quarta-feira, 12 de junho de 2013

Ian McEwan

Amor sem Fim (4)

Juro que não sabia para onde ia ao atravessar a cozinha. Chegando à porta do escritório de Clarissa, imaginei que estava entrando para pegar meu grampeador. Ao cruzar o pequeno aposento, talvez tenha me dito que queria ver se o resto da minha correspondência matinal não estava misturado à dela, como às vezes ocorria. Havia uma barreira moral a ser ultrapassada, e suponho que pra isso servia a autopersuasão que eu atribuíra a ela. 

Chegando à escrivaninha, na verdade agi como se estivesse procurando o grampeador, que encontrei debaixo de um jornal. Soltei até um grunhido de satisfação. Será que havia alguém no aposento, uma presença celestial, que eu esperava convencer? Seriam tais gestos os vestígios - genética ou socialmente programados - de uma fé numa divindade vigilante? Minha encenação, assim como  minha honestidade, minha inocência e meu amor-próprio, desmoronou no momento em que enfiei o grampeador no bolso mas não saí do escritório, continuando, em vez disso, a remexer nos papéis empilhados na escrivaninha.

Claro que não podia mais negar o que estava fazendo. Disse comigo que agia assim para desfazer nós, para trazer luz e compreensão às trevas do não falado. Tratava-se de uma dolorosa necessidade.[...] Se minhas suspeitas estivesses infundadas, mais vital ainda que as descartasse. Abri a gaveta onde ela guardava a correspondência recente. Cada ato sucessivo, cada momento de penetração mais profunda, representava um grau adicional de vileza.  Com o correr dos segundos, eu me importava cada vez menos com o fato de estar me comportando daquele modo. Algo duro e apertado - uma tela, uma carapaça - se formava para me proteger de minha consciência.  Minhas racionalizações se cristalizaram em torno de um conceito parcial de justiça: eu tinha o direito de saber o que distorcia as reações de Clarissa em relação a Parry. O que a impedia de tomar meu partido? Algum estudantezinho barbudo de pós-graduação metido a fodedor? Peguei um envelope posto no correio três dias antes. O endereço havia sido escrito em itálico, letras pequenas e artisticamente irregulares. Tirei dali uma única folha. A saudação por si só me deu um aperto no coração. Querida Clarissa. Mas não era nada. Uma velha amiga do ginásio dando notícias da família. Escolhi outra: seu padrinho, o eminente professor Kale, nos convidando para almoçar no dia do aniversário dela. Já sabia disso. Olhei de relance para uma terceira carta, de Luke, e depois para uma quarta, uma quinta, e a inocência cumulativa de toda a correspondência começou a me dar náuseas. Passei a vista por outras três. Eis aqui uma vida, elas sugeriam, a vida da mulher que você diz amar, ativa, inteligente, bondosa, complexa. Que está fazendo aqui? Tentando nos manchar com seu veneno! Saia! Comecei a abrir a última carta, porém mudei de ideia. Estava me sentindo tão asqueroso que, ao deixar o escritório, apalpei o bolso para confirmar - ou dar a impressão de estar confirmando - a presença do grampeador. [...]

Minha invasão no escritório tinha sido um marco em nosso declínio e no insidioso avanço de Parry. Clarissa voltou à noite irradiando calor e até alegria, mas eu estava envergonhado demais para relaxar. Mais consciência de si próprio. Agora eu realmente tinha algo para esconder dela. Eu havia cruzado a fronteira de minha inocência. 

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