segunda-feira, 12 de março de 2018

Tony Judt


O mal ronda a Terra
Um tratado sobre as insatisfações do presente

Refazendo o debate público

Muitos críticos da condição atual começam pelas instituições. Avaliam parlamentos, senados, presidências, eleições, lobbies, apontando a maneira como decaíram ou abusaram da confiança e autoridade neles depositadas. Qualquer reforma, concluem, deve começar por aqui. Precisamos de novas leis, regimes eleitorais diferentes, restrições aos lobbies e financiamento dos políticos; precisamos dar mais (ou menos) autoridade ao poder executivo, e encontrar modos de tornar funcionários eleitos ou não mais responsáveis e transparentes para com seus empregadores: nós. 

Tudo isso é verdade. Mas essas mudanças estão no ar há décadas. Já deveria estar claro agora que a razão para não terem ocorrido, ou não funcionarem, é que elas foram imaginadas, propostas e implementadas pelas próprias pessoas responsáveis pelos dilemas. Não adianta muito pedir ao Senado dos Estados Unidos que altere a atuação dos lobbies: como Upton Sinclair afirmou na famosa frase, faz um século, “É difícil fazer com que um homem entenda algo quando seu salário depende de que ele não entender aquilo”. Por razões similares, os parlamentos da maioria dos países europeus – agora vistos com sentimentos que vão do tédio ao desprezo – estão mal posicionados para encontrar nas próprias instituições os meios que os tornarão novamente relevantes. 

Precisamos começar por outro lugar. Por que, nas últimas três décadas, tem sido tão fácil aos detentores do poder convencer os eleitores do bom-senso – ou da necessidade – das políticas que desejam implantar? Porque não existe alternativa coerente disponível? Mesmo quando ocorrem diferenças entre os grandes partidos políticos, elas são apresentadas como versões de um único objetivo. Tornou-se lugar-comum afirmar que todos queremos a mesma coisa, apenas propomos maneiras um pouco diferentes de atingir os objetivos. 

Mas isso é simplesmente falso. Os ricos não querem a mesma coisa que os pobres. Quem depende do trabalho para sustentar a família não quer a mesma coisa que quem vive de investimentos e dividendos. Quem não precisa dos serviços públicos – pois pode adquirir transporte, educação e segurança privadas – não busca o mesmo que as pessoas que dependem exclusivamente do setor público. Quem se beneficia com a guerra – sejam fornecedores do sistema de defesa ou ideólogos – tem objetivos distintos de quem é contra a guerra.

As sociedades são complexas e vivem com interesses conflitantes. Afirmar o contrário – negar distinções de classe, riqueza ou influência – é só um jeito de privilegiar um conjunto de interesses em detrimento de outro. Essa proposição costumava ser evidente; hoje estimulam a descarta-la como encorajamento incendiário ao ódio entre classes. Na mesma linha, somos incentivados a procurar o interesse econômico acima de tudo. E, realmente, tem muita gente que só pensa em se dar bem. Contudo, os mercados exibem um disposição natural para favorecer necessidades e desejos que podem ser reduzidos a critérios comerciais ou avaliações econômicas. Se podemos comprar ou vender uma coisa, então ela é quantificável e podemos definir sua contribuição (quantitativa) aos indicadores do bem-estar coletivo. Mas e os bens que os seres humanos sempre valorizaram, mas que não se prestam à quantificação?

Como fica o bem-estar? E a justiça ou equidade (no sentido original)? E a exclusão, a oportunidade – ou ausência – ou a esperança perdida? Essas considerações significam muito mais para as pessoas do que o lucro ou crescimento individual e coletivo. Vamos pegar a humilhação: e se a tratássemos como um custo econômico, um ônus para a sociedade? E se decidirmos “quantificar” o dano causado quando as pessoas são humilhadas por seus concidadãos, como condição para ter acesso às necessidades básicas da vida? 

Em outras palavras, e se incluirmos em nossas estimativas de produtividade, eficiência e bem-estar a diferença entre esmola humilhante e um benefício de direito? Vamos fazer concluir que a provisão de serviços sociais universais, seguro de saúde abrangente ou transporte público subsidiado são na verdade meios eficazes para atingir nossos objetivos comuns. Admito prontamente que um exercício desses seja litigioso desde a origem: como quantificar a “humilhação”? Qual o custo mensurável de negar aos cidadãos isolados o acesso aos recursos metropolitanos? Quando estamos dispostos a pagar por uma sociedade decente? 

