quinta-feira, 10 de novembro de 2016

Edward O. Wilson




A conquista social da Terra - As origens das Artes criativas

Existem agora indícios substanciais de que o comportamento social humano surgiu geneticamente por evolução multinível. Se essa interpretação for correta, e um número crescente de biólogos e antropólogos evolutivos acredita que seja, podemos esperar um conflito constante entre componentes do comportamento favorecidos pela seleção individual e aqueles favorecidos pela seleção de grupo. A seleção no nível individual tende a criar competitividade e comportamento egoísta entre os membros do grupo - em torno de status, acasalamento e acesso aos recursos. Já a seleção entre grupos tende a criar um comportamento desprendido, expresso na maior generosidade e altruísmo, os quais por sua vez promovem uma maior coesão e aumentam a força do grupo como um todo. 

Um resultado inevitável das forças mutuamente contrabalançantes da seleção multinível é a ambiguidade permanente na mente humana individual, levando a inúmeros cenários na forma como as pessoas acasalam, amam, se associam, traem, compartilham, sacrificam, roubam, enganam, se redimem, punem, imploram e decidem. A luta endêmica ao cérebro de cada pessoa, espalhada na vasta superestrutura da evolução cultural, é o manancial das humanidades. Um Shakespeare no mundo das formigas, livre de tal guerra entre honra e traição, e acorrentado pelos comandos rígidos do instinto a um repertório minúsculo de sentimentos, seria capaz de escrever apenas um drama de triunfo e outro de tragédia. As pessoas comuns, no entanto, podem inventar uma infinidade dessas histórias e compor uma sinfonia infinita de ambivalência e estados de espírito. 

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Gilberto Gil





Lamento sertanejo

Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga, do roçado

Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado

Por ser de lá
Na certa, por isso mesmo,
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo.

https://www.youtube.com/watch?v=O6CQsOI2qMg

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Eduardo Coutinho




O fim e o princípio - Chico Moisés

Coutinho: - Chico! – Estou aqui. – Ohhh! – Apareceu alguma coisa mais de estranha? – Por quê? Viemos despedir. – Já vai? – Domingo. E... Daí pode ser que a gente não se veja. Gostei muito da conversa. – Ah! E eu tenho prazer. E tão filmando? [ri] – Como é que é? – E tão me filmando? – Porque gostamos da sua conversa. – Gostaram? – É! Se não, não voltava. – E todo tempo se vo... se achou que gostou, adonde tivé, pode me chamar que eu tou pronto também, para dizer a mesma coisa. – Que bom! Daqui um ano, quando o filme tiver pronto... – Daqui um ano? - ... a gente volta. – Ahhh! – Quê? – Eu não garanto que eu tô vivo. – Por quê? – Porque não. – Por quê? – Por eu! Porque sinto! – Pela saúde? – É! – Tem que ter fé e se tratar. – Fé?!! Fé?!! Se fosse por fé, eu já tava no caminho do céu. [silêncio] Agora desse lado é mió, né? – por que que cê diz isso? – Não. Por causa da mudança. Olha aí! Olha aí!! [ri, gargalha] – O senhor preparou uma mudança, hein? – Ah, sim!!! – O senhor podia ser ator de cinema. – Não! – O senhor mesmo que fez a mudança. Nunca vi... – Mas mesmo que eu fosse, se eu nunca trabalhei, se eu nunca fiz isso, pra que? Ora! O senhor que tá dizendo. – O senhor que mudou... que fez a mudança! – Não! Fiz a mudança por que? – Por que? – Porque eu tô cansado, sabe? – E fazer essa mudança descansa? – É... Ou fica bonito, ou feio. [ri] – Tem um perfil, agora têm outro, não é isso? – Isso! [rindo] – Um dos dois vai segurar... – Mas rapaz, será possível que você peleja para me pegar e nunca pega? E sempre eu vou continuando... sempre, na mesma linha? – Por que será? – Eu sei! Que o sabido é o senhor! – Por quê? – Porque é! [pausa] – Por quê? – Ora! Se eu fosse sabido, eu que andava... filmando e procurando as pessoas. [Coutinho ri] Errei? – Não. Mas eu vim procurar o senhor porque o senhor é sabido também... – Eu sei. Acha que eu sou sabido? – Acho. – Como? Só porque eu tô sendo filmado assim? Porque... esses homens... é o jeito. – Não. Mesmo sem filmar, se eu conversasse com o senhor, eu via que o senhor tem umas ideias interessantes, que o senhor pensava... – Que pena! Né? E o que sei e não disse? Só fiz começar. [pausa] Cê já entendeu tudo. – Entendi? – Entendeu. Quem foi o primeiro que chegou aqui? Não foi o senhor? Então? [silêncio. Chico sorri, gargalha] Mas é bom falar com a pessoa sabida! Ele fica só... só ali... e fosse... Se fosse não, é mais que investigador, locutor, sabedoria científica, o senhor é. Mas tudo é sabedoria o que tem aqui. Tudo é sabedoria! – Tudo. – E tudo inteligente. Aí pegou esse matuto véi aqui, conversando esse tipo de coisa... Não sei se eu sei. Penso que sei. Será que sei? – Boa pergunta. – É... – Certeza não tem mais... – Não. A certeza é a que eu disse: Ver com os olhos e pegar com a mão. E aqui eu tô vendo. Só não pego com a mão porque não quero tocar. Mas eu tô vendo. – Pode tocar. [ri] – Mas tu... não é Deus! [ gargalha] 

