quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Esther Perel



Uma aliança para governar o mundo

Nunca nossas expectativas acerca do casamento haviam tomado proporções tão épicas. Ainda queremos tudo o que a família tradicional deveria – segurança, filhos, bens imóveis e respeitabilidade – só que agora também queremos que nosso parceiro nos ame, nos deseje e deseje interessado em nós. Devemos ser melhores amigos, confidentes e amantes fervorosos. A imaginação humana suscitou um novo Olimpo: que o amor permaneça incondicional, a intimidade fascinante e o sexto fantástico, a longo prazo, com a mesma pessoa. E o longo prazo não pra de aumentar.

O pequeno círculo da aliança de casamento contém ideais extremamente contraditórios. Queremos que nosso escolhido ofereça estabilidade, segurança, previsibilidade e confiabilidade – todas as experiências que nos servem de âncora. E queremos que a mesmíssima pessoa nos ofereça estupefação, mistério, aventura e risco. Me dê conforto e me dê exagero. Me dê familiaridade e me dê novidade. Me dê continuidade e me dê surpresa. Os amantes de hoje procuram ter sob um único teto desejos que desde sempre tiveram lugares separados.

Na nossa sociedade secularizada, o amor romântico se tornou, nas palavras do analista junguiano Robert Johnson, “o maior sistema energético da psique ocidental”. Na nossa cultura, ele suplantou a religião como a arena em que homens e mulheres procuram sentido, transcendências, completude e arrebatamento”. Em busca da “alma gêmea”, combinamos o espiritual e o relacional como se fosse uma só coisa. A perfeição que almejamos experimentar no amor terreno antes era procurada apenas no santuário do divino. Quando atribuímos ao nosso parceiro características divinas e esperamos que ele ou ela nos eleve do mundano ao sublime, criamos, segundo Johnson, uma “confusão profana de dois amores sagrados” que inevitavelmente causa frustração.

Não só temos exigências intermináveis como, ainda por cima, queremos ser felizes. Antigamente, a felicidade era reservada para a vida póstuma. Trouxemos o céu para a terra, ao alcance de todos, e agora ela não é mais apenas uma busca, mas uma ordem.   Esperamos que uma pessoa nos dê o que outrora nos era proporcionado por um vilarejo inteiro, e vivemos o dobro de tempo. É uma tarefa de vulto para duas pessoas.

Levamos para o nosso conceito de casamento tudo que antigamente procurávamos fora dele – o olhar admirado do amor romântico, o desembaraço mútuo do sexo desenfreado, o equilíbrio perfeito entre liberdade e compromisso. Em uma parceria tão jubilosa, por que pularíamos a cerca? A evolução das relações comprometias nos levou a um lugar em que acreditamos que a infidelidade não deveria acontecer, já que todas as motivações foram eliminadas.

E, no entanto, ela acontece. Por mais que nós, romântico incorrigíveis, detestemos admitir, casamentos baseados em atração e amor em geral são mais frágeis do que os casamentos baseados em motivos materiais. Mas isso não quer dizer que os casamentos antigos, estáveis, eram mais felizes. Eles nos deixam mais vulneráveis aos caprichos do coração humano e às sombras da traição.

Os homens e mulheres com os quais trabalho investem mais do que nunca no amor e na felicidade, mas em uma reviravolta cruel do destino, a sensação de merecimento resultante justamente o que está por trás do aumento exponencial da infidelidade e do divórcio hoje em dia. Antes traíamos porque não era papel do casamento oferecer amor e paixão. Hoje traímos porque o casamento não consegue suprir o amor, a paixão e a atenção total que são prometidos.

Todos os dias, no consultório, conheço consumidores da ideologia moderna do casamento. Eles compraram o produto, levaram para casa e descobriram que algumas peças estavam faltando. Então vão a oficina para consertá-lo e deixa-lo parecido com a imagem da caixa. Consideram fato consumado as aspirações que têm para a relação – tanto o que desejam quanto o que merecem ter – e ficam aborrecidos quando o ideal romântico não é comprido na realidade não romântica. Não é surpresa que essa visão utópica esteja deixando para trás uma tropa cada vez maior de desencantados.


Fotografia: Nan Goldin