sábado, 1 de setembro de 2018

Esther Perel



Por que a traição dói tanto?
Sangrando por milhares de cortes

Pensava saber quem eu era, quem era ele: e de repente, não nos reconheço mais nem a mim nem a ele. [...] Minha vida, atrás de mim, desmoronou, como nesses terremotos em que a terra devora a si mesma: ela se esboroa às nossas costas à medida que fugimos. Não há mais retorno.
Simone de Beauvoir, A mulher desiludida.

O adultério sempre doeu. Mas, para os acólitos do amor moderno, parece doer mais do que nunca. Na verdade, o turbilhão de emoções desencadeado na esteira de um caso é tão avassalador que muitos psicólogos contemporâneos fazem empréstimos da área do trauma para explicar os sintomas: a ruminação obsessiva, a hipervigilância, o torpor e a dissociação, acesso de fúria inexplicáveis e pânico descontrolado.

As emoções não se distribuem perfeitamente em um fluxograma de adequação. Na verdade, muitos declaram ir e voltar em uma rápida sucessão de emoções contraditórias. “Eu te amo! Te odeio! Me abraça! Não encosta em mim! Pega suas porcarias e cai fora! Não me abandona! Canalha! Você ainda me ama? Vai se foder! Vem me foder!” Esse bombardeio de reações é normal e o provável é que dure um tempo.

A revelação é um momento fundamental na história de um caso e de um casamento. O choque da descoberta estimula o cérebro reptiliano, desencadeado uma reação primitiva: lutar, fugir ou gelar. Algumas pessoas ficam paradas, atônitas, outras desaparecem em um piscar de olhos – na esperança de escapar do cataclismo e retomar a sensação de controle sobre a própria vida. Quando o sistema límbico é acionado, a sobrevivência a curto prazo supera as decisões bem pensadas. Nesses momentos, é muito comum que seus impulsos, apesar de terem como objetivo a proteção, possam em um instante destruir anos de capital conjugal positivo.

Fala tanto ao isolamento do matrimônio moderno quanto ao estigma da infidelidade o fato de que muitas vezes o terapeuta é a única pessoa que sabe o que está acontecendo nessa primeira etapa – ele passa ser a base estável que escora o desmoronamento de ambos.
Há tantas peças pendentes – duas pessoas brigando com o fato de que andaram vivendo em realidades diferentes e só uma delas sabia disso.

Nesse contexto de crise, alguns casais costumam ter algumas das conversas mais profundas e francas, adentrando à madrugada. A história deles é desnudada, expectativas frustradas, raiva, amor e tudo o que há entre um ponto e outro. Eles se escutam. Nesse momento crítico, choram, discutem e fazem amor – muito. (É estranho como o medo da perda consegue reavivar o desejo.) Estão de novo, frente a frente – assim como ficamos logo que nos apaixonamos, antes de nos acomodarmos na posição lado a lado do cotidiano de um casal.

O casamento se tornou um castelo mítico, projetado para ser tudo o que poderíamos querer. Os casos o levam ao desmoronamento, nos deixando com a sensação de que não temos onde nos segurar. Talvez isso nos ajude em parte a explicar por que a infidelidade moderna é mais que dolorosa. É traumática.

A infidelidade é um ataque direto a uma de nossas estruturas psíquicas mais importantes: nossa memória do passado. Ela não apenas sequestra as esperanças e planos de um casal, mas também põe um ponto de interrogação na história que tiveram. Se não podemos olhar para trás com nenhuma certeza e não podemos saber o que vai acontecer amanhã, o que nos resta? O parceiro traído fica rigidamente empacado no presente, esmagado pela sucessão inexorável de fatos perturbadores acerca do caso.

Estamos dispostos a admitir que o futuro é imprevisível, mas esperamos que o passado seja confiável. Traídos pelo amado, sofremos a perda de uma narrativa coerente – a “estrutura interna que nos ajuda a prever e regular atos e emoções futuros [criando] um senso de identidade estável”, conforme a definição da psiquiatra Anna Fels: “talvez roubar de alguém a sua história seja a maior das traições”.

No ímpeto obsessivo de erradicar todas as facetas de um caso mora a necessidade existencial de costurar de novo a tapeçaria da vida. Somos criaturas produtoras de sentido e nos fiamos na coerência. As interrogações, os flashbacks, as ruminações circulares e a hipervigilância são manifestações de uma narrativa de vida dispersa tentando se reagrupar com as peças encaixadas. [...] As pessoas reveem constantemente a vida de que se recordam em um lado e a versão recém-descoberta no outro. Um senso de alienação as invade. Não é só do companheiro mentiroso que elas se sentem distantes, mas também de si mesmas.

A infidelidade não é apenas uma perda de amor: é uma perda de identidade. [...] Quando o amor se torna plural, o feitiço da unidade é rompido. Para certas pessoas, essa dissolução ultrapassa o que o casamento é capaz de suportar.

Do ponto de vista histórico, a maioria das pessoas sempre ancorou sua autoestima na obediência aos valores e expectativas da religião e da hierarquia familiar. Mas, na ausência de instituições antigas, cada um é incumbido de criar e manter a própria identidade, e o fardo individualmente nunca foi tão pesado. Por isso estamos sempre negociando nossa autoestima. A socióloga Eva Illouz destaca astutamente que “o único lugar onde você espera parar com essa avaliação é no amor. No amor você se torna o vencedor do concurso, o primeiro e o único.” Não surpreende que infidelidade nos atire em um fosso de insegurança e confusão existencial.

E a crise de identidade não está reservada somente ao parceiro traído. Quando o véu de um segredo se levanta, o choque não é apenas de quem descobriu o caso, mas também de que o teve. Observando a própria conduta através dos olhos recém-abertos do prejudicado, o protagonista do caso encara uma autoimagem quase irreconhecível. [...] Ele tem de considerar a discrepância entre sua autoimagem e seus atos. [...] Sua política identitária gerou um ponto cego. Só agora, sob a luz forte dos copiosos indícios, ele percebe como forçou a barra nas racionalizações.  


Fotografia: Nan Goldin

Nenhum comentário:

Postar um comentário