https://www.youtube.com/watch?v=dIAV_yLz_sI

segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Black Mirror




Queda livre

[Na beira da estrada] - Parece que você precisa de carona. [Repara na nota da caminhoneira: 1,4] – Na verdade, estou bem. – Tem certeza? Vamos! Eu não mordo. [Já dentro do caminhão] A garrafa azul é café. A vermelha, uísque. Pode beber. – Estou bem. Obrigada. – Aonde está indo? – O mais próximo que você puder me deixar de Port Mary. [Checa no celular o perfil dela] – Está conferindo se sou perigosa nas minhas avaliações? Uma pessoa com nota 1,4 só pode ser uma maníaca antissocial, não é? – Você parece... – Normal? –Sim. – Obrigada. Não foi nada fácil. O que houve com você? Você tem 2,8. Não tem cara de 2,8. – É temporário. Vou virar o jogo. Vou num casamento.  Sou dama de honra! – Legal! – Quer ouvir meu discurso? – Não. Como ficou com 2,8? – Fui rebaixada por gritar no aeroporto. E dobraram minhas notas negativas. – Como foi? – Péssimo. – Perguntei dos gritos. – Não sei. Eu estava brava. Olha onde eu vim parar... Mas, desde que chegue ao casamento e faça o discurso, vão ignorar o 2,8. Sou amiga da noiva. Todos lá têm nota alta, então a minha sobe logo. Quando a punição acabar, a minha pontuação vai subir muito e vai dar tudo certo. – Você é parecida comigo. Não agora. [Discreto sorriso] Eu já tive 4,6. - 4,6? – Eu vivia para isso. Me esforçava tanto... Há oito anos, Tom, o meu marido, teve câncer. Foi no pâncreas. Muito ruim. Os sintomas apareceram tarde. - Sinto muito. – Você não me conhece, então não sente muito. Só ficou esquisita porque puxei o assunto de câncer com você. Eu dava cinco estrelas para todos os médicos, todos os enfermeiros, todos os especialistas... Dava nota alta. Agradecia. O câncer estava pouco se fodendo. Continuou crescendo. Alguns meses depois, ouvimos falar de um tratamento experimental. Era muito caro e muito exclusivo. Eu fiz tudo o que pude para conseguir uma vaga para ele. O tom tinha 4,3. Deram o lugar para um cara com a nota 4,4. Então, quando ele morreu, pensei: “Que se foda!”. Passei a dizer o que queria e quando queria. Não estava nem aí. As pessoas não gostam disso. É incrível como tudo vai por água abaixo quando se age assim. No fim das contas, muitos de meus amigos não gostavam de sinceridade. Passaram a me tratar como se eu tivesse cagado na mesa do café da manhã deles. Mas foi muito bom me livrar daqueles filhos da puta. Foi como tirar sapatos apertados. Que tal tentar? – Fala sério. – Por que não? – Não posso simplesmente tirar os sapatos e sair caminhando por aí. – Não vai saber se não tentar. – É que... Bem, você tinha conquistado coisas na sua vida. Coisas boas, coisas reais. E acabou perdendo tudo. Sinto muito. Agora, você não tem mais nada a perder. Eu ainda não tenho o que perder. Ainda estou lutando para conseguir essa coisa. – E o que é essa coisa? – Sei lá... Algo que me deixe feliz? Tipo, olhar ao meu redor e pensar que estou bem de vida. Ser capaz de respirar sem me sentir... Meio que...  Enfim, falta muito para chegar lá. Até chegar lá, tenho que entrar no joguinho dos números. Todos temos. Estamos atolados nisso. Essa porra desse mundo funciona assim. Olha, talvez você não se lembre. Talvez seja velha demais para entender. Eu não quis dizer isso dessa maneira. – Não se preocupe. Não vou te dar uma nota baixa. [Pela manhã] – Querida? – Que horas são? – A partir daqui eu vou para o leste, então você vai ter que arrumar outra carona. – Onde estamos? – Uns 50 quilômetros de Port Mary. Muitos ônibus passam aqui. Você vai ficar bem. – Obrigada. – Boa sorte com o seu discurso. Botei uma coisa aí para você. – Botou? – Uma saída de emergência. – Tchau. [Após o caminhão partir, Lacie abre a mala e encontra a garrafa vermelha.]

Pierre Bourdieu




Lições da aula

Votado à morte, esse fim que não pode ser encarado como fim, o homem é um ser sem razão de ser. É a sociedade, e apenas ela, que dispensa, em diferentes graus, as justificações e as razões de existir; é ela que, produzindo os negócios ou posições que se dizem “importantes”, produz os atos e os agentes que se julgam “importantes”, para si mesmos e para os outros, personagens objetiva e subjetivamente assegurados de seu valor e assim subtraídos à indiferença e à insignificância. Existe, apesar do que diz Marx, uma filosofia da miséria que está mais próxima da desolação dos velhos marginalizados e derrisórios de Beckett do que do otimismo voluntarista tradicionalmente associado ao pensamento progressista. Miséria do homem sem Deus, dizia Pascal. Miséria do homem sem missão nem consagração social. De fato, sem chegar a dizer, como Durkheim, que “a sociedade é Deus”, eu diria: Deus não é nada mais que a sociedade. O que se espera de Deus nunca se obtém senão na sociedade, que tem o monopólio do poder de consagrar, de subtrair à fatuidade, à contingência, ao absurdo; mas – e aí está a antinomia fundamental – apenas de maneira diferencial, distintiva. Todo sagrado tem o seu profano complementar, toda distinção produz sua vulgaridade e a concorrência pela existência social conhecida e reconhecida, que subtrai à insignificância, é uma luta de morte pela vida e pela morte simbólicas. [...] O julgamento dos outros é o julgamento derradeiro; e a exclusão social, a forma concreta do inferno e da danação. É porque o homem é um Deus para o homem que o homem é também o lobo do homem.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Erving Goffman




Comportamento em Lugares Públicos

“Todas as interações sociais envolvem práticas generalizadas de manutenção da confiança mútua. (...) Aquilo que o indivíduo considera as delicadezas da conduta social são na verdade regras para orientá-lo em sua ligação e desligamento de ajuntamentos sociais; e as próprias delicadezas dão a ele o idioma para manifestar isto. Ele muitas vezes segue estas regras com muito pouca reflexão, pagando o que considera apenas um pequeno tributo à convenção. Mas se ele for pego agindo impropriamente, ou se pegar outros agindo desta forma, o constrangimento pode ser surpreendentemente profundo. [...] subjacente a isto, está a sensação de que o outro não se entregou apropriadamente ao ajuntamento, e, além do próprio ajuntamento, à ocasião social. Mais do que a qualquer família ou clube, mais do que a qualquer classe ou sexo, mais do que a qualquer nação, o indivíduo pertence aos ajuntamentos, e é melhor que ele mostre que é um membro em boa situação. A penalidade final por quebrar as regras é severa. Assim como enchemos nosso presídios com aqueles que transgridem a ordem legal, enchemos nossos sanatórios em parte com aqueles que agem inapropriadamente – o primeiro tipo de instituição é usado para proteger nossas vidas e propriedades; o segundo, para proteger nossos ajuntamentos e ocasiões”

Blaise Pascal




Pensamentos

806 

Não nos contentamos com a vida que temos em nós e em nosso próprio ser. Queremos viver na ideia dos outros uma vida imaginária e para isso fazemos esforço para aparecer. Trabalhamos constantemente para embelezar e conservar nosso ser imaginário e negligenciamos nosso ser verdadeiro. E, se possuímos quer a tranquilidade, quer a generosidade, quer a fidelidade, fazemos questão de mostrá-lo a fim de ligar essas virtudes ao nosso outro ser e as desligaríamos até de nós para as juntar ao outro. Concordaríamos em ser poltrões para adquirir a reputação de valentes. Grande marca do nada de nosso próprio ser não ficar contente com um sem o outro e trocar muitas vezes um pelo outro. Pois infame seria quem não morresse para conservar a honra. 

978

A natureza do amor-próprio e desse eu humano está em não amar senão a si e em não considerar senão a si. Mas que fará ele? Não poderá impedir que esse objeto de seu amor seja cheio de defeitos e de miséria; quer ser grande, vê-se pequeno; quer ser feliz, vê-se miserável; quer ser perfeito, vê-se cheio de imperfeições; quer ser objeto do amor e da estima dos homens e vê que seus defeitos só merecem a aversão e o desprezo deles. Esse embaraço em que se encontra produz a mais injusta e a mais criminosa paixão que se possa imaginar; pois ele concebe um ódio mortal contra essa verdade que o repreende e que o convence de seus defeitos. Desejaria aniquilá-la, e, não podendo destruí-la em si mesma, ele a destrói, tanto quanto pode, no seu conhecimento e no dos outros; quer dizer que coloca todo o cuidado em encobrir os próprios defeitos aos outros como a si mesmo, e que não pode tolerar que os façam ver ou que os vejam. [...]

Não é certo que odiamos a verdade e aqueles que no-la dizem, e que gostamos que se enganem em benefício nosso, e que queremos ser estimados como se fôssemos outros e não aquilo que realmente somos? [...]

Daí acontece que, se as pessoas têm algum interesse em ser amadas por nós, evitam fazer-nos algo que saibam nos ser desagradável; tratam-nos como queremos ser tratados: odiamos a verdade, escondem-na de nós; queremos ser bajulados, bajulam-nos; gostamos de ser enganados, enganam-nos. [...]

