segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Black Mirror




Queda livre

[Na beira da estrada] - Parece que você precisa de carona. [Repara na nota da caminhoneira: 1,4] – Na verdade, estou bem. – Tem certeza? Vamos! Eu não mordo. [Já dentro do caminhão] A garrafa azul é café. A vermelha, uísque. Pode beber. – Estou bem. Obrigada. – Aonde está indo? – O mais próximo que você puder me deixar de Port Mary. [Checa no celular o perfil dela] – Está conferindo se sou perigosa nas minhas avaliações? Uma pessoa com nota 1,4 só pode ser uma maníaca antissocial, não é? – Você parece... – Normal? –Sim. – Obrigada. Não foi nada fácil. O que houve com você? Você tem 2,8. Não tem cara de 2,8. – É temporário. Vou virar o jogo. Vou num casamento.  Sou dama de honra! – Legal! – Quer ouvir meu discurso? – Não. Como ficou com 2,8? – Fui rebaixada por gritar no aeroporto. E dobraram minhas notas negativas. – Como foi? – Péssimo. – Perguntei dos gritos. – Não sei. Eu estava brava. Olha onde eu vim parar... Mas, desde que chegue ao casamento e faça o discurso, vão ignorar o 2,8. Sou amiga da noiva. Todos lá têm nota alta, então a minha sobe logo. Quando a punição acabar, a minha pontuação vai subir muito e vai dar tudo certo. – Você é parecida comigo. Não agora. [Discreto sorriso] Eu já tive 4,6. - 4,6? – Eu vivia para isso. Me esforçava tanto... Há oito anos, Tom, o meu marido, teve câncer. Foi no pâncreas. Muito ruim. Os sintomas apareceram tarde. - Sinto muito. – Você não me conhece, então não sente muito. Só ficou esquisita porque puxei o assunto de câncer com você. Eu dava cinco estrelas para todos os médicos, todos os enfermeiros, todos os especialistas... Dava nota alta. Agradecia. O câncer estava pouco se fodendo. Continuou crescendo. Alguns meses depois, ouvimos falar de um tratamento experimental. Era muito caro e muito exclusivo. Eu fiz tudo o que pude para conseguir uma vaga para ele. O tom tinha 4,3. Deram o lugar para um cara com a nota 4,4. Então, quando ele morreu, pensei: “Que se foda!”. Passei a dizer o que queria e quando queria. Não estava nem aí. As pessoas não gostam disso. É incrível como tudo vai por água abaixo quando se age assim. No fim das contas, muitos de meus amigos não gostavam de sinceridade. Passaram a me tratar como se eu tivesse cagado na mesa do café da manhã deles. Mas foi muito bom me livrar daqueles filhos da puta. Foi como tirar sapatos apertados. Que tal tentar? – Fala sério. – Por que não? – Não posso simplesmente tirar os sapatos e sair caminhando por aí. – Não vai saber se não tentar. – É que... Bem, você tinha conquistado coisas na sua vida. Coisas boas, coisas reais. E acabou perdendo tudo. Sinto muito. Agora, você não tem mais nada a perder. Eu ainda não tenho o que perder. Ainda estou lutando para conseguir essa coisa. – E o que é essa coisa? – Sei lá... Algo que me deixe feliz? Tipo, olhar ao meu redor e pensar que estou bem de vida. Ser capaz de respirar sem me sentir... Meio que...  Enfim, falta muito para chegar lá. Até chegar lá, tenho que entrar no joguinho dos números. Todos temos. Estamos atolados nisso. Essa porra desse mundo funciona assim. Olha, talvez você não se lembre. Talvez seja velha demais para entender. Eu não quis dizer isso dessa maneira. – Não se preocupe. Não vou te dar uma nota baixa. [Pela manhã] – Querida? – Que horas são? – A partir daqui eu vou para o leste, então você vai ter que arrumar outra carona. – Onde estamos? – Uns 50 quilômetros de Port Mary. Muitos ônibus passam aqui. Você vai ficar bem. – Obrigada. – Boa sorte com o seu discurso. Botei uma coisa aí para você. – Botou? – Uma saída de emergência. – Tchau. [Após o caminhão partir, Lacie abre a mala e encontra a garrafa vermelha.]

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