Até o conceito de “riqueza” exige redefinição. Afirma-se com muita convicção que a taxação progressiva da renda e a redistribuição econômica destroem a riqueza. Tais políticas indubitavelmente tiram recursos de uns para entregar a outros. – embora o modo como se corta o bolo guarde pouca relação com o seu tamanho. Se a redistribuição da riqueza material tiver como efeito de longo prazo a melhoria da saúde de um país, reduzindo as tensões sociais resultantes da inveja, equalizando o acesso de todos os serviços antes destinados a uns poucos, isso não quer dizer que o país melhorou? 

Como o leitor pode observar, uso palavras como “riqueza” e “melhorar” de uma forma que vai bem além de sua concepção atual, estritamente material. Fazer isso em escala mais ampla – para reordenar nosso debate público – me parece o único caminho realista para iniciar o processo de mudança. Se não houver mudança no jeito de falar, não conseguiremos mudar o modo de pensar. 

Existe precedentes para esta maneira de conceber as mudanças políticas. No final do século XVIII, na França, quando o antigo regime cambaleava, os avanços mais significativos no cenário político não surgiram dos movimentos de protesto ou das instituições estatais que procuravam podá-los. Eles vieram da própria linguagem. Jornalistas e panfletários, junto com alguns administradores e padres rebeldes, criaram a partir da antiga linguagem da justiça e dos direitos populares uma nova retórica de ação pública. 

Incapazes de enfrentar a monarquia abertamente, eles se dedicaram a contestar sua legitimidade, imaginando e levantando objeções à situação existente, propondo fontes alternativas de autoridade nas quais “o povo” acreditaria. De fato, eles inventaram a política moderna, e ao fazer isso literalmente desacreditaram o que ocorria antes. Quando a Revolução explodiu, a nova linguagem da política encontrara seu lugar: se não fosse assim os próprios revolucionários não teriam como descrever o que estavam fazendo. No início foi o verbo. 

Hoje somos encorajados a acreditar na ideia de que a política reflete nossas opiniões e nos ajuda a dar forma a um espaço público compartilhado. Os políticos falam, nós respondemos – com votos. Mas a verdade é bem diferente. A maior parte das pessoas não sente que está participando de um diálogo significativo. Alguém lhes diz o que pensar e como pensar. Fazem com que se sintam despreparadas na hora de discutir detalhes; quanto aos objetivos gerais, são levadas a acreditar que eles já foram determinados há muito tempo. 

Os efeitos perniciosos da supressão do debate genuíno nos cercam. Nos EUA da atualidade, as reuniões nas prefeituras e “tea parties” parodiam e imitam os eventos originais do século XVIII. Em vez de abrirem debates, eles os fecham. Demagogos dizem à multidão o que pensar; quando suas frases são repetidas, como um eco, eles proclamam descaradamente que estão apenas transmitindo o sentimento popular. Na Grã-Bretanha arranjaram um jeito extremamente eficaz de usar a televisão como válvula de escape para o descontentamento popular: os políticos profissionais agora alegam ouvir a vox populi na forma de votações ao vivo e pesquisas de popularidade sobre tudo, da política de imigração à pedofilia. Repassando ao público seus próprios medos e preconceitos, eles se livram do ônus da liderança ou da iniciativa. 

Enquanto isso, do outro lado do Canal, na França republicana e na Holanda tolerante, debates superficiais sobre a identidade nacional e critérios de cidadania substituem a coragem política requerida para confrontar o preconceito popular e os desafios da integração. Também nesse caso temos a impressão de que ocorre uma “conversa.” Mas os termos de referência são cuidadosamente predeterminados; seu propósito não é estimular a expressão de pontos de vista distintos, mas suprimi-los. Em vez de facilitar a participação popular e diminuir a alienação cívica, essas “conversas” apenas contribuem para a antipatia disseminada pelos políticos e pela política. Na democracia moderna é possível enganar a maioria das pessoas durante a maior parte do tempo: mas isso tem um custo. 

Necessitamos reabrir um tipo diferente de diálogo. Precisamos recuperar a confiança em nossos instintos: se um político ou ação parecem condenáveis, devemos procurar palavras para expressar isso. De acordo com as políticas de opinião, a maioria das pessoas na Inglaterra vive apreensiva com a privatização apressada de serviços públicos tradicionais: água e energia, metrô, serviço local de ônibus e hospitais regionais, para não mencionar asilos de idosos, serviços de enfermagem a domicílio e similares. Mas quando lhes dizem que o propósito das privatizações é economizar dinheiro público e aumentar a eficiência, todos se calam: quem poderia discordar?

Nenhum comentário:

Postar um comentário