Assim, a vida humana não passa de uma ilusão perpétua; não se faz mais do que se entre-enganar e se entreadular. Ninguém fala de nós em nossa presença como fala em nossa ausência. A união que existe entre os homens não é baseada senão nessa mútua enganação; e poucas amizades subsistiriam se cada um soubesse o que o amigo diz dele quando não esta presente, embora fale então sinceramente e sem paixão.

O homem não é portanto senão disfarce, mentira e hipocrisia, tanto em si mesmo como para com os outros. Não quer que lhe digam a verdade. Evita dizê-la aos outros; e todas essas disposições, tão afastadas da justiça e da razão, têm uma raiz natural em seu coração.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Rainer Maria Rilke



Cartas

Sou da opinião de que o 'casamento' convencional não merece tanta ênfase quando acumulou pelo desenvolvimento convencional de sua natureza. A ninguém ocorre a ideia de exigir de um indivíduo que seja 'feliz' - mas, se alguém se casa, todos ficam muito espantados por ele não ser feliz!(E além do mais, não é nem um pouco importante ser feliz, seja como solteiro, seja como casado). Em vários aspectos, o casamento é uma simplificação das condições de vida, e a união decerto soma as forças e vontades de dois jovens, de modo que, em conjunto, eles parecem alcançar mais longe no futuro do que antes. Só que isso são meras impressões, das quais não se pode viver. Antes de tudo, o casamento é uma nova tarefa e uma nova seriedade - uma nova demanda e um desafio à força e à bondade de cada participante, e um novo grande perigo para ambos.


Pelo que sinto, não se trata de no casamento criar uma rápida união pela demolição de todas as fronteiras. Ao contrário, o bom casamento é aquele em que um designa o outro como guardião de sua solidão e lhe demonstra a maior confiança que ele tem a conceder. Uma vida conjunta de duas pessoas é uma impossibilidade e, e ela todavia quando parece existir, é uma limitação, um acordo mútuo, que priva uma parte ou ambas de sua mais plena liberdade e desenvolvimento. Mas, contanto que se reconheça que mesmo entre as mais próximas pessoas subsistem distâncias infinitas, pode se estabelecer entre elas uma coabitação maravilhosa, tão logo consigam amar a vastidão entre elas que lhes dá a possibilidade de se verem um ao outro em sua forma total e diante de um céu imenso!

Por tal motivo, isso também deve servir como critério para a rejeição ou escolha: a possibilidade de desejar velar pela solidão de outra pessoa e de estar inclinado a colocar esta mesma pessoa nos portões de nossa própria profundidade, da qual ela só tomará conhecimento graças àquilo que emerge da grande escuridão, festivamente trajado.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Anton Tchékhov



Angústia
A quem confiar minha tristeza?

" Iona sente, atrás de si, o corpo agitado e a voz trêmula do corcunda. Ouve os insultos que lhe são dirigidos, vê gente, e o sentimento de solidão começa, pouco a pouco, a deixar-lhe o peito. [...]

   Iona fica por muito tempo olhando os pândegos, que vão desaparecendo no escuro saguão. Está novamente só e, de novo, o silêncio desce sobre ele..." [...]

  Iona afasta-se alguns passos, torce o corpo e entrega-se à angústia... Considera inútil dirigir-se às pessoas. Mas, decorridos menos de cinco minutos, endireita-se, sacode a cabeça, como se houvesse sentido uma dor aguda, puxa as rédeas... Não pode mais. [...]

   - Ficou com sede? - Pergunta Iona. 
   - Com sede, sim!
   - Bem... Que lhe faça proveito... Pois é, irmão, e eu perdi um filho... Está ouvindo? Foi essa semana, no hospital... Que coisa! 
   Iona procura ver o efeito que causaram suas palavras, mas não vê nada. O jovem se cobriu até a cabeça e já está dormindo. O velho suspira e se coça... Assim como o jovem quis beber, assim ele quer falar. Vai fazer uma semana que lhe morreu o filho e ele ainda não conversou direito com alguém sobre aquilo... É preciso falar com método, lentamente...
   É preciso contar como o filho adoeceu, como padeceu, o que disse antes de morrer e como ele morreu... É preciso descrever o enterro e a ida ao hospital, para buscar a roupa do defunto. Na aldeia, ficou a filha Aníssia... É preciso falar sobre ela também... De quantas coisas mais poderia falar agora? O ouvinte deve soltar exclamações, suspirar, lamentar,,, E é ainda melhor falar com mulheres. São umas bobas, mas desandam a chorar depois de duas palavras. 
   "É bom ir ver o cavalo", pensa Iona. Sempre há tempo para dormir..."
   Veste-se e vai para a cocheira, onde está seu cavalo. Iona pensa sobre a aveia, o feno, o tempo... Estando sozinho, não pode pensar no filho... Pode-se falar sobre ele com alguém, mas pensar nele sozinho, desenhar mentalmente sua imagem, dá um medo insuportável"...
   - Está mastigando? - pergunta Iona ao cavalo, vendo seus olhos brilhantes. - Ora, mastiga, mastiga... Se não ganharmos para aveia, vamos comer feno... Sim... Já estou velho para trabalhar de cocheiro... O filho é que devia trabalhar, não eu... Era um cocheiro de verdade... Só faltou viver mais...
   Iona permanece algum tempo em silêncio e prossegue:
   - Assim é, irmão, minha eguinha... Não existe mais Kuszmá Iônitch... Foi-se para o outro mundo... Morreu assim, por nada... Agora, vamos dizer, você tem um potrinho, que é teu filho... E, de repente, vamos dizer, esse mesmo potrinho vai para o outro mundo... Dá pena, não é verdade?
   O cavalinho vai mastigando, escuta e sopra na mão do seu amo... Iona anima-se e conta-lhe tudo..."


(1886)
Tradução de Boris Schnaiderman

sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Milan Kundera



Entre nós 
Philip Roth conversa com Milan Kundera


Roth: Então esse é o ponto mais distante a que você chegou no seu pessimismo?

Kundera: Desconfio das palavras "pessimismo" e "otimismo". Um romance não afirma nada; ele busca e formula questões. Não sei se minha nação vai morrer e não sei qual dos meus personagens tem razão. Eu invento histórias, ponho uma em confronto com a outra, e dessa maneira faço perguntas. A burrice das pessoas vem de elas terem uma resposta para tudo. A sabedoria do romance vem de ele ter uma pergunta para tudo. Quando dom Quixote saiu pelo mundo afora, esse mundo se transformou num mistério diante de seus olhos. É esse o legado que o primeiro romance europeu deixou para toda a história subsequente do romance. O romancista ensina o leitor a compreender o mundo como uma pergunta. Nessa atitude há sabedoria e tolerância. Num mundo baseado em certezas sacrossantas, o romance morre. O mundo totalitário - seja ele baseado em Marx, no Islã, ou em qualquer outra coisa - é um mundo de respostas e não de perguntas. Nesse mundo o romance não tem lugar. Seja como for, creio que em todo o mundo as pessoas hoje em dia preferem julgar e não compreender, responder e não perguntar, de modo que a voz do romance é difícil de ouvir em meio a toda a tagarelice insensata das certezas humanas. 

