domingo, 25 de setembro de 2016

Philip Roth





O professor do desejo

Em vez de passar o primeiro dia de aula falando sobre a lista de leituras e as diretrizes básicas do curso, gostaria de lhes dizer algumas coisas sobre mim que nunca divulguei a nenhum de meus alunos. Não há razão alguma para isso e, até que entrei na sala e me sentei, não tinha certeza de que o faria. E ainda posso mudar de ideia. Pois como justificar a circunstância de lhes revelar os fatos mais íntimos de minha vida privada? Com efeito, nos reuniremos para discutir livros por três horas todas as semanas durante os dois próximos semestres, e sei por experiência, como vocês também sabem, que em tais condições pode se criar um forte vínculo afetivo. No entanto, também sabemos que isso não me dá o direito de fazer algo que pode ser apenas um exemplo de impertinência e mau gosto. 

Como vocês já devem ter deduzido - tanto pela maneira com que me visto quanto pelo estilo dos meus comentários iniciais -, as convenções que tradicionalmente presidem a relação entre aluno e professor são mais ou menos aquelas que eu venho adotando, mesmo durante a turbulência dos anos recentes. Já me disseram que sou um dos últimos professores a me dirigir aos alunos em sala de aula como "senhor" e "senhorita", em vez de usar os primeiros nomes. E, não importa como desejem se vestir - como mecânico, mendigo, cigana de casa de chá ou ladrão de gado - eu prefiro me apresentar perante vocês para dar aula de paletó e gravata... conquanto, como os mais observadores notarão, geralmente com o mesmo paletó e a mesma gravata. E, quando comparecerem ao meu escritório para alguma consulta, as alunas verão, caso ao menos se deem ao trabalho de olhar, que durante o encontro manterei devidamente aberta a porta que liga ao corredor o aposento em que estaremos sentados lado a lado. Alguns de vocês talvez se divirtam ao me verem retirar o relógio do pulso, como fiz há pouco, e pô-lo ao lado das minhas anotações todo começo de aula. A esta altura não me lembro mais qual dos meus professores costumava acompanhar dessa forma a passagem do tempo, mas ao que parece isso me causou forte impressão, demonstrando um profissionalismo que ainda desejo associar à minha pessoa.

Apesar disso, não vou tentar esconder de vocês que sou feito de carne e osso - ou que entendo que vocês sejam. Lá  pelo final do ano, já poderão estar cansados das minhas insistências nas conexões existentes entre os romances que lerão para este curso, mesmo os mais excêntricos e rebarbativos, e o que sabem até hoje sobre a vida. Vocês descobrirão (e nem todos aprovarão) que não concordo com alguns de meus colegas que nos dizem que a literatura, em seus momentos mais sublimes e intrigantes, é, "essencialmente não referencial". Posso me apesentar diante de vocês de paletó e gravata, posso chamá-los de senhor e senhora, mas, seja como for, vou exigir que se abstenham de falar de "estrutura", "forma" e "símbolos" em minha presença. Tenho a impressão de que muitos de vocês foram suficientemente intimidados pelo terceiro ano da universidade e deveriam ter a possibilidade de se recuperar, restaurando a respeitabilidade dos interesses e e entusiamos que muito provavelmente os levaram inicialmente a ler ficção e dos quais não caberia agora se envergonhar. Como uma espécie de experimento, vocês podem até querer, ao longo do ano, tentar viver sem nenhuma terminologia aprendida nas salas de aula abrindo mão de "trama" e "personagem", juntamente com aquelas palavras grandiloquentes a que não poucos de vocês recorrem para tornar mais solenes suas observações, tais como "epifania", "persona" e, naturalmente, "existencial" aplicadas a tudo o que existe na face da terra. Sugiro isso na esperança de que, se falarem sobre Madame Bovary com as mesmas palavras que usam com o dono da mercearia ou com sua namorada, estarão criando uma relação com Flaubert e sua heroína mais íntima, mais interessante e até mesmo mais referencial. 

