quarta-feira, 23 de junho de 2010

F. Scott Fitzgerald




O Boa-Vida


O ocidente, cinzento quando o boa-vida entrou na garagem, converteu-se num azul rico e vívido, quando Jim acendeu sua solitária lâmpada elétrica. Tornou logo a apagá-la e, acercando-se da janela, apoiou os cotovelos no parapeito e fitou a manhã que surgia. Com o despertar de suas emoções, o que primeiro experimentou foi uma sensação de inutilidade, uma dor surda ante a extrema desolação de sua própria vida. Uma parede erguera-se subitamente em torno dele, encarcerando-o - uma parede tão palpável e definida como a branca parede de seu pobre quarto. E, com a percepção dessa parede, tudo o que tinha constituído o romance de sua existência - sua inteligência, sua despreocupada imprevidência, a miraculosa liberalidade da vida - se dissipou. O boa-vida que caminhava despreocupado por Jackson Street, a cantarolar uma canção indolente, conhecido em todas as casas de chistes locais, às vezes triste devido apenas à própria tristeza e à fuga do tempo - esse boa-vida desapareceu subitamente.

[...]

A rua estava quente às três e mais quente às quatro; a poeira de abril parecia enredar o sol e soltá-lo de novo, uma brincadeira velha como o mundo, repetida sempre numa eternidade de tardes. Mas, às quatro e meia, caiu uma primeira camada de silêncio e as sombras se alongaram debaixo dos toldos e das árvores densamente copadas. Naquele calor nada importava. Toda a vida era apenas um estado da atmosfera, uma espera em meio do calor, onde os acontecimentos não tinham significado, pela fresca do crepúsculo, suave e acariciante como uma mão de mulher sobre uma testa cansada.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Tzvetan Todorov





A Literatura em Perigo

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando estamos profundamente deprimidos, nos tornar ainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cercam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver.
[...]
Ela [as palavras dos poetas, as narrativas dos romancistas] me permitem dar forma aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo de pequenos eventos que constituem minha vida. Elas me fazem sonhar, tremer de inquietude ou me desesperar. 
[...]
A literatura tem um papel vital a cumprir; mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intenso que prevaleceu na Europa até fins do século XIX e que hoje é marginalizado, quando triunfa uma concepção absurdamente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido à sua vida, tem razão contra professores, críticos, e escritores que lhe dizem que a literatura só fala de si mesmo ou que apenas pode ensinar o desespero.
[...]
Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano. Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedicam a essa tarefa há milênios?

Joseph Conrad






Juventude

Não preciso dizer a vocês o que é estar a balançar num bote desabrigado. Me lembro de noites e dias de calmaria, quando remávamos e remávamos, e o bote parecia ficar tranquilo como que enfeitiçado no círculo do horizonte marítimo. Me lembro do calor, do dilúvio marítimo. Me lembro do calor, do dilúvio que nos obrigava a tirar água com balde para salvar a pele (mas pelo menos enchia o nosso barril), e me lembro das dezesseis horas sem fim, da boca seca como cinza e do remo apoiado na proa, para manter minha atenção voltada para o mar revolto. Não sabia até então que eu era o que se pode chamar de um homem! Lembro os rostos cansados, as figuras abatidas dos meus dois homens, lembro da minha juventude e de um sentimento que nunca mais haverá de voltar – o sentimento de que podia durar para sempre, mais do que o mar, do que a terra, do que todos os homens; o ilusório sentimento que nos atrai para alegrias, para o amor, para o vão esforço – para a morte; a triunfante convicção de força, o calor da vida numa mão cheia de pó, a chama do coração que todo ano diminui, esfria, arrefece e expira – expira muito depressa, depressa demais, antes da própria vida.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Philip Roth