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Milton Nascimento




San Vicente

Coração americano
Acordei de um sono estranho
Um gosto vidro e corte
Um sabor de chocolate
No corpo e na cidade
Um sabor de vida e morte
Coração americano
Um sabor de vidro e corte

A espera na fila imensa
E o corpo negro se esqueceu
Estava em San Vicente
A cidade e suas luzes
Estava em San Vicente
As mulheres e o homens
Coração americano
Um sabor de vidro e corte

As horas não se contavam
E o que era negro anoiteceu
Enquanto se esperava
Eu estava em San Vicente
Enquanto acontecia
Eu estava em San Vivente
Coração americano
Um sabor de vida e corte

https://www.youtube.com/watch?v=H0BLHm7uyO0

Retrato: Penna Prearo

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Wislawa Szymboska




Um grande número

Quatro bilhões de pessoas nesta terra,
e minha imaginação é como era.
Não se dá bem com grandes números.
Continua a comovê-la o singular.
Esvoaça no escuro como a luz da lanterna,
iluminando alguns rostos ao acaso.
enquanto o resto se perde nas trevas
na deslembrança, no desconsolo.
Mas nem Dante captaria mais.
Que dirá quando não se é.
Nem mesmo com a ajuda de todas as musas.

Non omnis moriar - uma aflição prematura.
Mas será que vivo por inteiro e será que isso basta?
Nunca bastou e muito menos agora.
Escolho excluindo porque não há outro jeito,
mas o que rejeito é mais numeroso,
mais denso, mais insistente do que nunca.
À custa de incontáveis perdas - um poeminha, um suspiro.

Ao chamado ruidoso respondo com um sussurro.
O quanto silencio, isso não direi.
Um rato ao pé da montanha materna.
A vida dura o tempo de umas marcas de garra na areia.
Meus sonhos  - nem eles são como deveriam, habitados.
Neles há mais solidão do que multidões e alarido.
Às vezes aparece por momentos alguém há muito falecido.
Move a maçaneta uma mão solitária.
Expande-se em conexão de ecos a casa vazia.
Corro da soleira até o vale
silencioso, como de ninguém, já anacrônico.

De onde vem em mim ainda este espaço - não sei.

domingo, 25 de setembro de 2016

Philip Roth





O professor do desejo

Em vez de passar o primeiro dia de aula falando sobre a lista de leituras e as diretrizes básicas do curso, gostaria de lhes dizer algumas coisas sobre mim que nunca divulguei a nenhum de meus alunos. Não há razão alguma para isso e, até que entrei na sala e me sentei, não tinha certeza de que o faria. E ainda posso mudar de ideia. Pois como justificar a circunstância de lhes revelar os fatos mais íntimos de minha vida privada? Com efeito, nos reuniremos para discutir livros por três horas todas as semanas durante os dois próximos semestres, e sei por experiência, como vocês também sabem, que em tais condições pode se criar um forte vínculo afetivo. No entanto, também sabemos que isso não me dá o direito de fazer algo que pode ser apenas um exemplo de impertinência e mau gosto. 

Como vocês já devem ter deduzido - tanto pela maneira com que me visto quanto pelo estilo dos meus comentários iniciais -, as convenções que tradicionalmente presidem a relação entre aluno e professor são mais ou menos aquelas que eu venho adotando, mesmo durante a turbulência dos anos recentes. Já me disseram que sou um dos últimos professores a me dirigir aos alunos em sala de aula como "senhor" e "senhorita", em vez de usar os primeiros nomes. E, não importa como desejem se vestir - como mecânico, mendigo, cigana de casa de chá ou ladrão de gado - eu prefiro me apresentar perante vocês para dar aula de paletó e gravata... conquanto, como os mais observadores notarão, geralmente com o mesmo paletó e a mesma gravata. E, quando comparecerem ao meu escritório para alguma consulta, as alunas verão, caso ao menos se deem ao trabalho de olhar, que durante o encontro manterei devidamente aberta a porta que liga ao corredor o aposento em que estaremos sentados lado a lado. Alguns de vocês talvez se divirtam ao me verem retirar o relógio do pulso, como fiz há pouco, e pô-lo ao lado das minhas anotações todo começo de aula. A esta altura não me lembro mais qual dos meus professores costumava acompanhar dessa forma a passagem do tempo, mas ao que parece isso me causou forte impressão, demonstrando um profissionalismo que ainda desejo associar à minha pessoa.

Apesar disso, não vou tentar esconder de vocês que sou feito de carne e osso - ou que entendo que vocês sejam. Lá  pelo final do ano, já poderão estar cansados das minhas insistências nas conexões existentes entre os romances que lerão para este curso, mesmo os mais excêntricos e rebarbativos, e o que sabem até hoje sobre a vida. Vocês descobrirão (e nem todos aprovarão) que não concordo com alguns de meus colegas que nos dizem que a literatura, em seus momentos mais sublimes e intrigantes, é, "essencialmente não referencial". Posso me apesentar diante de vocês de paletó e gravata, posso chamá-los de senhor e senhora, mas, seja como for, vou exigir que se abstenham de falar de "estrutura", "forma" e "símbolos" em minha presença. Tenho a impressão de que muitos de vocês foram suficientemente intimidados pelo terceiro ano da universidade e deveriam ter a possibilidade de se recuperar, restaurando a respeitabilidade dos interesses e e entusiamos que muito provavelmente os levaram inicialmente a ler ficção e dos quais não caberia agora se envergonhar. Como uma espécie de experimento, vocês podem até querer, ao longo do ano, tentar viver sem nenhuma terminologia aprendida nas salas de aula abrindo mão de "trama" e "personagem", juntamente com aquelas palavras grandiloquentes a que não poucos de vocês recorrem para tornar mais solenes suas observações, tais como "epifania", "persona" e, naturalmente, "existencial" aplicadas a tudo o que existe na face da terra. Sugiro isso na esperança de que, se falarem sobre Madame Bovary com as mesmas palavras que usam com o dono da mercearia ou com sua namorada, estarão criando uma relação com Flaubert e sua heroína mais íntima, mais interessante e até mesmo mais referencial. 

Na verdade, todos os romances do primeiro semestre estão relacionados, em maior ou menos grau, com a obsessividade, com o desejo erótico, porque pensei que as leituras organizadas em torno de um tema com o qual vocês têm alguma familiaridade poderia ajudá-los a situar mais ainda tais livros no domínio da experiência pessoal, desestimulando a tentação de despachá-los para aquele terreno mais controlável dos estratagemas narrativos, dos motivos metafóricos e dos arquétipos míticos. Acima de tudo, espero que, ao ler tais livros, vocês aprendam algo valioso sobre a vida, num de seus aspectos mais enigmáticos e exasperadores. Também espero aprender alguma coisa. 

Muito bem. Tendo dito isso a fim de ganhar tempo, é chegada a hora de começar a revelar o irrevelável - a história do desejo do professor. Só que não posso, ou ainda não posso, ao menos até que haja explicado a mim próprio, se não a seus pais, por que deveria até mesmo pensar em transformá-los em voyeurs, em meus juízes e confidentes, por que deveria expor meus segredos a pessoas que têm a metade da minha idade, a maioria das quais nem conheci como alunos. Por que possuir uma platéia, quando quase todos os homens e mulheres preferem guardar tais assuntos para si ou só expô-los aos seus confessores mais fidedignos, sejam eles laicos ou sacerdotais? O que faz tão necessário, ou minimamente adequado, que eu me apresente a jovens desconhecidos não sob a roupagem do professor, e sim como o primeiro texto do semestre?

