sábado, 26 de dezembro de 2020

Wolf Singer




 O processo de tomada de decisão


Para um neurobiologista, é evidente que todos os atos de uma pessoa são preparados com antecedência pelos processos neuronais que ocorrem no cérebro. Até onde se sabe, esses processos obedecem às leis da natureza, inclusive ao princípio de causalidade. Se não for assim, nenhum organismo vivo seria capaz de estabelecer relações coerentes entre suas condições ambientais e suas respostas comportamentais. Se os organismos respondessem de uma maneira aleatória aos desafios apresentados pelo mundo, não conseguiríamos sobreviver

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A neurobiologia pressupõe que os processos mentais são o resultado de processos neuronais, não sua causa. Portanto, nesse contexto é inconcebível que uma entidade mental imaterial controle a atividade de redes neuronais a fim de desencadear uma ação. A neurobiologia afirma categoricamente, e defendo com firmeza essa posição, que todos os fenômenos mentias que penetram em nossa consciência são consequência da atividade neuronal que tem lugar nos inúmeros centros do cérebro, os quais devem cooperar a fim de produzir os estados mentais específicos que experimentamos, sejam percepções, sejam decisões, sentimentos, opiniões ou vontades. Desse ponto de vista, todos os fenômenos mentais são, portanto, a consequência, e não a causa, de processos neuronais. 

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No caso da decisão pessoal, as informações que a sustentam têm origens neuronais diferentes, como a recordação de determinadas experiências, os valores morais incutidos, as disposições emocionais específicas do indivíduo e a percepção do contexto

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Tudo indica que os nossos conhecimentos dependem de processos construtivistas. Os conhecimentos a priori, isto é, anteriores à experiência, e as interpretações indispensáveis à elaboração de experiências encontram-se nas estruturas específicas do cérebro dos seres humanos. Dado que essa estrutura resulta de um processo de adaptação genética e epigenética à dimensão do mundo acessível aos nossos sentidos, temos o direito de pensar que as percepções e as formas de interferência são subjetivas e, portanto, não generalizáveis. É verdade que estamos presos dentro de um raciocínio epistemológico circular. Nosso cérebro e, portanto, nossos conhecimentos se adaptaram ao pequeno nicho que é o mundo no qual a vida se desenvolveu e evoluiu. E nesse nicho, minúsculo em relação ao resto do universo, somente essas variáveis, isto é, nosso cérebro e nossos conhecimentos empíricos, conduziram os processos de adaptação dos nossos sistemas cognitivos, que se manifestam por meio da organização de nossos órgãos sensoriais. Esses órgãos são, eles mesmos, altamente seletivos e sensíveis apenas a um leque muito limitado de sinais físico-químicos. 

Utilizamos, portanto, um instrumento cognitivo que foi ajustado para apreender um segmento muito restrito do mundo, com o objetivo de “compreender”a totalidade desse mundo. É a partir das dimensões do universo ao qual estamos adaptados que extrapolamos as dimensões dos universos aos quais não estamos adaptados.  Pior, a evolução não aperfeiçoou nossos instrumentos cognitivos para que pudéssemos analisar a suposta “verdadeira natureza”que estaria oculta por trás dos fenômenos, mas com o único objetivo de que pudéssemos interpretar as informações necessárias à nossa sobrevivência e a reprodução dos organismos. De fato, a sobrevivência e a reprodução requerem métodos heurísticos muito diferentes das estratégias indispensáveis à descoberta da verdadeira natureza das coisas. 

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O registro da atividade neuronal revela que os processos neuronais que servem de base e preparam essa decisão começaram muito antes da tomada de consciência da decisão. Temos indícios complementares com estudos experimentais ao longo dos quais os sujeitos executam ações em resposta a instruções dadas de tal maneira que elas não podem percebê-las conscientemente. Em outras palavras, constatamos que os sujeitos respondem a essas instruções sem ter consciência de ter obedecido a elas. [...] Uma possibilidade é desviar a atenção do sujeito, uma técnica utilizada com bastante frequência por mágicos par que seus gestos permaneçam imperceptíveis aos olhos do público. No momento em que os sujeitos respondem às instruções que eles não perceberam conscientemente, é evidente que, então, eles se tornam conscientes de suas ações, que interpretam como resultado de sua própria intenção. Se perguntamos a esses sujeitos: “Por que você fez isso?”, eles dão uma resposta do tipo intencional: “Fiz porque quis”. Em seguida, eles inventam um motivo, convencidos de que foi sua intenção que desencadeou a ação. Temos aí um exemplo perfeito do fato de que a pessoa se atribui, de maneira ilusória e subjetiva, a plena responsabilidade pela totalidade de um processo decisório. 