Na verdade, todos os romances do primeiro semestre estão relacionados, em maior ou menos grau, com a obsessividade, com o desejo erótico, porque pensei que as leituras organizadas em torno de um tema com o qual vocês têm alguma familiaridade poderia ajudá-los a situar mais ainda tais livros no domínio da experiência pessoal, desestimulando a tentação de despachá-los para aquele terreno mais controlável dos estratagemas narrativos, dos motivos metafóricos e dos arquétipos míticos. Acima de tudo, espero que, ao ler tais livros, vocês aprendam algo valioso sobre a vida, num de seus aspectos mais enigmáticos e exasperadores. Também espero aprender alguma coisa. 

Muito bem. Tendo dito isso a fim de ganhar tempo, é chegada a hora de começar a revelar o irrevelável - a história do desejo do professor. Só que não posso, ou ainda não posso, ao menos até que haja explicado a mim próprio, se não a seus pais, por que deveria até mesmo pensar em transformá-los em voyeurs, em meus juízes e confidentes, por que deveria expor meus segredos a pessoas que têm a metade da minha idade, a maioria das quais nem conheci como alunos. Por que possuir uma platéia, quando quase todos os homens e mulheres preferem guardar tais assuntos para si ou só expô-los aos seus confessores mais fidedignos, sejam eles laicos ou sacerdotais? O que faz tão necessário, ou minimamente adequado, que eu me apresente a jovens desconhecidos não sob a roupagem do professor, e sim como o primeiro texto do semestre?

Permitam-me responder com um apelo ao coração. 

Adoro ensinar literatura. Raramente sinto-me tão feliz como quando estou aqui com minhas anotações, meus textos assinalados e pessoas como vocês. A meu ver, não há nada na vida comparável a uma sala de aula. Às vezes, quando conversamos - quando, por exemplo, um de vocês com uma só frase atinge em cheio o âmago do livro que está sendo estudado -, tenho vontade de gritar: "Queridos amigos, aproveitem bem este momento!". Por quê? Porque, depois de saírem daqui, poucas vezes, se é que alguma vez, as pessoas falarão com vocês ou ouvirão vocês do modo como todos nós nos falamos e nos ouvimos aqui, nesta salinha iluminada e com tão poucos móveis. Também não é provável que vocês encontrem com facilidade outras oportunidades de falar sem constrangimento sobre o que foi mais importante para homens tão conscientes dos conflitos da vida quanto Tolstói, Mann e Flaubert. Duvido que saibam o quanto me emociona ouvi-los falar com ponderação e total seriedade sobre a solidão, doença, saudade, perda, sofrimento, ilusão, esperança, paixão, amor, terror, corrupção, calamidade e morte... e me emociono porque vocês têm dezenove, vinte anos, a maioria vinda de lares confortáveis de classe média e sem ter vivido ainda experiências muito traumáticas - mas também porque, estranha e tristemente, essa talvez seja a última ocasião em que vocês refletirão de modo sério e sustentado sobre as forças inexoráveis que em algum momento terão de enfrentar, queiram ou não. 

Será que ficou mais clara a razão pela qual considero nossa sala de aula, na verdade, o cenário mais adequado para que eu relate minhas experiências eróticas? Será que minhas palavras tornaram mais legítimas as exigências que farei com respeito ao tempo e à paciência de vocês, assim como ao custo de seus estudos universitários? Para que não paire nenhuma dúvida: uma sala de aula é, para mim, o mesmo que uma igreja para um verdadeiro crente. Algumas pessoas se ajoelham durante o serviço de domingo, outros se cobrem com filactérios todas as manhãs... e eu apareço três vezes por semana, de gravata no pescoço e relógio em cima da mesa, a fim de lecionar os grandes romances. 

Ah, meus alunos, venho surfando uma onda de grande emoção este ano. Vou falar disso também. Nesse  meio-tempo, se possível, tolerem minha sensação de plenitude. Na realidade, só desejo apresentar a vocês minhas credenciais como professor do curso de Literatura 341. Por mais indiscretas, não profissionais e repugnantes que certas partes dessas revelações possam parecer a alguns de vocês, pretendo agora, se me permitem, seguir adiante e contar francamente minha vida pregressa como ser humano. Sou devotado à ficção e asseguro que, no momento oportuno, vou lhes dizer tudo que sei sobre ela, mas de fato nada vive mais intensamente dentro de mim que minha própria vida. 

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