segunda-feira, 29 de março de 2010

Rainer Maria Rilke

Nunca deixa de ser desconcertante que tanta dificuldade e tanto mal se originem nas distorções e paralisias realmente supérfluas e desnescessárias da existência, que, desde tempos imemoriais, brotaram da invigilância, da indolância e da estreiteza das circunstãncias humanas e se propagaram, acumulando-se sobre a verdadeira alegria de viver. Vivemos sobre os escombros de instituições há muito caídas em ruínas, e, sempre que conseguimos uma rota de escape, encontramos, é verdade, o céu puro acima de nós, mas nenhuma ordem ao nosso redor e, aí sim, ficamos mais isolados e diariamente ameaçados pelos perigos de novos colapsos insuspeitados. Às vezes não posso ver várias pessoas reunidas, que nem são as mais estranhas e indiferentes para mim, sem perceber com o mais interno horror como se equivocam: quando, por puro constrangimento, em razão da estranheza mútua e do silêncio (considerado descortês), põe-se a falar e de fato encontram por horas a fio palavras, feixes inteiros de palavras que soam como se tivessem sido compradas barato em leilão; como então o tempo passa: e, no entanto, essa noite é uma hora de suas vidas, uma hora irrecuperável. E, no entanto, lá está uma noite sublime à sua volta, que deveria induzir a grandes pensamentos e vastos sentimentos cada um que ergue um olhar puro. E, no entanto, todas elas têm uma noite diante de si, que as assombrará com o interior não dominado de si mesmas, que impelirá, para perto de cada uma, seus desastres dos quais elas desviam o olhar, suas dívidas que não ressarcem, suas aflições inconfessas. Uma noite em que cada indivíduo é, ainda mais do que nunca, propriedade e brinquedo de sua morte, essa morte que ele abomina e nega perante seu próprio sangue que corre num doce e íntimo acordo com ela...

Um comentário:

  1. "Num acesso de cinismo infantil divertiu-se em forçar a nota prosaica da existência, comparar a lua a um queijo fresco e as rosas a potes de pomada, em tudo isso experimentando a satisfação da vingança e, ao mesmo tempo, a sensação meio inquietante e meio excitante blasfêmia".

    J.P.Jacobsen - Niels Lyhne

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