quarta-feira, 9 de maio de 2012

Milan Kundera



À procura do presente perdido

Tentem reconstruir um diálogo de sua própria vida. O diálogo de uma briga ou o diálogo de um amor. As situações mais caras, as mais importantes, ficam perdidas para sempre.  O que sobra delas é seu sentido abstrato (defendi esse ponto de vista, ele um outro, fui agressivo, ele defensivo), um ou dois detalhes, mas o concreto acústico-visual da situação em toda a sua continuidade fica perdido. 

E não apenas fica perdido, mas nem ao menos ficamos espantados com essa perda. Ficamos resignados com a perda do concreto no tempo presente. Transformamos de imediato o tempo presente em sua abstração. Basta contar um episódio que vivemos a poucas horas: o diálogo se encolhe num breve resumo, o ambiente em alguns dados gerais. Isto é válido até mesmo para as lembranças mais fortes que, como um traumatismo, se impõe ao espírito: ficamos de tal modo fascinados por sua força que não nos damos conta a que ponto seu conteúdo é esquemático e pobre.

Se estudamos, discutimos, analisamos uma realidade, a analisamos tal qual ela aparece em  nosso espírito, em nossa memória. Só conhecemos a realidade do tempo passado. Não a conhecemos tal qual ela é no momento presente, no momento em que acontece, em que é. Ora, o momento presente não se parece com sua lembrança. A lembrança não é a negação do esquecimento, A lembrança é uma forma de esquecimento.

Podemos manter assiduamente um diário e anotar todos os acontecimentos. Um dia, relendo as notas, compreendemos que elas não são capazes de evocar uma só imagem concreta. E, pior ainda: que a imaginação não é capaz de socorrer nossa memória e de reconstruir o esquecido. Pois o presente, o concreto do presente, como fenômeno a ser examinado, como estrutura, é para nós um planeta desconhecido; não sabemos portanto nem como retê-lo em nossa memória nem com reconstruí-lo pela imaginação. Morremos sem saber que vivemos.

Um comentário:

  1. Acho que não existe esse concreto do presente. O presente é sempre mais sentimento e abstração do que concretude. Nossa experiência é muito subjetiva e é por isso que se perde na memória, porque o tempo vai amenizando o peso da vivência.
    A lembrança é uma forma de esquecimento porque a distância temporal civiliza o animal interior... "Restam o homem e sua alma", como já disse Borges. Acho que é isso que faz com que a lembrança destoe tanto do momento presente.

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