Indignação

A mãe era forte e quase chegou aos cem anos, embora sua vida também tivesse sido arruinada. Não passava um dia sem que ela olhasse para a fotografia de formatura no ginásio de seu bonito garotão no porta-retrato que ficava sobre o aparador da sala de jantar e, em voz alta, perguntasse soluçante ao falecido marido: “Por que é que você o perseguiu tanto até fazer ele ir embora de casa? Um momento de raiva, e veja no que deu! Que diferença fazia a hora em que ele chegava em casa? Ao menos estava em casa ao voltar! E agora, onde é que ele está? Onde é que você está meu querido? Marcus, por favor, a porta está destrancada, volte pra casa!”. Caminhava então até a porta, a porta com a famosa tranca, e abria, abria de todo, e lá ficava, em vão, esperando pela volta dele.

Se não fosse isso e aquilo, estaríamos todos juntos e viveríamos para sempre e tudo teria um final feliz. Se não fosse seu pai, se não fosse[...] se não fosse [...]se não fosse[...] Se ele próprio tivesse ido à igreja! Se tivesse ido lá as quarenta vezes e assinado seu nome, ainda estaria vivo hoje, aposentando-se após toda uma carreira como advogado. Mas ele não podia! Não era nehuma criança para acreditar num deus idiota qualquer! Não podia ouvir os hinos de merda deles! E as rezas, aquelas rezas de olhos fechados – supertição primitiva e putrefata! Nossa Tolice, que estás no Céu! A desgraça da religião, a imaturidade, a ignorância e a vergonha de tudo aquilo! Piedade lunática por nada!
[…]
Que escolha tinha Marcus, o que mais podia fazer senão, como o Messner que era, como o estudioso de Russell que era, bater com o punho na escrivaninha do diretor e lhe dizer pela segunda vez “Vai se foder”!

Sim, o popular e desafiador “Vai se foder” - e foi o que bastou ao filho do açogueiro, morto três meses antes de fazer vinte anos […] o único de seus colegas suficientemente desafortunado para ser morto na Guerra da Coreia […] onze meses antes que, caso tivesse sido capaz de tolerar a igreja e manter a boca fechada, se formasse na Universidade de Winesburg […] podendo assim postergar o aprendizado daquilo que seu pai, embora pouco educado, vinha fazendo tanta força para lhe ensinar havia muito tempo: a forma terrível e incompreensível pela qual nossas escolhas mais banais, fotuitas e até cômicas conduzem a resultados tão desproporcionais.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Machado de Assis

'Passeava com dois amigos ao pôr-do-sol – o céu ficou de súbito vermelho-sangue – eu parei, exausto, e inclinei-me sobre a mureta– havia sangue e línguas de fogo sobre o azul escuro do fjord e sobre a cidade – os meus amigos continuaram, mas eu fiquei ali a tremer de ansiedade – e senti o grito infinito da Natureza'. Edvard Munch


Memórias Póstumas de Brás Cubas




Imagina tu, leitor, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas. Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência, porque a ciência é mais lenta e a imaginação mais vaga, enquanto que o que ali via era a condensação viva de todos os tempos. Para descrevê-la seria preciso fixar o relâmpago. Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo que passava diante de mim – flagelos e delícias – desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia à indiferença, que era um sono sem sonhos, ou ao prazer, que era uma dor bastarda. Então o homem, flagelado e rebelde, corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação; e essa figura – nada menos que a quimera da felicidade – ou lhe fugia perpetuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda, e o homem a cingia ao peito, e então ela ria, como um escárnio, e sumia-se como uma ilusão.