Permitam-me responder com um apelo ao coração. 

Adoro ensinar literatura. Raramente sinto-me tão feliz como quando estou aqui com minhas anotações, meus textos assinalados e pessoas como vocês. A meu ver, não há nada na vida comparável a uma sala de aula. Às vezes, quando conversamos - quando, por exemplo, um de vocês com uma só frase atinge em cheio o âmago do livro que está sendo estudado -, tenho vontade de gritar: "Queridos amigos, aproveitem bem este momento!". Por quê? Porque, depois de saírem daqui, poucas vezes, se é que alguma vez, as pessoas falarão com vocês ou ouvirão vocês do modo como todos nós nos falamos e nos ouvimos aqui, nesta salinha iluminada e com tão poucos móveis. Também não é provável que vocês encontrem com facilidade outras oportunidades de falar sem constrangimento sobre o que foi mais importante para homens tão conscientes dos conflitos da vida quanto Tolstói, Mann e Flaubert. Duvido que saibam o quanto me emociona ouvi-los falar com ponderação e total seriedade sobre a solidão, doença, saudade, perda, sofrimento, ilusão, esperança, paixão, amor, terror, corrupção, calamidade e morte... e me emociono porque vocês têm dezenove, vinte anos, a maioria vinda de lares confortáveis de classe média e sem ter vivido ainda experiências muito traumáticas - mas também porque, estranha e tristemente, essa talvez seja a última ocasião em que vocês refletirão de modo sério e sustentado sobre as forças inexoráveis que em algum momento terão de enfrentar, queiram ou não. 

Será que ficou mais clara a razão pela qual considero nossa sala de aula, na verdade, o cenário mais adequado para que eu relate minhas experiências eróticas? Será que minhas palavras tornaram mais legítimas as exigências que farei com respeito ao tempo e à paciência de vocês, assim como ao custo de seus estudos universitários? Para que não paire nenhuma dúvida: uma sala de aula é, para mim, o mesmo que uma igreja para um verdadeiro crente. Algumas pessoas se ajoelham durante o serviço de domingo, outros se cobrem com filactérios todas as manhãs... e eu apareço três vezes por semana, de gravata no pescoço e relógio em cima da mesa, a fim de lecionar os grandes romances. 

Ah, meus alunos, venho surfando uma onda de grande emoção este ano. Vou falar disso também. Nesse  meio-tempo, se possível, tolerem minha sensação de plenitude. Na realidade, só desejo apresentar a vocês minhas credenciais como professor do curso de Literatura 341. Por mais indiscretas, não profissionais e repugnantes que certas partes dessas revelações possam parecer a alguns de vocês, pretendo agora, se me permitem, seguir adiante e contar francamente minha vida pregressa como ser humano. Sou devotado à ficção e asseguro que, no momento oportuno, vou lhes dizer tudo que sei sobre ela, mas de fato nada vive mais intensamente dentro de mim que minha própria vida. 

domingo, 11 de setembro de 2016

Edward O. Wilson




O novo Iluminismo 

A humanidade vive em um mundo em grande parte mítico, assolado por espíritos. Devemos isso à nossa história arcaica. Quando os nossos ancestrais remotos adquiriram pleno reconhecimento de sua mortalidade pessoal, provavelmente entre 100 mil e 75 mil anos atrás, buscaram uma explicação de quem eles eram e o sentido do mundo que cada um estava destinado a logo deixar. Devem ter indagado: para onde vão os mortos? Para o mundo dos espíritos, muitos acreditavam. E como podemos vê-los novamente? Era possível vê-los a qualquer momento por meio de sonhos, drogas, magia ou privações e torturas autoinfligidas.

Os primeiros seres humanos não tinham nenhum conhecimento da Terra além do alcance do seu território e das redes comerciais. Nada sabiam do céu além da esfera celeste na superfície interna por onde passavam o Sol, a Lua e as estrelas. Para explicar os mistérios de sua existência, acreditavam em seres superiores em muitos aspectos semelhantes a eles, os seres divinos que construíam não apenas ferramentas e abrigos, mas que haviam criado o universo inteiro. Com a evolução das sociedades de chefatura e depois dos Estados políticos, as pessoas imaginaram a existência de governantes sobrenaturais, além dos governantes terrestres a quem obedeciam. 

Os primeiros seres humanos precisavam de uma história sobre as cosias importantes que aconteciam com eles, porque a mente consciente não consegue funcionar sem histórias e explicações de seu próprio sentido. A melhor, a única forma de nossos ancestrais conseguirem explicar a própria existência, era um mito de criação. E todo o mito de criação, sem exceção, afirmava a superioridade da tribo que o inventou em relação a todas as demais tribos. Com essa suposição, todo crente religioso se considerava uma pessoa eleita. 

As religiões organizadas e seus deuses, embora concebidos na ignorância de grande parte do mundo real, infelizmente se tornaram verdades absolutas na história antiga. Como no princípio, continuam sendo em toda parte uma expressão de tribalismo pelo qual os membros estabelecem sua própria identidade e uma relação especial com o mundo sobrenatural. Seus dogmas codificam regras de conduta que os devotos podem aceitar absolutamente sem hesitação. Questionar os mitos sagrados é questionar a identidade e o valor daqueles que neles acreditam. Por isso os céticos, inclusive aqueles comprometidos com mitos diferentes mas igualmente absurdos, são tão fanaticamente malvistos. Em alguns países, podem acabar na prisão ou mortos. 

No entanto, as mesmas circunstâncias biológicas e históricas que nos levaram ao atoleiro da ignorância foram, em outros aspectos, benéficas à humanidade. As religiões organizadas presidem sobre os ritos de passagem, do nascimento à maturidade, do casamento à morte. Oferecem o melhor que uma tribo tem a oferecer: uma comunidade empenhada que oferece apoio emocional sincero, acolhe e perdoa. As crenças nos deuses ou num Deus único sacralizam as ações comunitárias, incluindo nomeação de líderes, obediência ás leis e declarações de guerra. Crenças na imortalidade na justiça divina suprema oferecem um conforto precioso e estimulam resolução e bravura em épocas difíceis. Durante milênios as religiões organizadas foram a fonte de grande parte das artes criativas. 

Por que então convém questionar abertamente os mitos e os deuses das religiões organizadas? Porque eles atentam contra a inteligência e semeiam discórdia. Porque cada uma é apenas uma versão de uma multiplicidade de cenários concorrentes que poderiam ser verdadeiros. Porque encorajam a ignorância e desviam  as pessoas do reconhecimento de problemas do mundo real, conduzindo-as muitas vezes em direções erradas para ações desastrosas. Fiéis às suas origens biológicas, encorajam intensamente o altruísmo entre seus membros, estendendo-o sistematicamente aos forasteiros, embora geralmente com o objetivo adicional de proselitismo. O compromisso com uma religião particular  é por definição um ato de fanatismo religioso. Nenhum missionário protestante jamais aconselha seu rebanho a examinar o catolicismo romano ou o islamismo como uma alternativa possivelmente superior. Ele deve, por implicação, declará-los inferiores. 

