ver escamas no rendado de suas roupas brancas. [...]

Em Oreanda, ficaram sentados num banco, perto da igreja, olhando em silêncio o mar. Quase não se via Ialta através da névoa matinal, nuvens brancas permaneciam imóveis, junto aos cumes das montanhas. A folhagem não se movia sobre as árvores, gritavam cigarras, e o som monótono, abafado do mar, que chegava de baixo, falava de descanso, do sono eterno que nos aguarda. Assim tumultuara lá embaixo, quando ainda não existiam Ialta, nem Oreanda; o mesmo ruído do não existirmos mais. E nessa permanência, nessa completa indiferença em relação à vida e à morte de cada um de nós, oculta-se talvez o fundamento de nossa eterna salvação, do incessante movimento da vida sobre a terra, da perfeição imorredoura. Sentado ao lado da jovem mulher, que, ao alvorecer, parecia tão bonita, acalmado e embevecido face ao ambiente encantado, face ao mar, às montanhas, às nuvens, ao amplo céu, Gurov pensava em como, na realidade, refletindo-se direito sobre tudo isto, tudo é belo neste mundo, tudo, com a exceção do que nós mesmos pensamos e fazemos, quando nos esquecemos dos objetivos elevados da existência e de nossa própria dignidade humana. [...]

Depois, encontravam-se sempre ao meio-dia, à beira-mar, almoçavam juntos, jantavam, passeavam, encantavam-se com o mar. Ela queixava-se de insônia e de que o coração lhe batia de modo alarmante, fazia-lhe sempre as mesmas perguntas, perturbada ora pelo ciúme, ora pelo temor de que ele não a estimasse o suficiente. E muitas vezes, no parque ou em algum jardinzinho público, quando não havia ninguém nas proximidades, ele a atraía de repente pra si e beijava-a apaixonado. Aquele ócio completo, aqueles beijos em pleno dia, repassados do temor de serem surpreendidos, o calor, a maresia e o perpassar incessante de gente ociosa, bem-vestida e nutrida, pareceram tê-lo transformado completamente. Dizia a Ana Sierguéievna como ela era bonita e tentadora, demonstrava uma impaciência apaixonada, não a deixava por um momento. Ela ficava frequentemente pensativa, pedindo-lhe sempre para confessar que não a estimava, não a amava um sequer, e que via nela simplesmente uma mulher vulgar. Quase sempre, quando já estavam adiantado o anoitecer, iam para fora da cidade, para Oreanda ou para a cachoeira. Os passeios eram sempre bem-sucedidos, deixando invariavelmente impressões magníficas, grandiosas.
Esperavam a vinda do marido. Mas chegou dele uma carta, em que informava estar com a vista dolorida e implorava à mulher que regressasse o quanto antes. [...]

Passaria um mês, mais ou menos, e Ana Sierguéievna, tinha a impressão, cobrir-se-ia de bruma em sua memória, e somente de raro em raro ia aparecer-lhe em sonho, com seu tocante sorriso, tal como outras lhe apareciam. No entanto decorreu mais de um mês, chegaram os rigores do inverno, mas tudo permanecia nítido na memória, como se a separação de Ana tivesse sido na véspera. E as recordações tornavam-se cada vez mais intensas. Quer lhe chegassem ao escritório, em meio à quietude do anoitecer, as vozes das crianças, que preparavam a lição, quer ouvisse um orgão ou uma canção no restaurante, o vento soprasse na lareira, tudo ressuscitava, de repente, em sua memória: o que sucedera no quebra-mar, o amanhecer com aquela névoa sobre as montanhas, o navio chegando de Feodóssia, os beijos. Passava muito tempo caminhando pelo quarto e recordando, sorria e, depois, as lembranças transformavam-se em sonhos e o passado misturava-se, em sua imaginação, ao que viria ainda. Não sonhava mais com Ana Sierguéievna, ela o acompanhava por toda parte, como uma sombra, e vigiava-o. Fechando os olhos, via-a e ela parecia mais bonita, mais jovem, mais terna do que fôra realmente; e ele próprio aparecia melhor do que tinha sido naqueles dias em Ialta. Ao anoitecer, ela o espreitava de dentro do armário de livros, da lareira, do canto da sala, ele ouvia sua respiração, o frufru carinhoso de suas roupas. Na rua, acompanhava mulheres com o olhar, procurando alguma que a ela se assemelhasse...