quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Carlo Rovelli




Sete breves lições de física

Que lugar temos nós, seres humanos que percebem, decidem, riem e choram, neste grande afresco do mundo que a física contemporânea oferece? Se o mundo é um pulular de efêmeros quanta de espaço e matéria, um imenso jogo de encaixe de espaço e partículas elementares, o que somos nós? Também somos feitos de partículas? Mas, então, de onde vem aquela sensação de existir singularmente  e em primeira pessoa, que cada um de nós experimenta? Então o que são nossos valores, os nossos sonhos, as nossas emoções, o nosso próprio saber? O que somos nós, neste mundo imenso e rutilante? [...]

É uma pergunta difícil. No grande quadro da ciência contemporânea, há muitas coisas que não compreendemos, e uma das que menos compreendemos somos nós mesmos. Mas evitar essa pergunta, e fingir que não é nada, significaria, penso, desprezar algo essencial. [...]

"Nós", seres humanos, somos antes de mais nada o sujeito que observa este mundo, e autores, coletivamente, desta fotografia da realidade que tentei compor. [...] Mas, do mundo que vemos, somos também parte integrante, não somos observadores externos. Estamos situados nele. Nossa perspectiva se origina de dentro. Somos feitos dos mesmos átomos e dos mesmos sinais de luz trocados entre os pinheiros nas montanhas e as estrelas nas galáxias. 

À medida que nosso conhecimento cresceu, fomos aprendendo cada vez mais esta noção de sermos partes, e pequena parte, do universo. Pensávamos estar sobre o planeta no centro do cosmo, e não estamos. Pensávamos ser uma raça à parte, na família dos animais e das plantas, e descobrimos que somos descendentes dos mesmos genitores de que descende qualquer outro ser vivo ao nosso redor. Temos tataravós em comum com as borboletas e com os pinheiros. Somos como um filho único que cresce e aprende que o mundo não gira somente ao seu redor, como ele pensava quando era pequeno. Ele deve aceitar ser um entre os outros. Ao nos espelharmos nos outros e nas outras coisas, aprendemos quem somos. [...] No mar imenso de galáxias e de estrelas, somos um infinitesimal cantinho perdido; entre os infinitos arabescos de formas que compõe o real, não somos mais do que um rabisco entre muitos outros. 

As imagens que construímos do universo vivem dentro de nós, no espaço de nossos pensamentos. Entre essas imagens - entre aquilo que conseguimos reconstruir e compreender com nossos meios limitados - e a realidade da qual somos parte existem filtros incontáveis: nossa ignorância, a limitação dos nossos sentidos e da nossa inteligência, as próprias condições que nossa natureza de sujeitos, e sujeitos particulares, submete à experiência. [...] Não somente aprendemos, mas aprendemos também a mudar gradualmente nossa estrutura conceitual, e adaptá-la àquilo que aprendemos. E aquilo que aprendemos a conhecer, embora devagar e tateando, é o mundo real de que somos parte. 

Quando falamos do Big Bang ou da estrutura do espaço-tempo, o que estamos fazendo não é a continuação dos relatos livres  e fantásticos que os homens contavam em torno da fogueira nas noites de centenas de milênios. É a continuação de outra coisa: do olhar daqueles mesmos homens, às primeiras luzes da alvorada, buscando em meio à poeira da savana os rastros de um antílope - observar os detalhes da realidade para deduzir deles aquilo que não vemos diretamente, mas cujos indícios podemos seguir. Conscientes de que podemos nos enganar e, portanto, dispostos a cada instante a mudar de ideia se aparecer um novo indício, mas sabendo também que, se formos competentes, compreenderemos corretamente, e descobriremos. A ciência é isso. 

Tudo o que é especificamente humano não representa nossa separação da natureza, é a nossa natureza. É uma forma que a natureza assumiu aqui em nosso planeta, no jogo infinito de suas combinações, da influência recíproca e da troca de correlações e informação entre suas partes.  [...] A vida na Terra é apenas uma amostra do que pode suceder no universo. Nossa alma não é senão outra amostra. 

Somos uma espécie curiosa, a única que restou de um grupo de espécies (o "gênero Homo") formado por pelo menos uma dúzia de espécies curiosas. As outras espécies do grupo já se extinguiram; algumas, como os neandertais, há pouco: não faz nem 30 mil anos. É um grupo de espécies que evoluiu na África, afim aos chimpanzés hierárquicos e litigiosos, e mais ainda aos bonobos, os pequenos chimpanzés pacíficos, alegremente promíscuos e igualitários. Um grupo de espécies que saiu repetidamente da África para explorar novos mundos e que chegou longe, até a Patagônia, até a Lua. Não somos curiosos contra a natureza: somos curiosos por natureza. 

Cem mil anos atrás, nossa espécie partiu da África, talvez impelida justamente por essa curiosidade, aprendendo a olhar  cada vez mais à frente. Sobrevoando a África à noite, eu me perguntei se um daqueles nossos longínquos antepassados, erguendo-se e pondo-se a caminho rumo aos espaços abertos no Norte, e olhando o céu, poderia ter imaginado um distante neto seu voando naquele céu, interrogando-se sobre a natureza das coisas, anda impelido pela sua mesma curiosidade. 

Penso que nossa espécie não durará muito. Ela não parece ter a resistência das tartarugas, que continuam existindo semelhantes a si mesmas por centenas de milhões de anos, centenas de vezes mais do que nós temos existido. Pertencemos a um tipo de espécie de vida breve. Nossos primos já estão todos extintos. E nós causamos danos. As mudanças climáticas e ambientais que deflagramos foram brutais, e dificilmente nos pouparão.[...] Talvez sejamos sobre a Terra a única espécie consciente da inevitabilidade de nossa morte individual: temo que em breve nos tornaremos também a espécie que conscientemente verá chegar o próprio fim, ou pelo menos o fim da própria civilização. 

Para nós, justamente por sua natureza efêmera, a vida é preciosa. Porque, como escreve Tito Lucrécio, "nosso apetite de vida é voraz, nossa sede de vida, insaciável".  

A natureza é nossa casa e na natureza estamos em casa. Este mundo estranho, diversificado e assombroso que exploramos, onde o espaço se debulha, o tempo não existe e as coisas podem não estar em lugar algum, não é algo que nos afasta de nós: é somente aquilo que nossa natural curiosidade nos mostra da nossa casa. Da trama da qual somos feitos nós mesmos. Somos feitos da mesma poeira de estrelas de que são feitas as coisas, e quer quando estamos imersos na dor, quer quando rimos e a alegria resplandece, não fazemos mais do que ser aquilo que não podemos deixar de ser: uma parte do nosso mundo. 

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