Mas é insensato pensar que as religiões organizadas poderão num futuro próximo ser extirpadas e substituídas por uma paixão racionalista pela moralidade. O mais provável é que isso aconteça gradualmente, como vem ocorrendo na Europa, impulsionado por diversas tendências atuais. A mais potência das tendências é a reconstituição científica cada vez mais detalhada da crença religiosa como um produto biológico evolutivo. Quando contrastada com os mitos de criação e seus excessos teológicos, a reconstituição é cada vez mais persuasiva para qualquer mente ainda que apenas ligeiramente aberta. Outra tendência contra o infortúnio da devoção sectária é o crescimento da internet e a globalização das instituições e seus usuários. Uma análise recente mostrou que a interligação crescente das pessoas no mundo inteiro fortalece suas atitudes cosmopolitas. Para isso, enfraquece a importância da afiliação étnica, localidade e nacionalidade como fontes de identificação. A interligação também intensifica uma segunda tendência: a homogeneização da humanidade quanto a aça e a etnia por meio do casamento misto. Inevitavelmente, isso enfraquecerá a confiança nos mitos de criação e nos dogmas sectários.   

Um bom passo inicial para a libertação da humanidade das formas opressivas do tribalismo seria o repúdio, respeitoso, das alegações daqueles no poder que se dizem porta-vozes de Deus, representantes de Deus, ou conhecedores exclusivos da vontade divina.  Entre esses fornecedores de narcisismo teológico estão os aspirantes a profetas, fundadores de cultos religiosos, pastores evangélicos eloquentes, aiatolás, imames, rabinos-chefes, chefes de yeshivas, o Dalai Lama e o papa. O mesmo vale para as ideologias políticas dogmáticas baseadas em preceitos incontestáveis, de esquerda e de direita, especialmente quando justificadas pelos dogmas das religiões organizadas. As religiões podem até conter sabedoria intuitiva digna de ser ouvida. Seus líderes podem ter boas intuições. Mas a humanidade já sofreu demais com as histórias incorretas contadas por profestas equivocados. [...]

Outro argumento em favor de um novo Iluminismo é que estamos sozinhos neste planeta com qualquer racionalidade e compreensão que consigamos reunir e, portanto, somos os únicos responsáveis por nossas ações como espécie. O planeta que conquistamos não é apenas uma parada no caminho para um mundo melhor em alguma outra dimensão. Um preceito moral com que podemos todos concordar é parar de destruir nosso local de nascimento, o único la que a humanidade jamais terá. Os indícios do aquecimento global, com a poluição industrial como causa principal, são agora esmagadores. também evidente a uma inspeção ainda que fortuita é o rápido desaparecimento de florestas tropicais, pradarias e outros habitats onde reside grande parte da diversidade da vida. Se não controlarmos as mudanças globais causadas pela destruição dos habitats, espécies invasivas, poluição, superpopulação e superexploração, metade das espécies de plantas e animais poderão estar extintas ou pelo menos  entre os "mortos vivos" - prestes a se extinguirem - no final do século. Estamos desnecessariamente matando a galinha dos ovos de ouro que herdamos dos antepassados e por isso seremos desprezados por nossos descendentes. 

A ciência não é mais um empreendimento, como a medicina, a engenharia ou a teologia. Ela é o manancial de todos os nossos conhecimentos do mundo real que podem ser testados e ajustados aos conhecimentos preexistentes. É o arsenal de tecnologias e matemática inferencial necessário para distinguir o verdadeiro do falso. Ela formula os princípios e as fórmulas que unificam todos esses conhecimentos. A ciência pertence a todos. Suas partes componentes podem ser desafiadas por qualquer um com informações suficientes para fazê-lo. Não é apenas "outro modo de conhecer", como muitas vezes alega, tornando-a coigual á fé religiosa. O conflito entre o conhecimento científico e os ensinamentos das religiões organizadas é irreconciliável. O abismo continuará aumentando e perpetuando os problemas, enquanto os líderes religiosos continuarem fazendo alegações insustentáveis sobre as causas sobrenaturais da realidade. 

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Carlo Rovelli




Sete breves lições de física

Que lugar temos nós, seres humanos que percebem, decidem, riem e choram, neste grande afresco do mundo que a física contemporânea oferece? Se o mundo é um pulular de efêmeros quanta de espaço e matéria, um imenso jogo de encaixe de espaço e partículas elementares, o que somos nós? Também somos feitos de partículas? Mas, então, de onde vem aquela sensação de existir singularmente  e em primeira pessoa, que cada um de nós experimenta? Então o que são nossos valores, os nossos sonhos, as nossas emoções, o nosso próprio saber? O que somos nós, neste mundo imenso e rutilante? [...]

É uma pergunta difícil. No grande quadro da ciência contemporânea, há muitas coisas que não compreendemos, e uma das que menos compreendemos somos nós mesmos. Mas evitar essa pergunta, e fingir que não é nada, significaria, penso, desprezar algo essencial. [...]

"Nós", seres humanos, somos antes de mais nada o sujeito que observa este mundo, e autores, coletivamente, desta fotografia da realidade que tentei compor. [...] Mas, do mundo que vemos, somos também parte integrante, não somos observadores externos. Estamos situados nele. Nossa perspectiva se origina de dentro. Somos feitos dos mesmos átomos e dos mesmos sinais de luz trocados entre os pinheiros nas montanhas e as estrelas nas galáxias. 

À medida que nosso conhecimento cresceu, fomos aprendendo cada vez mais esta noção de sermos partes, e pequena parte, do universo. Pensávamos estar sobre o planeta no centro do cosmo, e não estamos. Pensávamos ser uma raça à parte, na família dos animais e das plantas, e descobrimos que somos descendentes dos mesmos genitores de que descende qualquer outro ser vivo ao nosso redor. Temos tataravós em comum com as borboletas e com os pinheiros. Somos como um filho único que cresce e aprende que o mundo não gira somente ao seu redor, como ele pensava quando era pequeno. Ele deve aceitar ser um entre os outros. Ao nos espelharmos nos outros e nas outras coisas, aprendemos quem somos. [...] No mar imenso de galáxias e de estrelas, somos um infinitesimal cantinho perdido; entre os infinitos arabescos de formas que compõe o real, não somos mais do que um rabisco entre muitos outros. 

As imagens que construímos do universo vivem dentro de nós, no espaço de nossos pensamentos. Entre essas imagens - entre aquilo que conseguimos reconstruir e compreender com nossos meios limitados - e a realidade da qual somos parte existem filtros incontáveis: nossa ignorância, a limitação dos nossos sentidos e da nossa inteligência, as próprias condições que nossa natureza de sujeitos, e sujeitos particulares, submete à experiência. [...] Não somente aprendemos, mas aprendemos também a mudar gradualmente nossa estrutura conceitual, e adaptá-la àquilo que aprendemos. E aquilo que aprendemos a conhecer, embora devagar e tateando, é o mundo real de que somos parte. 

Quando falamos do Big Bang ou da estrutura do espaço-tempo, o que estamos fazendo não é a continuação dos relatos livres  e fantásticos que os homens contavam em torno da fogueira nas noites de centenas de milênios. É a continuação de outra coisa: do olhar daqueles mesmos homens, às primeiras luzes da alvorada, buscando em meio à poeira da savana os rastros de um antílope - observar os detalhes da realidade para deduzir deles aquilo que não vemos diretamente, mas cujos indícios podemos seguir. Conscientes de que podemos nos enganar e, portanto, dispostos a cada instante a mudar de ideia se aparecer um novo indício, mas sabendo também que, se formos competentes, compreenderemos corretamente, e descobriremos. A ciência é isso. 

