sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Rainer Maria Rilke




Na minha infância, quando todos sempre me tratavam mal, e eu me sentia infinitamente abandonado, tão completamente perdido no desconhecido, pode ter havido um momento em que desejei muito ir para outro lugar. Mas então, enquanto as pessoas continuavam estranhas a mim, eu me dirigi às coisas e delas soprou uma alegria, uma alegria de ser, que sempre permaneceu uniformemente serena e forte e jamais comportou uma hesitação ou uma dúvida. Na escola militar, após longas e inquietas lutas, abandonei minha intensa piedade de criança católica, livrei-me dela, para ser ainda mais sozinho, ainda mais inconsolavelmente sozinho. Das coisas, porém, e sua maneira de tolerar e durar pacientemente, veio mais tarde para mim um novo amor, maior e mais pio, um tipo de crença que não conhece medo nem limites. A vida também é uma parte dessa crença. que não conhece medo nem limites. A vida também é parte dessa crença. Oh, como creio nela, na vida. Não a vida constituída pelo tempo, mas essa outra vida, a vida das pequenas cosias, a vida dos animais e das grandes planícies. Essa vida que dura através dos milênios, aparentemente sem participação e, contudo, no equilíbrio de suas forças, cheia de movimento e crescimento e calor. Por isso as cidades pesam tanto sobre mim. Por isso amo percorrer longos caminhos descalço, para não perder nenhum grão de areia e dar ao meu corpo inteiro em múltiplas formas como sensação, acontecimento e afinidade. Por isso vivo, quando possível, de verduras, para estar perto da consciência simples da vida, não intensificada por nada de estranho; por isso não bebo vinho, pois quero que apenas meus sucos falem e rumorejem e tenham bem-aventurança, como nas crianças e nos animais, da profundeza de si mesmos! E por isso quero despir de mim toda arrogância, não me alçar acima do mais ínfimo animal e não me considerar mais magnífico do que uma pedra. Mas ser o que eu sou, viver o que me foi destinado viver, querer soar o que ninguém mais pode soar, brotar as flores ditadas ao meu coração: é isso o que quero - e isso decerto  não pode ser arrogância.

2 comentários:

  1. O que se segue é também uma lembrança repetida de sua paz interior: como ela se sentava, pela manhã, à mesa do desjejum, com um sorriso nos olhos, que se haviam tornado profundamente azuis; e quando começávamos a desconfiar pudesse estar rindo de nós, acabávamos constatando que, na verdade, ela sorria para um sonho muito agradável. Daí surgiu o gracejo: depois de um dia especialmente pouco alegre (pois aborrecidos, por assim dizer, ela não conhecia), nossa Muschka compensava-se com noites divertidas. Nos últimos anos de sua vida, quando começou a ficar surda, achava engraçado que suas visitas, senhoras tão surdas quanto ela, conversassem sem se entender. Rindo alegremente, contava-nos como cada uma, ela inclusive, percebia bem as respostas erradas da outra, mas não se deixava absolutamente desconcertar por suas próprias respostas, não menos equivocadas.
    Ao lado da leitura, o que mais a atraía era observar a natureza. A época do verão causava-lhe uma alegria transbordante e, no fim do outono, ela conversava, de suas janelas, com uma fileira de árvores de uma rua transversal como se elas fossem seres vivos, ou observava as dispersões da luz. Seus cômodos estavam sempre repletos de folhagens, cuidadas por ela mesma, mas ela não gostava de ter animais ao seu redor. Com idade muito avançada, toda posse parecia-lhe excessiva, como se fosse um atentado a esse seu “estar a sós”. Preocupava-se com grande dedicação e cautela em relação a cada um dos objetos de sua propriedade, mas alegrava-se também toda vez que, sem chamar a atenção, abria a mão de um deles, dando-o a nós ou a outras pessoas. Pouco a pouco surgiu a divertida necessidade de presenteá-la com as mesmas coisas, para que não acabasse rodeada pelo vazio. Às vezes, ela me dava a impressão de alguém que se libera ou se evade, e que, com todos os seus objetos, prepara para os seus que ficam pequenos ninhos; e eu parecia adivinhar, por trás dessa ocupação tão prosaica, sua atitude fundamental frente à vida e, principalmente, frente à morte: em contrapartida ao sentimento de ser despojada pela morte, a consciência da superfluidade da riqueza, num momento em que não se tem mais porque temer a necessidade.
    Sempre me pareceu que as coisas são belas, valiosas, quando são presentes, não aquisições, porque assim trazem imediatamente consigo o segundo presente: o poder de sentir-se agradecido.

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  2. "Mas ser o que eu sou, viver o que me foi destinado viver, querer soar o que ninguém mais pode soar, brotar as flores ditadas ao meu coração: é isso o que quero - e isso decerto não pode ser arrogância."

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