sexta-feira, 25 de maio de 2012

Henry Miller



O mundo do sexo

Se estivéssemos realmente acordados, ficaríamos chocados com o horror da vida cotidiana. Ninguém em posse de suas faculdades mentais seria capaz de fazer as coisas que exigem de nós a todo momento do dia. Somos todos vítimas, quer no topo, como na base, ou no meio. Não há escape, nem imunidade. [...]

De vez em quando, no longo curso da história humana, um indivíduo conseguiu romper as amarras e seguir sua maneira de vida singular. Mas que espetáculo raro! [...] Ainda mais trágico, mais irônico, é o exemplo dos imitadores, que nunca tentaram levar suas próprias vidas, mas, igual a escravos, copiaram os donos. Por mais claros que os poucos grandes exemplos tenham sido, até os espíritos mais audazes deixaram de entender. Seguir, não liderar, esta é a maldição do homem. [...]

Não ir até o fundo, este é o erro fatal do homem. Como diz Jean Guéhenno: A verdadeira traição é seguir o mundo do jeito como ele anda e empregar o espírito para justificá-lo. 

Somente quando fixamos nosso olhar nestas figuras vulcânicas podemos começar a estimar a pressão das forças aparentadas à morte que nos detêm em suas garras. Só então nos damos conta do que é necessário de coragem e imaginação, de ousadia e humildade, para cortar a trama estranguladora de desespero e derrota que nos envolve.  


Schopenhauer



Sobre o ofício de escritor

Obscuridade e indistinção na expressão é, em toda parte e sempre, um sinal muito grave. Pois, de cem casos, em noventa e nove elas derivam da falta de clareza do pensamento, que por sua vez procede quase sempre de sua desproporção original, da sua inconsistência e, por tanto, de sua inexatidão. Quando um pensamento correto eleva-se à mente sua meta é alcançar sua expressão adequada. O que um homem é capaz de pensar também pode ser expresso sempre em palavras claras, compreensíveis e inequívocas. [...]

Nua, a verdade é belíssima, e a impressão que causa é tanto mais profunda quanto mais simples é sua expressão; em parte porque, nesse caso, ela ocupa sem dificuldades toda a alma do ouvinte, que não é distraído por nenhum pensamento secundário; em parte, porque ele sente que não foi corrompido ou iludido por nenhum artifício retórico, e que o efeito inteiro advém do assunto em si. [...]

A ausência de espírito assume todas as formas para se esconder: encobre-se com o estilo empolado, com o bombástico, com o tom de superioridade e de fidalguia e com centenas de outras formas; somente pela ingenuidade  não se deixa atrair, pois, nesse caso, ficaria imediatamente despida e não poderia oferecer ao mercado nada além de uma mera simploriedade. Mesmo à boa cabeça não é permitido ser ingênuo, já que pareceria seca e magra. Eis a razão de a ingenuidade continuar a ser a veste de honra do gênio, assim como a nudez é a da beleza.


Rainer Maria Rilke



Cartas

O destino gosta de inventar desenhos e figuras. A dificuldade dele reside no complicado. A vida mesma, porém, é difícil pela simplicidade. Tem apenas algumas coisas de um tamanho que nos não é adequado. O santo, rejeitando o destino, escolhe estas coisas, em face de Deus. Mas que a mulher, conforme à sua natureza, tenha de fazer a mesma escolha em relação ao homem, é o que evoca a fatalidade de todas as relações de amor: resoluta e sem destino como uma eterna, ergue-se ela ao lado dele, dele que se transforma. Sempre a amante ultrapassa o amado, porque a vida é maior do que o destino. O dom de si mesma quer ser desmedido: é esta a sua ventura. A dor inominada do seu amor, porém, foi sempre esta: que se exija dela que limite este dom de si mesma.


quinta-feira, 24 de maio de 2012

Jón Bong-gón




Lirismo

Chovia
Até o vento preso na árvore
se dilacerava encharcado

Agarrado ao meu braço - você
Chovia também nessa ruela
onde caía a noite

E na escuridão que se intumescia de chuva
duas mãos envolveram-me o rosto
a perguntar

Na voz mais suave
Na voz mais quente

terça-feira, 22 de maio de 2012

Henry Miller



O mundo do sexo

Hoje parecemos movidos quase exclusivamente pelo medo. Tememos até aquilo que é bom, que é saudável, que é alegre. E o que é um herói? Em princípio, alguém que conquistou seus medos. Podemos ser um herói em qualquer domínio; nunca deixamos de o reconhecer quando ele aparece. Sua virtude singular é que ele se unificou com a vida, se unificou consigo mesmo. Tendo deixado de duvidar e questionar, ele acelera o fluxo e o ritmo da vida. O covarde, par contre, procura obstruí-los. Não obstrui nada, é claro, a não ser a si mesmo. A vida continua, quer atuemos como covardes ou heróis. A vida não tem outra disciplina a impor, se apenas percebêssemos isso, em vez de aceitar a vida sem questionar. Tudo aquilo de que fugimos, tudo aquilo que negamos, denegrimos ou desprezamos, serve para nos derrotar no final. O que prece desagradável, doloroso, maligno, pode se tornar uma fonte de beleza, alegria e força, se encarado com a mente aberta. Cada momento é uma mina de ouro para aquele que tem a visão de reconhecer isso. A vida é agora, cada momento, não importa que o mundo esteja cheio de morte. A morte só triunfa a serviço da vida.


