quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Arnold Hauser




 Culturas urbanas do Oriente antigo: O naturalismo da era e Akhenaton


Amenhotep IV, a cujo o nome está vinculada a grande revolução cultural, é não só o fundador de uma religião, o descobridor da ideia de monoteísmo, como geralmente é conhecido, não só o “primeiro profeta” e o “primeiro individualista” na história do mundo, como tem sido chamado, mas também o primeiro inovador consciente no campo da arte: o primeiro homem a converter o naturalismo num programa e, opondo-o ao estilo arcaico, numa realização recém-conquistada. [...] O que a arte e os artistas lhe devem é obviamente uma nova forma de amor à verdade, uma nova sensibilidade e sensitividade que leva a uma espécie de impressionismo na arte egípcia. A superação do estilo acadêmico e rígido por seus artistas está em harmonia com sua própria luta contra as tradições pedantescas, vazias e desprovidas de significado da religião. Sob sua influência, o formalismo do Médio Império dá lugar, tanto na religião quanto na arte, a um enfoque dinâmico, naturalista, que encoraja o homem a deleitar-se na realização de novas descobertas. São escolhidos novos temas, procuram-se novos símbolos, a descrição de situações novas e incomuns é favorecida e tenta-se não só retratar a vida espiritual individual e íntima mas ainda mais do que isso, insuflar tensão intelectual, uma sensibilidade exarcebada e uma vivacidade nervosa quase anormal nos retratos. Os rudimentos. De perspectiva no desenho, tentativas de composição de grupo mais coerente, um interesse mais vivo na paisagem, predileção por representações de cenas e acontecimentos cotidianos e, como resultado da aversão pelo antigo estilo monumental, um acentuado prazer nas formas delicadas e graciosas das artes menores - tudo isso começa agora a mostrar-se. 

A única característica surpreendente é como essa nova arte permanece inteiramente palaciana, cerimonial e formal, apesar de todas as inovações. [...] Vemos Amenhotep IV em seu círculo familiar, em cenas e situações da vida cotidiana, numa intimidade humana que excede todas as concepções prévias, e contudo ele ainda se movimenta em planos retangulares, o peito todo voltado para o observador, e exibe uma estatura que é duas vezes superior à dos mortais comuns; a pintura ainda é produto de uma arte senhorial, destinada a servir como memorial para o rei. É verdade que o governante deixou de ser retratado como um deus, completamente livre de todas as limitações terrenas, mas permanece sujeito à etiqueta da corte. 

[...]

Os meios de expressão empregados pelo naturalismo no período do Novo Império são tão ricos e sutis, que dever ter tido um longo passado, um extenso período de preparação e aperfeiçoamento. Onde se originaram eles? Em que forma se conservaram vivos, até emergirem ao reinado de Akhenaton? O que os salvou da destruição durante o período rigorosamente formal do Médio Império? A resposta é simples: o naturalismo sempre esteve latente como uma corrente subterrânea na arte egípcia e deixou inconfundíveis traços de sua influência, paralelamente ao estilo oficial, pelo menos nos ramos não-oficiais da arte

[...]

Existe uma justificativa muito mais sólida para se falar da existência de uma arte provinciana a par da arte palaciana, do que de uma parte popular paralela à da corte. As realizações artísticas importantes originam-se repetidamente, e de um modo cada vez mais exclusivo, à medida que o progresso avança, na corte real ou nos recintos sob alçada direta da corte - primeiro em Mênfis, depois em Tebas e finalmente em El Amarana. O que acontece nas províncias, longe da capital e dos grandes templos, é comparativamente pouco importante e caminha lenta e penosamente no encalço do desenvolvimento geral. Representa uma cultura que foi filtrada da classe alta, e em nenhuma acepção é possível considerá-la uma cultura que tenha brotado das profundezas da vida do povo. Essa arte provinciana, impossível de ser avaliada como a continuação da velha arte camponesa, também se destina a aristocracia rural e latifundiária, e deve sua própria existência à separação da nobreza feudal da corte, um processo que vinha ocorrendo desde a sexta dinastia. A nova nobreza provinciana, com sua cultura regional e retrógrada e sua arte provinciana derivativa é formada a partir desses elementos que haviam abandonado a capital.       


Trecho de História social da Arte e da literatura


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