Tudo o que é especificamente humano não representa nossa separação da natureza, é a nossa natureza. É uma forma que a natureza assumiu aqui em nosso planeta, no jogo infinito de suas combinações, da influência recíproca e da troca de correlações e informação entre suas partes.  [...] A vida na Terra é apenas uma amostra do que pode suceder no universo. Nossa alma não é senão outra amostra. 

Somos uma espécie curiosa, a única que restou de um grupo de espécies (o "gênero Homo") formado por pelo menos uma dúzia de espécies curiosas. As outras espécies do grupo já se extinguiram; algumas, como os neandertais, há pouco: não faz nem 30 mil anos. É um grupo de espécies que evoluiu na África, afim aos chimpanzés hierárquicos e litigiosos, e mais ainda aos bonobos, os pequenos chimpanzés pacíficos, alegremente promíscuos e igualitários. Um grupo de espécies que saiu repetidamente da África para explorar novos mundos e que chegou longe, até a Patagônia, até a Lua. Não somos curiosos contra a natureza: somos curiosos por natureza. 

Cem mil anos atrás, nossa espécie partiu da África, talvez impelida justamente por essa curiosidade, aprendendo a olhar  cada vez mais à frente. Sobrevoando a África à noite, eu me perguntei se um daqueles nossos longínquos antepassados, erguendo-se e pondo-se a caminho rumo aos espaços abertos no Norte, e olhando o céu, poderia ter imaginado um distante neto seu voando naquele céu, interrogando-se sobre a natureza das coisas, anda impelido pela sua mesma curiosidade. 

Penso que nossa espécie não durará muito. Ela não parece ter a resistência das tartarugas, que continuam existindo semelhantes a si mesmas por centenas de milhões de anos, centenas de vezes mais do que nós temos existido. Pertencemos a um tipo de espécie de vida breve. Nossos primos já estão todos extintos. E nós causamos danos. As mudanças climáticas e ambientais que deflagramos foram brutais, e dificilmente nos pouparão.[...] Talvez sejamos sobre a Terra a única espécie consciente da inevitabilidade de nossa morte individual: temo que em breve nos tornaremos também a espécie que conscientemente verá chegar o próprio fim, ou pelo menos o fim da própria civilização. 

Para nós, justamente por sua natureza efêmera, a vida é preciosa. Porque, como escreve Tito Lucrécio, "nosso apetite de vida é voraz, nossa sede de vida, insaciável".  

A natureza é nossa casa e na natureza estamos em casa. Este mundo estranho, diversificado e assombroso que exploramos, onde o espaço se debulha, o tempo não existe e as coisas podem não estar em lugar algum, não é algo que nos afasta de nós: é somente aquilo que nossa natural curiosidade nos mostra da nossa casa. Da trama da qual somos feitos nós mesmos. Somos feitos da mesma poeira de estrelas de que são feitas as coisas, e quer quando estamos imersos na dor, quer quando rimos e a alegria resplandece, não fazemos mais do que ser aquilo que não podemos deixar de ser: uma parte do nosso mundo. 

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Ian McEwan




Conversas entre escritores

Cheguei ao ponto que, agora, quando alguém diz que a vida se move em torno de um único princípio organizador, eu perco o interesse. Não sinto que a vida se estruture sobre nenhum princípio único. É um impulso religioso se agarrar somente a uma coisa, a uma explicação.

Aspectos do "romance inglês" a serem evitados: diálogos educados e reveladores, narrativa linear e estável, investigação ética levemente irônica, quantidades excessivas de mobiliário. 

Sempre achei que a crueldade é uma falha da imaginação. [...] Há algo que liga a imaginação e a moral. 

Um dos grandes valores da ficção é exatamente a possibilidade de entrar na mente de outras pessoas. [...] Com o romance nós conseguimos desenvolver essa forma que é muito elástica e mutável, e permite uma verdadeira investigação humana. É um olhar sem amarras voltado para nossa própria imagem, de um jeito que a ciência não consegue fazer; a religião não é confiável e a metafísica, de um ponto de vista intelectual, é muito repelente em sua superfície - o romance é nossa melhor máquina, assim como sempre foi. 

Estou interessado em como representar - claro que de uma forma muito estilizada - qual é a sensação de estar pensando. Ou como é estar consciente, ou, fatalmente, apenas semi-consciente. E como é difícil ver tudo que está acontecendo e entender tudo de uma vez só, e o quanto nossas lembranças podem influenciar o que nós aceitamos como realidade - o quanto a percepção é distorcida pela vontade. Isso é algo que acho muito interessante. As formas como nos convencemos, como nos persuadimos a confirmar uma noção pessoal ou uma posição intelectual. É por isso que gosto de psicologia evolutiva, ela fala muito sobre auto-convencimento... Na minha ficção, venho tentando indicar minha noção do quanto somos falhos - de um modo muito interessante - ao nos representarmos e "o que sabemos" um do outro

Tenho a impressão de que simpatizo com a visão segundo a qual o real - o que existe de fato - é tão rico e exigente que torna o realismo mágico uma fuga tediosa de qualquer responsabilidade artística. [...] O real, o que existe de fato, impõe muitas exigências para o escritor: como inventá-lo, como confrontá-lo ou passá-lo pelo filtro de sua própria consciência. Por isso nunca fui um grande admirador de Márquez. Gostei de O Tambor,  mas nunca da forma como gosto de Kundera, por exemplo. E me parece que o realismo mágico se tornou algo como o estilo internacional nas mobílias, uma espécie de língua franca que realmente desafia a noção central do romance, que é o fato do romance ser local. Ele é regional, é um processo que funciona às avessas e, de alguma forma, esses estilos internacionais parecem operar de modo oposto. Eles são muito parecidos uns com os outros. [...] É jogar tênis sem rede. Não tem nenhuma graça. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Marcel Proust




Acho que, de repente, a vida nos pareceria maravilhosa se estivéssemos ameaçados de morte como o senhor diz. Pense em quantos projetos, viagens, casos de amor e estudos a vida oculta de nós, tornando-os invisíveis  por causa da nossa preguiça, que, certa de um o futuro, adia-os incessantemente. 
Mas, sob a ameaça da impossibilidade eterna, tudo isso voltaria a ser lindo! Ah! Se o cataclismo não acontecer desta vez, não deixemos de visitar as novas galerias do Louvre, de nos jogar aos pés da Srta. X, de fazer uma viagem à Índia.
O cataclismo não acontece e deixamos de fazer tudo isso porque voltamos ao âmago da nossa vida normal, no qual a negligência arrefece desejo. Mas não deveríamos precisar do cataclismo para amar a vida hoje. Seria suficiente pensar que somos humanos e que a morte pode acontecer esta noite. [...]

Na verdade, todo leitor, quando está lendo, é leitor do seu próprio eu. O trabalho do escritor é simplesmente uma espécie de instrumento ótico oferecido ao leitor para lhe permitir distinguir o que, sem o livro, ele talvez nunca fosse vivenciar em si mesmo. E o reconhecimento em si próprio, por parte do leitor, daquilo que o livro diz é a prova da sua veracidade.[...]

As pessoas de eras passadas parecem infinitamente distantes de nós. Achamos que não temos motivo para lhes atribuir qualquer intenção subjacente além da que elas expressam formalmente; ficamos surpresos ao nos depararmos com um herói homérico cuja emoção é mais ou menos semelhante à que sentirmos hoje (...) é como se imaginássemos que o poeta épico (...) está tão distante de nós quanto um animal em um zoológico. [...]