Sentimos necessidade de encontrar razões para tudo que fazemos. Quando, porém, não temos acesso ao verdadeiro motivo pelo qual realizamos uma ação - porque a motivação é inconsciente ou porque nossa atenção foi desviada -, inventamos um, no qual passamos a acreditar, sem perceber que ele é fruto de nossa imaginação. 

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É interessante constatar que discutimos o problema do livre-arbítrio e da livre decisão pressupondo que as decisões são o resultado de deliberações conscientes e do raciocínio. Essas discussões podem tratar de argumentos morais que foram gravados na memória e que voltam à consciência, das consequências benéficas ou prejudiciais de um ato, ou de ideias sobre as quais ouvimos falar recentemente. Se tivermos tempo suficiente para avaliar essas argumentações segundo as regras do diálogo e dos sistemas de valores aceitos numa determinada sociedade - e se a consciência não for perturbada por um evento qualquer - , pensaremos, então, que o indivíduo é inteiramente livre para escolher diversas opções futuras, inclusive a opção de escolher evitar qualquer decisão. 

No entanto, “o agente que delibera”é uma rede neuronal, e o resultado da deliberação, isto é, a decisão, é a consequência de um processo neuronal que, por sua vez, é determinado pela sequência de processos que o precedem imediatamente. Portanto, o resultado desse processo depende de todas as variáveis que moldaram a estrutura funcional do cérebro no passado: predisposições genéticas, efeitos epigenéticos das impressões da primeira infância, a soma das expectativas passadas e o conjunto de estímulos presentes. Resumindo: uma decisão iminente é influenciada por todas as variáveis que determinam a programação específica do cérebro, bem como por todas as influências que atuam no cérebro no memento da tomada de decisão. 

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A especialista em neuroética, Katahinka Evers, ressalta que mesmo se as decisões conscientes são precedidas imediatamente de uma preparação neurológica inconsciente, isso não significa que a consciência está ausente: as experiências acumuladas ao longo da via não param de influenciar o conteúdo dos processos inconscientes. Isso significa que temos, de fato, um certo controle dos processos inconsciente, por meio dos conteúdos consciente que os precederam. Somos responsáveis, em certa medida, pelos conteúdos do nosso inconsciente, já que os fenômenos conscientes e inconscientes não param de se moldar reciprocamente numa rede complexa de causalidade mútua. [...] Portanto, mesmo se durante os décimos de segundo que parecem uma decisão existem processos inconscientes em ação no cérebro, a decisão final é, antes de mais nada, o ponto culminante da experiencia de toda uma vida. 

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Nosso modo de decidir, a maneira como nossos mecanismos neuronais convergem para que cheguemos a uma decisão, depende de todas as variáveis que influenciam o estado dinâmico do cérebro no próprio momento da decisão. Essas variáveis são fatores que moldaram a estrutura funcional do cérebro (genes, processos de desenvolvimento, educação, experiências), mas também as influências decorrentes do passado recente (conceitos, contexto, disposições emocionais e inúmeros outros elementos). Em princípio, qualquer experiência passada de que temos consciência pode ser levada em conta por ocasião das deliberações conscientes. No entanto, como um grande número de experiências não chega ao nível da consciência, elas não podem ser levadas em conta como argumentos que intervêm nas deliberações conscientes Porém, apesar disso essas experiências inconscientes vão influenciar o resultado das decisões, como motivações inconscientes e heurísticas. Na verdade, como ressaltamos, apenas uma pequena parte das inúmeras variáveis que intervêm nas decisões entra em jogo nas deliberações conscientes: nós temos recordações conscientes e extremamente limitadas, e talvez não tenhamos nenhuma lembrança dos fatores genéticos e epigenéticos que moldaram nossas estruturas cerebrais e, consequentemente, dos fatores que presidiram a elaboração de nossas tendências comportamentais individuais.  


Trecho retirado de Cérebro e Meditação - Diálogo entre budismo e neurociência 

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