terça-feira, 15 de maio de 2012

Vinícius de Moraes



Separação

Voltou-se e mirou-a como se fosse pela última vez, como quem repete um gesto imemorialmente irremediável. No íntimo, preferia não tê-lo feito; mas ao chegar à porta sentiu que nada poderia evitar a reincidência daquela cena tantas vezes contada na história do amor, que é história do mundo. Ela o olhava com um olhar intenso, onde existia uma incompreensão e um anelo, como a pedir-lhe, ao mesmo tempo, que não fosse e que não deixasse de ir, por isso que era tudo impossível entre eles.

Viu-a assim por um lapso, em sua beleza morena, real mas já se distanciando na penumbra ambiente que era para ele como a luz da memória. Quis emprestar tom natural ao olhar que lhe dava, mas em vão, pois sentia todo o seu ser evaporar-se em direção a ela. Mais tarde lembrar-se-ia não recordar nenhuma cor naquele instante de separação, apesar da lâmpada rosa que sabia estar acesa. Lembrar-se-ia haver-se dito que a ausência de cores é completa em todos os instantes de separação.

Seus olhares fulguraram por um instante um contra o outro, depois se acariciaram ternamente e, finalmente, se disseram que não havia nada a fazer. Disse-lhe adeus com doçura, virou-se e cerrou, de golpe, a porta sobre si mesmo numa tentativa de secionar aqueles dois mundos que eram ele e ela. Mas o brusco movimento de fechar prendera-lhe entre as folhas de madeira o espesso tecido da vida, e ele ficou retido, sem se poder mover do lugar, sentindo o pranto formar-se muito longe em seu íntimo e subir em busca de espaço, como um rio que nasce.

Fechou os olhos, tentando adiantar-se à agonia do momento, mas o fato de sabê-la ali ao lado, e dele separada por imperativos categóricos de suas vidas, não lhe dava forças para desprender-se dela. Sabia que era aquela a sua amada, por quem esperara desde sempre e que por muitos anos buscara em cada mulher, na mais terrível e dolorosa busca. Sabia, também, que o primeiro passo que desse colocaria em movimento sua máquina de viver e ele teria, mesmo como um autômato, de sair, andar, fazer coisas, distanciar-se dela cada vez mais, cada vez mais. E no entanto ali estava, a poucos passos, sua forma feminina que não era nenhuma outra forma feminina, mas a dela, a mulher amada, aquela que ele abençoara com os seus beijos e agasalhara nos instantes do amor de seus corpos. Tentou imaginá-la em sua dolorosa mudez, já envolta em seu espaço próprio, perdida em suas cogitações próprias – um ser desligado dele pelo limite existente entre todas as coisas criadas.

De súbito, sentindo que ia explodir em lágrimas, correu para a rua e pôs-se a andar sem saber para onde…

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Milan Kundera



À procura do presente perdido

Tentem reconstruir um diálogo de sua própria vida. O diálogo de uma briga ou o diálogo de um amor. As situações mais caras, as mais importantes, ficam perdidas para sempre.  O que sobra delas é seu sentido abstrato (defendi esse ponto de vista, ele um outro, fui agressivo, ele defensivo), um ou dois detalhes, mas o concreto acústico-visual da situação em toda a sua continuidade fica perdido. 

E não apenas fica perdido, mas nem ao menos ficamos espantados com essa perda. Ficamos resignados com a perda do concreto no tempo presente. Transformamos de imediato o tempo presente em sua abstração. Basta contar um episódio que vivemos a poucas horas: o diálogo se encolhe num breve resumo, o ambiente em alguns dados gerais. Isto é válido até mesmo para as lembranças mais fortes que, como um traumatismo, se impõe ao espírito: ficamos de tal modo fascinados por sua força que não nos damos conta a que ponto seu conteúdo é esquemático e pobre.

Se estudamos, discutimos, analisamos uma realidade, a analisamos tal qual ela aparece em  nosso espírito, em nossa memória. Só conhecemos a realidade do tempo passado. Não a conhecemos tal qual ela é no momento presente, no momento em que acontece, em que é. Ora, o momento presente não se parece com sua lembrança. A lembrança não é a negação do esquecimento, A lembrança é uma forma de esquecimento.

Podemos manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos. Um dia, relendo as notas, compreendemos que elas não são capazes de evocar uma só imagem concreta. E, pior ainda: que a imaginação não é capaz de socorrer nossa memória e de reconstruir o esquecido. Pois o presente, o concreto do presente, como fenômeno a ser examinado, como estrutura, é para nós um planeta desconhecido; não sabemos portanto nem como retê-lo em nossa memória nem com reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber que vivemos.