quarta-feira, 12 de junho de 2013

Ian McEwan

Amor sem fim (5)

Não havia brigas e nem mesmo escaramuças, como se soubéssemos que qualquer confrontação nos separaria pra sempre. Mantínhamos um nível mínimo de interlocução, conversinhas fiadas sobre coisas do trabalho, compras, o que comer, reparos na casa. [...]

Preservávamos nossa rotina cotidiana porque ela era a única coisa totalmente clara. O afeto já se fora, o carinho mútuo evaporara, tínhamos esquecido todos os truques do amor e nem sabíamos como começar a falar sobre isso. Dormíamos na mesma cama, porém não nos abraçávamos. Usávamos o mesmo banheiro, porém já não nos víamos nus. Tratávamo-nos de maneira escrupulosamente informal por saber que qualquer coisa a menos, por exemplo, uma polidez fria, revelaria o jogo e nos conduziria ao conflito que buscávamos evitar. O que antes parecia natural - fazer amor, ter longas conversas ou partilhar o silêncio - dava agora a impressão de ser tão difícil de conceber quanto o Quarto Relógio Marítimo de Harrison, cuja recriação seria impossível e anacrônica. Quando eu a via escovando o cabelo ou se abaixando para pegar um livro no chão, me lembrava de sua beleza como de um fato aprendido em algum manual escolar. Verdadeiro, embora irrelevante no momento. E eu era capaz de me ver pelos olhos dela como um sujeito grandalhão e desajeitado, um aríate programado biologicamente, um pólipo gigantesco de lógica comezinha com que ela havia se associado por engano. Quando lhe falava, minha voz soava monótona e enfadonha dentro de meu crânio, e cada frase, de fato cada palavra, era mentirosa. Eu vivia mergulhado numa raiva muda e num inarredável desprezo por mim mesmo. Quando nossos olhos se encontravam, era como se uma parte ruim de nós, uma presença maligna e insidiosa, erguesse as mão diante de nossos rostos para bloquear qualquer possibilidade de entendimento. Mas nossos olhos se cruzavam muito raramente e, quando isso acontecia, em um ou dois segundos fugiam, medrosos. Aqueles seres que antes se amavam nunca nos entenderiam ou perdoariam, mas a verdade é que o sentimento dominante e não reconhecido em nossa casa era então a vergonha.  

E ali estávamos, entre uma e meia e duas da manhã, deitados na cama, nos olhando fixamente sob a luz débil de um abajur, eu nu, ela numa camisola de algodão, braços e mãos se tocando porém de forma neutra, sem compromisso. Todas as dúvidas pairavam sobre nós e, durante algum tempo, nenhum dos dois ousou falar. Já era muito nos olhar olho no olho.

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