segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Arnold Hauser



 Culturas urbanas do oriente antigo - O status do artista e a formalização da produção 


O primeiro acúmulo de terras caiu nas mãos de guerreiros e salteadores, conquistadores e opressores, chefes militares e príncipes; a primeira propriedade racionalmente administrada pode muito bem ter sido construída pelos domínios do templo, isto é, a propriedade dos deuses fundada pelos príncipes e gerida pelos sacerdotes. Por conseguinte, é sumamente provável que os sacerdotes tenha sido os primeiros empregadores regulares de artistas, os primeiros a dar-lhes encomendas; os reis limitaram-se a seguir-lhes o exemplo. [...] As criações consistiam, na maior parte, em oferendas vomitivas aos deuses e em monumentos comemorativos das façanhas régias, nos requisitos ou do culto dos deuses ou do soberano, em instrumentos de propaganda destinados a servir à fama dos imortais ou à fama póstuma de seus representantes na terra. O sacerdócio e a casa real constituíam parte integrante do mesmo sistema hierático, e as tarefas de que incumbiam os artistas, de garantir-lhes a salvação espiritual e a fama perpétua, estavam unidas nos alicerces de toda a religião primitiva, consubstanciada no culto dos mortos. [...] Os sacerdotes transigiam com que os reis fossem considerados deuses, de modo a atraí-los para sua própria esfera de autoridade, e os reis permitiam a edificação de templos para os deuses e sacerdotes como forma de aumentar sua própria glória.  [...] Em tais circunstâncias, estava fora de questão a existência de uma arte autônoma. [...] As grandes obras de artes, de cultura monumental e pintura mural, não foram criadas com um fim em si mesmas e por sua beleza intrínseca. 

A demanda por representações pictóricas, sobretudo de obras de arte sepulcral, foi tão grande no Egito, desde o começo, que não se pode deixar de supor que a profissão do artista tenha se tornado distinta e auto-suficiente. [...] Porém, de modo geral, o artista permanceram como artífice anônimo, parecido quando muito nessa condição e não como personalidade em si. [...] No Oriente antigo, a dependência do status social da concepção primitiva de prestígio, de acordo com a qual o trabalho manual era considerado desonroso, terá sido ainda maior que entre os gregos e romanos. Em todo caso, o apreço pelo artista cresceu à medida que se desenrolava o progresso geral. 

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As oficinas do tempo e do palácio real eram as maiores e mais importantes, mas não as únicas; tais estabelecimentos eram igualmente encontrados nos grande s domínios senhoriais e nos bazares das maiores cidades. [...] O sistema de bazar, com sua sepraração entre a rotina de oficina e o trabalho doméstico, significa uma inovação revolucionária: contém o germe da indústria independente, produzindo bens sistematicamente - já não mais restritos a encomendas ocasionais - e mantendo-se, por um lado, como atividade profissional exclusiva, e por outro, como atividade fabricando artigos para o mercado livre. Esse sistema não só converte o produtor primário num trabalhador manual, mas retira-o dos limites fechados do trabalho doméstico. [...] O princípio da economia doméstica, na qual a produção está limitada às necessidades imediatas internas, é deste modo quebrado. 

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É usual considerar as oficinas, sobretudo as ligadas aos templos, os mais importantes centros transmissores de tradição. [...] Diga-se de passagem que tanto na oficina do templo quanto na do palácio real toda a prática de arte possuía o mesmo caráter acadêmico e formalista. O fato de existirem desde o começo regras universalmente vinculatórias, modelos universalmente válidos e métodos uniformes de trabalho indica a existência de um sistema dirigido a partir de um reduzido número de centros. A tradição acadêmica, algo rígida e pedantesca, levou, por um lado, a um excesso de produtos medíocres, mas, por outro, assegurou aquele nível médio comparativamente elevado que é tão típico da arte egípcia. 

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A organização do trabalho artístico, a captação e o emprego variado de ajudantes, a especialização e a combinação de realizações individuais atingiram um desenvolvimento tão elevado no Egito, que recordam, de certo modo, os métodos empregados nas oficinas das catedrais medievais e, sob alguns aspectos, deixam na sombra toda a atividade artística anterior organizada em moldes individualistas. Desde o começo, toda a evolução encaminhou-se no sentido de uma padronização da produção, e essa tendência esteve sempre de acordo com a rotina da oficina. Sobretudo, a racionalização gradual dos processos artesanais exerceu uma influência niveladora sobre os métodos artísticos. Com a crescente demanda, consolidou-se o hábito de trabalhar de acordo com esboços preliminares, modelos e padrões uniformes, e desenvolveu-se uma técnica quase mecanicamente estereotipada de produção, permitindo  que objetos diferentes fossem construídos à partir de componentes uniformes produzidos separadamente. A aplicação de tais métodos racionalistas à produção artística só foi possível, é claro, porque era usual determinar a cada artista a execução repetida da mesma tarefa um sem-número de vezes, encomendando-lhe as mesmas oferendas volitivas, os mesmos ídolos, os mesmos monumentos sepulcrais, o mesmo tipo de imagens régias e de retratos particulares. e como a originalidade do tema nunca foi muito apreciado no Egito, sendo na verdade geralmente proibida, toda a ambição do artista concentrava-se na meticulosidade e perfeição da execução, à qual é tão notória, mesmo em obras de menor importância, que compensa a falta de interesse e vivacidade na invenção. A exigência de um acabamento polido e impecável também explica por que a produção das oficinas egípcias era comparativamente pequena, apesar da organização racionalista aí empregada. A predileção dos escultores por trabalhos em pedra, nos quais apenas o desbaste grosseiro do bloco era confiado aos aprendizes, enquanto o trabalho mais refinado dos detalhes e o acabamento final eram reservados ao mestre, desde o início impôs limites muito estreitos à produção.   


Trecho de História social da Arte e da literatura

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