Ao lermos a nova obra-prima de um homem brilhante, ficamos felizes em descobrir reflexões nossas que havíamos menosprezado, alegrias e tristezas que havíamos reprimido, todo um mundo de sentimentos que havíamos desdenhado e cujo valor nos é repentinamente ensinado por aquele livro. 

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Jean Follain 1903-1971





Face the animal

It`s not always easy
to face the animal
even if it looks at you
without fear or hate
it does so fixedly
and seems to disdain
the subtle secret it carries
it seems better to fell
the obvionousness of the world
that noisily day and night
drills and dameges
the silence of the soul.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Edward O. Wilson




O novo Iluminismo

De onde viemos? O que somos? Para onde vamos? 

Os seres humanos são atores em uma história. Somos a ponta de crescimento de um épico inacabado. A resposta para as perguntas existenciais deve residir na história, e é essa a abordagem adotada pelas humanidades. Mas a história convencional por si mesma está truncada, tanto na sua linha do tempo como na percepção do organismo humano. A história não faz sentido sem a pré-história, e a pré-história não faz sentido sem a biologia. 

A humanidade é uma espécie biológica em um mundo biológico. Em cada função de nosso corpo e mente e em cada nível, somos perfeitamente adaptados para viver neste planeta particular. Pertencemos à Biosfera onde nascemos. Embora exaltados de várias formas, permanecemos uma espécie animal da fauna global. Nossas vidas são limitadas pelas duas leis da biologia: todas as entidades e processos da vida obedecem às leis da física e da química, e todas as entidades e processos da vida surgiram através da evolução por seleção natural.

Quanto mais aprendemos sobre a nossa existência física, mais aparente se torna que, mesmo as formas mais complexas do comportamento humano, são, em última análise, biológicas. Elas exibem as especializações desenvolvidas ao longo de milhões de anos por nossos ancestrais primatas. A marca indelével da evolução está clara na forma idiossincrásica como os canais sensoriais da humanidade limitam a nossa percepção natural da realidade. Ela se confirma na maneira como programas hereditariamente preparados e contrapreparados guiam o desenvolvimento da mente.

Mesmo assim, não podemos escapar da questão do livre-arbítrio, que, segundo a argumentação de alguns filósofos, ainda nos distingue. É um produto do centro da tomada de decisões subconsciente do cérebro que dá ao córtex cerebral a ilusão de ação independente. Quanto mais os processos físicos da consciência foram definidos pela pesquisa científica, menos sobrou para qualquer fenômeno que possa ser intuitivamente rotulado como livre-arbítrio. Somos livres como seres independentes, mas nossas decisões não são livres de todos os processos orgânicos que criaram nosso cérebro e nossa mente.  O livre-arbítrio, portanto, parece ser na verdade biológico. 

Claro que, por qualquer padrão concebível, a humanidade é de longe a maior realização da vida. Somos a mente da biosfera, do sistema solar e - quem sabe? - talvez da galáxia. Olhando à nossa volta, aprendemos a traduzir para nossos sistemas audiovisuais limitados as modalidades sensoriais de outros organismos. Conhecemos grande parte da base bioquímica de nossa própria biologia. Logo criaremos organismos simples em laboratório. Aprendemos a história do universo e a observamos quase até seu limite. 

Os nossos ancestrais foram uma em apenas umas duas dúzias de linhagens de animais a desenvolverem a eussocialidade, o seguinte grande nível de organização biológica acima da orgânísmica. Ali, membros do grupo que incluíam duas ou mais gerações permanecem juntos, cooperam, cuidam dos jovens e dividem o trabalho de modo a favorecer a reprodução de alguns indivíduos em detrimento de outros. Os pré-humanos eram bem maiores fisicamente do que qualquer dos insetos e outros invertebrados eussociais. Foram dotados de cérebros bem mais volumosos desde o princípio.  Com o tempo, descobriram a linguagem baseada nos símbolos, a escrita, e a tecnologia baseada na ciência que nos dá a vantagem em relação ao resto dos seres vivos. Agora, exceto o fato de nos comportarmos como macacos antropoides grande parte do tempo e termos tempo de vida geneticamente limitado, somos semelhantes a deuses. 

Que força dinâmica nos alçou a essa posição elevada? Eis uma pergunta de enorme importância para autocompreensão. A resposta aparente é a seleção natural multinível. No nível mais alto dos dois níveis relevantes da organização biológica, os grupos competem entre si, favorecendo traços sociais cooperativos entre os membros do mesmo grupo. No nível mais baixo, membros do mesmo grupo competem entre si de forma que leva ao comportamento egoísta. A oposição entre os dois níveis de seleção natural resultou em um genótipo quimérico em cada pessoa, tornando cada um de nós em parte santo, em parte pecador.  

A seleção de grupo é claramente o processo responsável pelo comportamento social avançado. Ela também engloba os dois elementos necessários à evolução. Em primeiro lugar, descobriu-se que os traços no nível do grupo, incluindo cooperação, empatia, e padrões de interligação, são hereditários nos seres humanos - ou seja, variam geneticamente em certo grau de uma pessoa para outra. Segundo, cooperação e unidade afetam claramente a sobrevivência de grupos que estão competindo. 

Ocorre ainda que a percepção da seleção de grupo como a principal força propulsora da evolução combina bem com grande parte do que é mais típico - e desconcertante - na natureza humana.  Além disso,, repercute nos indícios dos campos normalmente discrepantes da psicologia social, da arqueologia e da biologia evolutiva de que os seres humanos são, por natureza, intensamente tribalistas. Um elemento básico da natureza humana é que as pessoas se sentem compelidas a pertencer a grupos e, tendo aderido a um deles, consideram-no superior aos grupos concorrentes. 

A seleção multinível (seleção de grupo e individual combinadas) também explica a natureza conflituosa de nossas motivações. Toda pessoa normal sente a pressão da consciência, do heroísmo contra a covardia, da verdade contra a fraude, do compromisso contra o distanciamento. Constitui nosso destino sermos atormentados por grandes e pequenos dilemas ao abrirmos caminho diariamente pelo mundo arriscado e incontrolável que nos deu origem. Temos sentimentos contraditórios. Não estamos seguros quanto a este ou aquele rumo. Sabemos muito bem que ninguém é tão sábio ou superior que seja incapaz de cometer um erro catastrófico, e que nenhuma organização é tão nobre que esteja livre da corrupção. Todos nós vivemos nossas vidas em conflitos e controvérsias. 

As lutas oriundas da seleção natural multinível também são onde as humanidades e as ciências sociais habitam. Os seres humanos são fascinados por outros seres humanos, como todos os demais primatas são fascinados por seus próprios semelhantes. Sentimos um prazer incessante em observar e analisar nossos parentes, amigos e inimigos.  A fofoca sempre foi a ocupação favorita em todas as sociedades, dos grupos caçadores-coletores às cortes reais. Avaliar o mais exatamente possível as intenções e a confiabilidade daqueles que afetam nossa própria vida pessoal é um bem humano e altamente adaptativo.  Também é adaptativo julgar o impacto do comportamento dos outros sobre o bem-estar do grupo como um todo. Somos gênios em interpretar as intenções dos outros, enquanto eles também lutam, hora após hora, com seus próprios anjos e demônios. O direito civil é o meio pelo qual moderamos o dano de nossas falhas inevitáveis