domingo, 23 de agosto de 2020

Isaiah Berlin




“Da esperança e do medo libertados”


O conhecimento só vai nos tornar mais livres se de fato houver mais liberdade de escolha - se com base em nosso conhecimento pudermos nos comportar diferentemente do modo como teríamos nos comportado sem ele - pudermos nos comportar, e não devermos nos comportar ou nos comportamos -, isto é, se pudermos nos comportar e nos comportamos de modo diferente com base em nosso novo conhecimento, mas sem a obrigatoriedade de nos comportar desse modo. Onde não há liberdade antecedente - e nenhuma possibilidade de sua existência -, ela não pode ser aumentada. Nosso conhecimento vai aumentar nossa racionalidade; nossa compreensão da verdade vai aprofundar nosso entendimento, aumentar nosso poder, nossa harmonia interior, sabedoria, eficácia, mas não, necessariamente, nossa liberdade. Se somos livres para escolher, então um aumento em nosso conhecimento pode nos dizer quais são os limites dessa liberdade e o que a expande ou contrai. Mas apenas saber que existem fatos e leis que não posso alterar não me torna por si só capaz de modificar alguma coisa: se, antes de tudo, não tenho liberdade, o conhecimento não vai aumentá-la. Se tudo é governado por leis naturais, então é difícil compreender o que significa dizer que posso “usá-las” melhor com base em meu conhecimento, a menos que “posso” não seja o “posso” da escolha - não seja o “posso” que se aplica apenas a situações em que sou corretamente descrito como sendo capaz de escolher entre alternativas e em que não sou rigorosamente determinado a escolher uma das alternativas em vez da outra. Em outras palavras, se o determinismo clássico é uma vis!ao verdadeira (e o fato de que não se ajusta ao nosso presente uso não é um argumento contra ele), seu conhecimento não vai aumentar a liberdade - se a liberdade não existe, a descoberta de que ela não existe não vai criá-la. Isso vale tanto para o autodeterminemos como a sua variedade mecanicista-behaviorista mais plenamente desenvolvida. 

A exposição mais clara do autodeterminismo clássico é provavelmente apresentada por Spinoza na sua Ética. Stuart Hampshire o apresenta, corretamente na minha opinião, sustentando que o homem plenamente racional não escolhe seus fins, pois seus fins estão dados. Quanto melhor ele compreende a natureza dos homens e do mundo, mais harmoniosas e bem-sucedidas serão suas ações, mas nenhum problema sério de escolha entre alternativas igualmente aceitáveis pode apresentar se apresentar aos seus olhos, não mais do que um matemático que raciocina corretamente partindo de premissas verdadeiras para chegar a conclusões logicamente inevitáveis. Sua liberdade consiste no fato de que ele não sofrerá a ação de causas cuja existência não conheça ou que exerçam uma influência cuja a natureza ele não compreenda corretamente. Mas isso é tudo, Dadas as premissas de Spinoza - a de que o universo é uma ordem racional, e a de que compreender a racionalidade de uma proposição, um ato ou uma ordem é, para um ser racional, equivalente a aceitá-la ou identificar-se com ela (como na antiga noção estoica) -, descobre-se a própria noção de escolha depende de deficiências de conhecimento, do grau de ignorância. Há apenas uma única resposta correta para qualquer problema de conduta, assim como para qualquer problema da teoria. Tendo sido descoberta a resposta correta, homem racional não pode logicamente, deixar de agir de acordo com ela: a noção de livre escolha entre alternativas já não se aplica. Aquele que compreende todas as coisas sabe das razões que as tornam assim como elas s!ao, e não de outa maneira, e, sendo racional, ele não pode desejar que elas sejam diferentes do que são. Isso talvez constitua um ideal inatingível (e talvez até, quando cogitado a fundo, incoerente), mas é essa a concepção que está subjacente à noção de que um aumento no conhecimento sempre implica eo ipso um aumento na liberdade, isto é, o modo de evitar que se fique à mercê do que não se compreende. Uma vez compreendido ou conhecido algo (e apenas então) é, segundo essa visão conceitualmente impossível descrever-se como estado à mercê desse fator. A menos que seja feita essa máxima pressuposição racionalista, não me parece possível concluir que mais conhecimento acarrete necessariamente um aumento na soma total de liberdade; pode ser ou pode não ser - essa, como espero mostrar, é em grande parte uma questão empírica. Descobrir que não posso fazer o que outrora acreditava poder vai me tornar mais racional - não vou bater a cabeça contra murros de pedra -, mas não vai me fazer necessariamente mais livre; talvez haja muros de pedra para onde quer que eu dirija meu olhar; talvez eu próprio seja parte de um deles; eu próprio uma pedra, apenas sonhando ser livre.    


Fotografia: Malcolm Wilde Browne