Yannis Ritsos



A outra cidade

Há muitas solidões cruzadas - diz - em cima e em baixo
e outras no meio; diferentes e semelhantes, forçadas e impostas
ou como que escolhidas, como que livres - mas sempre cruzadas.
Mas no fundo, no centro, há apenas uma solidão - diz;
uma cidade vazia, quase esférica, sem quaisquer
anúncios luminosos multicores, sem lojas, sem motocicletas,
com uma luz branca, vazia, brumosa, interrompida
por centelhas de desconhecidos semáforos. Nesta cidade
habitam desde há anos os poetas. Caminham silenciosos de braços cruzados,
recordam factos imprecisos, esquecidos, palavras, paisagens,
estes consoladores do mundo, sempre inconsolados, perseguidos
pelos cães, pelos homens, pelos vermes, pelos ratos, pelas estrelas,
perseguidos até pelas suas próprias palavras, ditas ou não ditas.



domingo, 6 de junho de 2010

Czeslaw Milosz






Cris

Em abril de 1996 a imprensa internacional noticiou a morte  aos 75 anos de idade de Christopher Robin Milne, eternizado no livro de seu pai, A.A. Milne, O Ursinho Puff, como Cris.

       Eu, o Ursinho Puff, preciso de repente pensar em coisas muito difíceis pra minha pequena cabecinha. Nunca me importei com o que está lá fora do nosso jardim, onde morávamos eu, o porquinho Leitão, o coelho Abel e o burrinho Bisonho com nosso amigo Cris. Quer dizer, nós ainda moramos aqui e nada mudou e agorinha mesmo comi um pote de mel – o Cris só foi ali e já volta.
      A Coruja diz que lá fora do nosso jardim começa o Tempo, e isso é um poço assim fundo pra caramba, e quando uma pessoa cai nele vai sumindo e sumindo lá pra baixo, até que ninguém sabe o que acontece com ela depois. Fiquei um pouco preocupado com o Cris, se não tinha caído lá dentro, mas ele voltou e aí eu perguntei sobre o tal poço. “Puff – ele disse – eu estava dentro dele e fui caindo, e caindo eu ia mudando, minhas pernas foram ficando compridas, fiquei grande, usava umas calças que iam até o chão e me cresceu barba, depois meus cabelos foram ficando brancos, fui me encurvando, andei de bengala e aí morri.
     Com certeza, foi tudo só um sonho, porque não parecia bem de verdade. De verdade pra mim sempre foi só você, Puff, e as nossas brincadeiras. Agora já não saio daqui pra lugar nenhum, mesmo se me chamarem pro lanche."

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Oh Jung-Hee



Espelho de Bronze

Os velhos não se retratam. Pois não estão à espera de uma nova vida que exija uma retratação.

[...]

A sombra já havia começado a descer num dos cantos do quintal enquanto as pétalas se encolhiam em cores mais escuras, na fina escuridão que ia subindo da terra. Mas quão longo seria o fluir invisível do tempo até que as flores mergulhassem no silêncio e no abismo?

Sentiu que deveria dizer alguma coisa para ela que já não tentava esconder o choro e precisava de um afago. Abriu os lábios com a timidez de um menino e também com um pouco de medo, mas ela não compreendeu as palavras que escapavam da boca sem definição. A esposa aproximou o ouvido bem pertinho dele e perguntou toda aflita. O que foi? O que você disse? Quem foi que veio mesmo?

Com os cabelos tingidos, pretos feito breu, ele ficou deitado com a boca arruinada entreaberta, uma boca que já não podia falar.

O reflexo do espelho que se movia rapidamente pelo teto e pelas paredes finalmente permaneceu parado sobre o copo de vidro. E, no silêncio decantado e escuro, somente a dentadura cintilava clara e brilhante como se quisesse dizer alguma coisa.


terça-feira, 1 de junho de 2010

Rainer Maria Rilke



Estou muito só, mas não o bastante para que cada momento seja sagrado.
Sou muito pequeno neste mundo, mas não o bastante para jazer
 apenas à tua frente como uma coisa, sagaz e secreta.
Quero a minha própria vontade, e quero simplesmente estar com
 a minha vontade, que se prepara para a ação,
e nos momentos silenciosos, que por vezes mal se movem,
quando alguma coisa se aproxima,
Quero estar com os que conhecem as coisas secretas,
Ou então sozinho.